A Garganta da Serpente
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O EXTERMINADOR DE ALMAS - CAPÍTULO 8

(André Ferreira Machado)

- Entre.

Eric entrou, meio desconfiado. O interior da casa era rústico: algumas paredes rebocadas, mas não pintadas; um espelho, com uma rachadura na parede da esquerda. O chão de madeira, algumas tábuas quebradas. Ao fundo uma pequena cozinha, talvez a parte mais organizada da casa. Um pequeno banheiro e, ao lado deste, um quarto com uma única cama.

- Então, o famoso Eric Braesnovenn...

- O A do meu sobrenome é mudo. Você mora num lugar bem...

- Pobre?

- Simples.

- Não sei se o Gabriel te falou mas, vão demolir essa casa. Em breve, teremos que ir para outro lugar.

Eric virou-se e ficou de frente para Christian. Este, parecia estar gostando de Eric estar olhando para ele.

- Que idade você tem?

- Ao todo? 116. Eu nasci em 1798. Aos 12 anos, morri e tornei-me o que sou.

- Ficou 100 anos morto?

- 30. As pessoas que me conheciam morreram rápido. Ele só deixou você dormindo 100 nos porque esse foi o tempo necessário para que todos que você conheceu... partissem...

- Por quê?

Christian suspira fundo.

- Por que... você é imortal agora. Acredite: foi melhor assim. É muito melhor saber que todas as pessoas que você conheceu um dia já morreram do que ver uma por uma indo para debaixo da terra.

- Eu não concordo com isso.

- O problema é seu.

- Gabriel disse que eu nunca vou envelhecer...

- E não vai mesmo.

- Os meus cabelos vão ficar brancos?

- Não... É que eu sou meio albino...

Eric já tinha ouvido falar de albinos, mas não imaginava que fosse desse jeito. Nunca tinha visto um de perto. Christian prosseguiu:

- O Gabriel te falou o porquê do nome "Exterminador de Alma"?

- Ele contou aquela história da Dei Lux, da Inglaterra...

- Ai, esse Gabriel, sempre fascinado pelos detalhes... escute... - Christian chega bem perto de Eric e o abraça fortemente - A alma é uma substância que existe naturalmente em nosso corpo. É junto com esse corpo que ela forma o ser humano. - Christian põe sua mão esquerda embaixo da camiseta de Eric, passando-a pelas costas do garoto - Entretanto, a alma não precisa do nosso corpo para existir: ela existe por si só. A alma é mais do que uma invenção. É uma substância, que conserva sua identidade ante as inúmeras modificações corporais. Sabe o que isso significa? - Christian coloca sua mão mais para baixo. Eric arregala os olhos - A alma é simples, no sentido de que não possui partes que a constituem. Essa simplicidade se manifesta pela unidade indivisível da consciência. Mesmo com o corpo sempre mudando, percebemos nossa identidade que é pessoal, permanente e imutável. - Christian aperta-se ainda mais contra Eric - Para destruir uma coisa, você precisa destruir as partes que compõem esta coisa. Como a alma não possui partes constitutivas, ela não pode ser destruída. Não diretamente, por que você é a única criatura que tem o poder de destruir a alma. Você, eu, os exterminadores em si. Você dá a sua vítima, aquilo que a morte não é: um sono eterno e sem sonhos.

Eric empurra Christian, que cai sentado em cima de um sofá.

- Agora eu entendi por que o Gabriel perguntou "menino ou menina". Você é...

Christian se levanta.

- Por acaso você já tocou em alguém, a não ser o Gabriel?

Eric lembrou-se daquele homem virando um esqueleto. Christian continuou:

- Tudo que você toca morre. É pelo seu toque que você destrói a alma e o corpo vira pó. Acaso é possível amar uma pessoa sem tocá-la? Sem sentir a maciez de sua pele contra sua própria pele? Não, não é. Não podeis tocar ninguém. Não nasceste para amar.

- Isso não explica...

- Vá até aquele espelho.

Eric caminhou até o espelho. Christian caminhou atrás dele. Ao olhar seu reflexo, Eric assusta-se, quase caindo para trás. Ao invés de ver o seu corpo, viu um esqueleto, horripilante e com um mórbido sorriso.

- O que é isso? - perguntou gritando assustado.

- Isso é você. Ou melhor: é o que você é.

Eric fechou os olhos.

- Eu nunca vou poder olhar para uma coisa dessas!!!!

- Tire o colar que você está usando. - Era o colar com a caveira. Eric tirou-o com os olhos fechados - Agora, abra os olhos. Não tenha medo.

Eric abriu os olhos relutante mas, ao ver o reflexo, sentiu-se mais aliviado: era o seu corpo, como ele sempre viu. Sem entender nada, olhou para Christian, exibindo-lhe o colar.

- O que é isso?

- Isso é a vida, Eric. Sem isso, nada sois vós.

- Como "a vida" ?

- É a fonte de sua imortalidade, de seu poder e de sua juventude eterna. Se não usar isso, você se torna um garoto normal como todos os outros e pode ser morto como qualquer humano.

