"Dizem que quando nascemos nossas vidas traçam
um caminho que leva direto ao ralo.."
[Cidade das Ilusões (Fat City, 1972). Dir: John Huston.]
Degradações. Há degradações por todos
os lados. Degradações como as da visão que estou tendo
agora, sob um viaduto no bairro do Brás. O visual aqui é deprimente,
ainda mais a esta hora, um domingo à noite.
Eu sou um homem sem importância. Sou decadente e degradante como o espaço
sob esse viaduto. Há marcas de degradação por todo o meu
corpo: meu cabelo, meu hálito, minha pele, minha barba, o cheiro do meu
mijo que denuncia o que bebo.
Ninguém, especificamente, é culpado por essa minha situação.
Ninguém além de mim mesmo, claro.
Vivo da maneira que escolhi: moro em uma garagem e nela trabalho. Trabalho medíocre,
por sinal. Mas uma mediocridade escolhida, calculada. Vivo em uma garagem, faço
dela um bazar. Para que combine ainda mais com o meu estado desanimador, faço
questão de não limpar o lugar, nem o pó eu tiro. As prateleiras,
por exemplo, estão todas imundas. Há quem goste, garanto.
Sou um homem sem importância. Idealizei um grito, um protesto, mas ele
não atingiu a intensidade que eu esperava. Não tenho atrativos
físicos, assumo: faço questão de maltratar meu corpo. Não
como direito, não durmo bem, bebo, fumo. Gosto de ser assim.
Gosto, sinceramente, de ser assim, ainda mais agora que não te encontrei.
Você, em quem eu depositei o resto de esperança de voltar para
a realidade. Você, que eu via, tão triste, vendendo doces no metrô.
Você, de quem eu comprava chocolates na inútil intenção
de ajudar... Sim, moço, conheço ela sim... Inútil
intenção de ajudar, seguida hoje de estúpidas tentativas
de achá-la... Os caras do metrô pegaram ela. Não vai
mais vender doces aqui. Eu também tô marcando. Qualquer hora eles
me pegam...
Hoje, enterrei de vez a última chance de mudança: você.
Me sinto um lixo por dentro e por fora. Repugnante...
Mas, se sou tão repugnante, por outro lado, também não
sou muito diferente do resto. Há degradação aqui no Brás,
como há degradação nas empresas...
- Bem, senhores, acho que terminamos a reunião, tratamos de todos os
assuntos, não é? Edgar, conseguiu tomar nota de tudo para a ata?
- Sim, senhor, envio hoje mesmo.
- OK. Ahhh, aproveitando, está tudo certo para a festa de fim-de-ano,
Adalberto?
- Só falta acertar a troca da marca do chope. O senhor disse que não
gosta desse que compramos, então...
- Não, Adalberto, fecha com esse mesmo. É ruim, mas é bem
mais barato e a peãozada toma qualquer coisa.
- Tá bom, seu Alfredo, fechamos com essa, então.
- Sabe, Adalberto, uma curiosidade: quando a cervejaria que faz esse chope lançou
a primeira cerveja em lata deles, eu comprei uma caixa. Quando fui beber, era
horrível. Pensei em jogar tudo fora, só que aí eu tive
uma ideia melhor, dei para o caseiro que cuida do meu sítio. Reeeee,
e o cara ainda agradeceu...
Há degradação nas noites, quando vejo pessoas como eu,
detonando o corpo com drogas e bebidas. Há degradação em
um shopping ou supermercado, onde pessoas podem entregar a alma ao consumo.
Há degradação espiritual, como, por exemplo, nos templos,
nas igrejas, nos cultos, nos falsos pastores, nas falsas promessas de paraíso
- compradas com o dinheiro dos fiéis. Há degradação
nas famílias...
- Desculpem interromper.
- O que foi, Patrícia?
- Telefonema para o Edgar, seu Alfredo. É sua irmã, Edgar.
- Vai lá atender, Edgar.
- Não, seu Alfredo. Patrícia, fala para ela que eu ligo depois.
- Acho melhor você atender, ela parecia nervosa...
Há degradação nas famílias... A minha? Abandonei...
- Des... desculpe, seu Alfredo...
- Que foi, Edgar?
- Me... meu pai... meu pai acaba de falecer...
Há degradação urbana e moral de todo o tipo. Degradações
como as que vi durante todo este domingo. Degradações que me trouxeram
aqui...
***
Nunca abro o bazar aos domingos, por isso sempre saio aos sábados
à noite. Quase nunca durmo aos sábados. Ontem não foi diferente.
Bebi a noite inteira, não dormi.
Hoje, pela manhã, decidido a te procurar pelos metrôs, quando cheguei
em casa, nem me deitei; saí novamente. Queria te achar, confessar o meu
desejo, ainda que ingênuo e inútil - vejo agora -, de te erguer,
de te ajudar. Desejo de construir com você uma outra vida, nem que tivesse
de passar por cima de toda degradação...
***
Nove horas da manhã. Estou em uma praça no centro da cidade.
Este é um lugar que foi construído para lembrar a cultura. Tudo
aqui deveria lembrar cultura e artes. O que se vê, porém, são
tristes estátuas de escritores, filósofos, poetas - todas deterioradas,
sujas, maltratadas. O que se sente é tristeza por uma praça imunda,
fétida e completamente abandonada em plena manhã de domingo. Envolvidos
pelos cheiros de mijo e de merda humanos, e ao lado de muitos sacos de lixo
deixados no concreto molhado da praça, dois mendigos conversam. Eu passo
a observá-los sem que me vejam.
- Verdade, Zé, pô, acredita!
- Nem fodendo, Jabá, num vem com papo não.
- Verdade, home. Olha aqui ó!
- Que isso?
- Meu hollerith. Tô trampando. Auxiliar de almoxarifado. Olha aqui ó...
comecei no fim do mês passado.
- Eles sabem que cê é albergado?
- Eu tive que dizer... num teve jeito... mas tá tudo bem.
- Se tá trampando, por que qué grana?
- Zé, tô sem nada. Acabou. Eu recebi só dez dia de salário.
Entrei no fim do mês. Só dez centavo, Zé, por favor.
- Tô indo pra uma boca de sopa, se tá com fome, vem.
- Zé... num é fome... é... só dez centavo... num
vai te fazê falta.
- Cê vem botá banca que tá trampando e depois vem pedi dinheiro?
Tá achando que tem trouxa aqui?
- Zé... preciso bebê. Zé... uma... uma pinga, não
vê como tô tremendo?
- Qué pinga, vagabundo? Paga pra tê!
- Zé... só uma... só uminha. Cê tá trampando
que eu sei. Tem dinheiro...
- Tô trampando? Olha aqui o meu trampo, seu viado.
- Que... que... que isso, Zé? Afasta isso de mim, home. Põe esse
canivete pra lá.
- Tá aqui o meu trampo, trouxa. Tô roubando. Mato se for preciso.
- Zé... uma pinga... só uminha.
- Vem cá, vem. Já guardei o canivete. Encosta no meu peito. Quero
te mostrá uma coisa.
- Zé... que isso debaixo do teu casaco? Tá com a forma de... Zé,
uma garrafa. Cê tem uma garrafa... Sabia que cê num ia deixá
eu na mão...
- Calma lá, Jabá. Segura aí.
- Zé... só um pouquinho... só uminha.
- Tá, tá bom... Ajoelha!
- Qu... Qu... quê?
- É surdo? Ajoelha!
- Na... não. Aí já é demais.
- Então tá, vou indo.
- Nã... não, Zé. Tá... tá bom. Ajoelho...
olha, tô ajoelhado. Tá bom assim?
- Rá, rá, rá, rá... Assim que eu gosto... De quatro!
- Que... foi, Zé?
- De quatro! Já!
- Tá... tá bom. Tô de quatro, Zé. Dá a pinga
agora, dá. Dá! Dá! Dá!
- Late!
- Nã... não, Zé. Não... isso não.
- Late! Late! Late! Late, filho da puta!
- A... A... au. Au, au, auuuuu... Tô latindo, Zé. Tô latindo.
Au, au, au, au...