- Então, não precisamos usar isso. Somente quando necessário.

Christian sorri.

- Conforme acabei de dizer, isso é a vida. Seu corpo não possui mais o sopro vital. Isso é o que lhe sustenta. Sem o colar, você só vive por três horas. Na primeira hora, normalmente. Da primeira hora à segunda, você vai ficar tão cansado como nunca ficou antes. A partir da segunda hora, você vai envelhecer num ritmo frenético sem, entretanto, crescer. Se chegar à terceira, acho que não preciso dizer o que acontece.

Eric olhou cabisbaixo para aquele amuleto.

- Então, eu não sou tão imortal assim...

- Basta se cuidar.

- Sabendo-se disso, por que um exterminador de alma tiraria esse...

- Espectro. Bem, como você viu, para se passar por um humano e, também, para entrar em igrejas.

- Igrejas?

- Você representa exatamente o oposto de Deus. As igrejas são o templo Dele. Se você entrar numa igreja, o Senhor te reduzirá a cinzas. Pois não podeis resistir à Sua presença. Entretanto, se entrares como um humano comum. Podereis sair vivo. No caso de uma emergência na qual esteja com isso e precise entrar numa igreja... - Christian caminha um pouco para trás de Eric e pega um pequeno baú que estava sobre uma mesa - ponha seu espectro dentro deste baú. Ele é revestido por chumbo, o que faz com que você possa entrar com ele dentro do templo mas nunca, em hipótese alguma, abra o baú dentro da igreja. Não queira saber o que acontece. - Eric pegou o baú e o abriu - Este é seu: é revestido de veludo azul. O meu é o revestido de veludo vermelho. Por favor, não troque.

- Tenho que fazer isso em todas as igrejas?

- Todas menos uma: a Catedral dos Ossos, em Évora. Lá é o único templo em que você pode entrar com o colar. Sabe por quê?

- Não.

- Porque essa catedral foi construída com ossos humanos. Milhares de crânios formam as paredes. É um lugar para refletirmos sobre a vida e a morte.

- Credo...

- Mas, não se preocupe: Évora fica em Portugal. Acho que você não vai ir para lá agora.

- Tudo bem... É só botar aqui dentro né? Certo... Mas isso não explica...

- Sei. Você pode "conhecer" uma mulher sem o espectro mas, se você assim fizer, dará a ela a dádiva maldita.

- Dádiva maldita?

- Ela vai se tornar imortal como você, sem a necessidade de um espectro, mas seu corpo vai envelhecer normalmente.

- Isso é uma dádiva. Onde está a maldita?

- O corpo se degenera na velhice. A pessoa vai sentir dor, vai sofrer, vai gemer. E terá a certeza que a morte não virá visitá-la. Será uma dor, demência e sofrimento eternos.

- Olhando por esse ângulo, realmente é uma dádiva maldita... Mas não existem exterminadoras?

- Claro que existem. Mas eu nasci diferente.

- Eu sinto muito.

- Eu sei que sente.

"Onde eu fui me meter?", Eric pensava quando Christian, caminhando para o sofá, diz:

- A propósito: nós podemos ler os pensamentos alheios...

- É uma indireta?

- Não, é verdade!

- E como eu faço isso?

- Quando chegar a hora, eu vou te ensinar tudo que você precisa saber. Antes, porém, de te ensinar a ser um exterminador de almas, eu vou lhe contar o que aconteceu nesse país durante o tempo em que você esteve morto. Houve várias mudanças. Agradeça, porém, ter acordado agora. Se tivesse acordado perto do ano 2000, você pensaria estar em um outro planeta.

- Como sabe o que vai acontecer no futuro?

- A Bolha do Tempo. Um depósito tecnológico com todas as invenções humanas que já foram criadas, desde o início, até o fim dos tempos.

- Bolha do Tempo? E onde fica isso?

- Ninguém sabe onde fica, mas todos sabem como chegar lá.

- Eu não sei...

- Quando você precisar, você vai saber.

- Esse... "todos" que você diz são os exterminadores?

- Sim. A bolha é aberta para todas as criaturas do Universo mas nós somos os únicos que conhecemos o caminho.

Eric fecha os olhos e respira fundo.

- Desculpe, eu não assimilei nada que você disse... Isso tudo é muito para a minha cabeça. Ontem, ou sei lá quando, eu tinha uma vida normal e, agora, num piscar de olhos, tudo está diferente. - Eric suspira - Eu não nasci para isso...

- É claro que não. Você morreu para isso.

- Eu quero voltar para casa...

- Que casa?

- A minha casa. A casa onde eu passei a minha vida inteira com a minha família.

- Passou-se um século. Aquela casa não é mais sua... Deve ter outros moradores, isso é, se ela ainda existir...

- Eu quero ir para lá.

- Pra quê? Seus pais não estão mais lá...