- Rá, rá, rá, rá... Balança o rabinho agora!
Num tem rabinho? Balança a bunda, então!
- Não, Zé... não. Uminha... uminha... por favor.
- Abaixa! Abaixa a cabeça! Isso... bom menino. Vai ganhá ossinho.
Vou molhá a mão na pinga e você lambe, tá?
- Tá... tá bom.
Zé abre a garrafa e despeja o líquido na mão. Jabá
começa a lamber. De repente, se afasta. De joelhos, começa a chorar.
- Qu... Que é isso, Zé?
- Água, trouxa. Rá, rá, rá, rá...
- Pára, Zé. Pára! Uminha... uminha, só...
- Não tenho pinga, idiota. Isso aqui é água.
Jabá esperneia. O lixo no chão da praça começa
a sujá-lo ainda mais. Zé, soluça de tanto rir, perde o
ar, engasga.
- Ahhhhh... Como cê é trouxa, né, Jabá? Tô
indo, tchau!
- Zé, espera...
- Que é? Num tenho pinga, já disse. Tô indo pra boca de
sopa, vamo?
- A minha... A minha Bíblia... Foi você, né?
- Quê?
- A minha Bíblia... Quando a gente tava no mesmo albergue... ela sumiu.
Foi você, né? Você pegou ela e vendeu, não foi?
- Não.
- Foi sim. Você pegou a minha Bíblia. Vendeu ela. Comprou cachaça
com a minha Bíblia. Num devia ter feito aquilo não, Zé!
Não! Não!
Jabá levanta-se. Gritando, vai na direção de Zé:
- Aquela Bíblia... foi minha mulhé que me deu. Tinha dedicatória
e tudo. Zé, cê num tinha o direito, não. Vendê a minha
Bíblia pra comprá pinga...
- Sua mulhé te deixou, trouxa!
- Mas tinha dedicatória da minha filha, também, Zé...
- Sua filha é uma puta, Jabá. Foi comida mais de vez pelo pessoal.
E o pior é que ela gosta...
- Qu... que cê tá falando, filho da puta?
Jabá agarra o pescoço de Zé. Os dois se embolam. Jabá
treme muito. Zé é mais forte. Jabá leva a pior, está
no chão. Zé pega um pedaço de madeira de um caixote jogado
na praça. Começa a bater, bater, bater com muita força.
Jabá não se mexe mais. Sangra. Implora:
- Ai... ai... ai... Ai, Zé... pára...
- Toma, filho da puta! Toma!
Jabá sangra muito. Não reage. Respira com dificuldade.
Eu saio correndo. Desço uma avenida. Vejo, a distância, um posto
policial. Peço ajuda.
***
Quando voltei com o guarda, a praça estava vazia. As provas de que
a briga tinha acontecido eram as marcas de sangue e as lascas do pedaço
de madeira que Zé usou para espancar Jabá.
- É sempre assim. Todo dia uma briga. Eles tão sempre bêbado.
- O que bateu disse que ia pra uma boca de sopa. Se a gente for lá...
- Cê acha mesmo que a gente vai atrás de mendigo em boca de sopa?
Sabe quantas dessas têm por aí? Amigo, esse tipo de coisa acontece
todo dia. Aos montes... Vai pra casa, vai.
***
Ainda que o guarda se negasse, decidi procurar por uma boca de sopa e tentar
achar o Zé.
A primeira boca que achei ficava em uma praça, onde se via um museu e
uma grande área livre. Voluntários, vestindo camisetas estampadas
com uma cruz verde-e-amarela, organizavam uma fila de mendigos.
Várias pessoas visitavam o museu. No centro da praça, um cordão
de isolamento delimitava o espaço que devia ser ocupado pelos mendigos.
De um lado, os visitantes do museu descontraíam-se em um agradável
café; do outro, os mendigos na fila da sopa.
Percorro a fila à procura de Zé. Não acho. Vejo duas moças
fotografando a praça e os prédios. Canso de procurá-lo
entre os mendigos. Na verdade, nem sei ao certo o que faria se o encontrasse.