- Eu quero ir! - Eric grita com todas as suas forças. Christian assusta-se - Que droga! Até parece que ninguém me ouve! Que eu sou uma cobaia e que podem fazer o que quiserem comigo! Vocês destruíram a minha vida! Agora eu sou vítima de escolhas que eu não fiz! Que vocês fizeram sem me perguntar se eu queria!!!!

Christian levanta-se gritando:

- Por acaso você escolheu nascer branco, loiro e de olhos azuis?

- Verdes...

- Que seja... Você escolheu os seus pais? Escolheu nascer no Brasil? Escolheu o seu nome? Não! A sua vida é repleta de escolhas que você não fez! São essas escolhas que dizem quem você realmente é, e não aquelas que você escolhe por sua própria vontade!!! Muito bem: se você quer ir para a casa que um dia foi sua, então nós vamos ir, mas eu já vou lhe dizendo que você não vai gostar do que vai ver!

Neste momento, Eric avança sobre Christian, apertando bem suas mãos contra o pescoço do albino.

- Escuta aqui, sua marica, eu não quis te ofender...

- Marica era a tua mãe...

- Não fala assim dela!

Ao gritar, Eric soca a face de Christian, o qual empurra-o para baixo. Eric tenta bater em Christian e vice-versa. Os dois acabam rolando no chão, tocando socos e pontapés.

- Não falar o quê? É a verdade!

- Cala a boca!

- Você não é especial... é só mais um! Só um João Ninguém que vai morrer no primeiro dia!

- E você é especial, por acaso?

Os rostos dos dois garotos estavam a uma distância mínima. Eric estava em cima, rangendo os dentes de raiva. A saliva escorria-lhe pelo canto da boca.

- Isso... sinta raiva de mim... pense que vai ter que ficar a eternidade toda comigo...

- Eu prefiro morrer a isso!!!

- Você já está morto... mas você pode me matar... siga o seu destino... liberte o seu instinto assassino...

- Eu não tenho um instinto assassino...

- É o que vamos ver.

Christian impulsiona-se para cima. Ele e Eric saem voando na vertical. Eric bate no teto e os dois voltam a cair. Ficam de pé. Eric tenta socar Christian, mas este, aparentemente, sabe cada movimento de Eric e defende-se com os punhos.

- Isso é o melhor que consegue fazer?

Instintivamente, Eric estende a mão esquerda. Uma faca que estava sobre a mesa voa em sua direção. Eric a pega na mão e avança contra Christian, que solta uns gemidos tímidos, seguidos de um meio sorriso. Os dois olham-se face a face por vários segundos, quando Eric lentamente olha para baixo e vê as suas mãos segurando o cabo da faca enterrada naquele abdome.

- Meu Deus...

- Isso... é isso que você tem que fazer... - Christian segura nas duas mãos de Eric e as puxa - Compreende agora o seu destino? - aquela faca sai, tingida de escarlate. Eric suspira fundo e nervoso - Você é um assassino agora. O que você fez, era o que devia ser feito. É inevitável, é o seu instinto de sobrevivência potencializado ao máximo. - Eric olha, respirando pela boca, cada vez mais forte e nervoso para Christian, que não demonstra dor alguma - Mas o que você precisa entender é que, assim como você pode ferir, - Christian transforma-se em um esqueleto. Eric impulsiona-se para trás, gritando assustado. O esqueleto transforma-se em pó, que atravessa as pernas de Eric e se reconstrói atrás dele. Eric vira-se assustado. Aquele ser cadavérico volta a ter as feições de Christian - você pode curar.

Christian levanta a camisa. Eric observa a barriga dele, sem nenhum ferimento.

- Como foi que você fez isso? - pergunta assustado e em voz baixa.

- Isso é uma coisa que todos conseguimos fazer. Basta querer. Basta pensar nisso. Temos três formas: a humana, o esqueleto e as cinzas. A forma humana para caminhar entre os humanos; a forma esquelética para assustá-los, e as cinzas para eles não notá-lo. A forma humana é a que consome mais energia. É por isso que nós nos transformamos em cinzas quando vamos dormir. Para estarmos prontos para o dia seguinte.

- Eu nunca vou fazer uma coisa dessas...

- Ah, vai, hoje mesmo vai.

- Bem, mas de qualquer forma...

Eric põe a faca ensanguentada sobre a mesa. Antes, porém, de concluir o movimento, Christian saca uma outra faca das costas e, num golpe rápido e certeiro, corta a mão direita de Eric.

- Ai! O que foi que você fez? O que é isso?

- Continue olhando... - Christian ordena com a maior calma do mundo.

Eric olha para o seu braço cortado e a mão caída no chão. A mão seca e vira cinzas, atraídas pelo resto do corpo; Eric vê os ossos da mão reconstruírem-se e serem envoltos pelos nervos, pela carne e pela pele. Eric passa a outra mão naquela que foi reconstruída, movimentando todos os dedos.

- Está novinha... - diz Christian - Agora, responda sinceramente: você sentiu dor?

Eric olha para Christian, com os olhos arregalados, acenando a cabeça negativamente.

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