Decido entrar no café. Sento-me e peço uma cerveja. Ao lado, várias
pessoas da organização de voluntários que distribuem a
sopa. De onde estou, posso ver e ouvir duas pessoas da associação,
conversando sobre os resultados do trabalho:
- Hoje quebramos o recorde de litros de sopa. Não deixa de anotar tudo
direitinho, hein! Aí a gente manda um e-mail para o diretor.
- Tá anotado, claro. Você acha que ia esquecer?
- Que acha de vir mais vezes no mês? Uma só não é
pouco?
- Olha, veja bem. Começamos há três meses, certo? Então,
no primeiro distribuímos metade do que distribuímos no mês
seguinte, lembra? Hoje, distribuímos o dobro do segundo mês.
- A quantidade de mendigos vem aumentando. Um fala para o outro que fala para
o outro... No boca-a-boca, a fila vai ficando cada vez maior.
- Pois é. Se viermos aqui toda semana, pode ser que a gente não
consiga dar conta. É bom ir com calma.
- Também tem o problema de os mendigos enjoarem da sopa, né?
- Isso eu duvido. Eles não ligam de não variarmos. Acho que para
quem não tem nada...
- E a campanha do cobertor?
- Arrecadamos mais de 500 paus. Mais um recorde. Mais pontos.
- Segunda, é bom passar isso por e-mail também. Nossa seção
vai ficar bonita, não?
***
Quando saí do café, a boca de sopa já tinha se dispersado.
A praça estava com as marcas da fila: lixo espalhado pelos cantos, restos
de sopa, pedaços de papelão.
As duas moças ainda estão fotografando os prédios. De repente,
uma velha aparece e fala com uma das fotógrafas:
- Moça, moça! Lembra de mim?
- Desculpe, senhora, não me...
- Você fez um trabalho de faculdade comigo, lembra? Eu sou a ex-professora
que mora na rua, vende café e escreve poesia, lembra?
- Ahhh, sim...
- Você fez uma matéria comigo, foto e tudo. Coisa de três
anos... É que aconteceu um negócio chato comigo e achei que você
pudesse me ajudar. Os rapas levaram minhas coisas. Eles não entendem
a diferença de vender contrabando e vender café. Então,
se me ajudar, sei lá, fazer uma matéria de jornal e...
- Desculpe, é que temos que...
- A matéria que você fez comigo... tão linda... Achei que
você podia me ajudar... Fiz mais poesias, quer ver? Tenho algumas de cor,
pos...
- Senhora, vou deixar o meu cartão, pode ligar depois e...
- Eles não sabem a diferença entre vender café e contrabando,
droga e... Eles não sabem que escrevo poesia, que fui professora, que
fui trabalho de faculdade... Eles não sabem que sou estudada, que fui
professora. Me ajuda, me ajuda, por favor, me...
As moças entram no café. A velha as segue. Eu fico parado na
praça, olhando para a entrada. Um segurança, minutos depois, sai
de lá. Ele trás a velha pelo braço. Ela grita: ... Eles
não sabem que escrevo poesia, que já fui trabalho de faculdade,
que já fui professora... Eu só quero a minha banquinha de café
de volta...
***
Eu segui a velha até uma igreja. Havia uma grande movimentação
de pessoas. Não sei dizer se a missa já tinha acabado ou não;
muita gente entrava, muita gente saía da igreja. Perco a velha de vista.
Em frente, um mendigo aleijado pede esmolas... Uma moeda, por favor... Deus
te pague... Eu coloco uma moeda no prato que ele balança... Deus
te pague...
O número de pessoas circulando aumenta. Um homem com uniforme de segurança
sai da igreja. Faz sinal para o mendigo.
Tento achar a velha mais uma vez. Não consigo. Sentindo-me cansado, vou
para um bar, sento e peço uma cerveja.
Uma mulher entra no bar, traz uma menina pela mão. Pela aparência,
reconheço que são romenas. Já há algum tempo temos
visto romenos pelas ruas de São Paulo. Esse povo tem problemas políticos
no seu país, exílio, talvez. Elas pedem água no balcão
do bar, bebem e saem.
Quando me sinto mais descansado, volto para a entrada da igreja. Encontro mais
uma vez o mendigo aleijado. As romenas também estão perto dele.
A mulher retira alguns folhetos de dentro de uma bolsa, ajeita-os e entra com
a filha na igreja.
O segurança aparece, chamado pelo mendigo. Os dois cochicham. O segurança
coloca algumas moedas no prato do mendigo, depois entra na igreja.
Em minutos, ele volta. Trás as romenas pelo braço. A mulher, nervosa,
discute em um português sofrível. Só entendo o que ele fala:
- Fora! Não pode pedir esmola na igreja. Fora! Já é a segunda
vez que pego vocês.
A romena tenta explicar algo relacionado aos folhetos que trazia e provavelmente
tentava distribuir na igreja.
- Não dá, sinto muito. Não pode incomodar as pessoas. Tchau!
Vencidas, elas vão embora. Quando não as vejo mais no caminho
que tomaram, volto-me para o segurança:
- Você... você paga para aquele mendigo vigiar a entrada da igreja.
Dá esmola para que ele dedure as pessoas que entram lá para pedir
dinheiro.
- Epa, amigo. Peraí, não sei do quê cê tá falando.
- Sabe sim, eu vi. Ele dedurou as romenas para você. Eu vi você
dar umas moedas para ele.
- Tira o braço de mim, amigo, senão vou ter de chamar a polícia.
- Você... os dois... você e aquele mendigo... vocês são
uma merda só.
- Calma aí, colega. Tá ofendendo... Ei, cê tá cheirando
a cachaça. Tá bêbado a essa hora da manhã?
- Você não tem vergonha de explorar um mendigo aleijado? Não
tem vergonha de dar esmola para ele fazer o seu trabalho?
- Chega! Chega!
Ele me empurra. Quase caio. Outros dois seguranças me cercam.
***
Da estação Sé para a Barra Funda. Da Barra Funda a Itaquera. De Itaquera a Sé. Da Sé ao Jabaquara... Sim, moço, conheço ela sim... Jabaquara a Tucuruvi... Era uma que vendia uns chocolates. Uma moça bonita, nova, não é?... Tucuruvi a Sé... Os caras do metrô pegaram ela. Não vai mais vender doces aqui... Sé a Itaquera... Eu também tô marcando. Qualquer hora eles me pegam... Itaquera ao Brás. Desço. Já é noite.
***
Minha situação é deprimente. Assim como esta região
em que estou. Não sei por quê vim aqui a essa hora da noite.
Parado, em uma praça de puro concreto, observo um mendigo remexendo o
lixo.
Quando ele se cansa, sai da praça e, desolado, anda em direção
a um viaduto. Eu o sigo. Ele, talvez, esteja indo dormir lá embaixo.
Talvez eu deva ir com ele. Quem sabe não deva mais voltar para o meu
bazar. Quem sabe ficar ali não seja mais apropriado. Minha situação
é péssima, por que, então, não me enfiar em uma
brecha no concreto, espécie de ferida da cidade?
Estou a poucos passos do mendigo. Nós estamos bem embaixo do viaduto.
Olhamos decepcionados para o chão...
Um piso feito pela própria Prefeitura para espantar mendigos que queiram
dormir sob o viaduto. Concreto de forma pontiaguda cobre todo o espaço.
Sobre esse piso pontiagudo e áspero, despejaram asfalto derretido. Devem
ter feito isso há pouco, o líquido parece bastante quente e o
cheiro é muito forte.
Em silêncio, o mendigo passa a observar um dos pilares de sustentação
do viaduto. Há vários cartazes colados lá. Um dos cartazes
é de uma escola infantil. Não sei se ele sabe ler, mas eu consigo
entender as palavras do anúncio, ainda que o cartaz esteja rasgado...
Continuamos calados... apenas observando o cartaz da escola infantil: "Venha
para o Jardim das Esperanças...".
***
Degradações. Há degradações por todos os lados... Dentro e fora de mim...
***
Sou um homem sem importância e acaba aqui a minha busca. Idealizei
um grito, um protesto, mas ele não atingiu a intensidade que eu esperava.
Eu quis te encontrar; você, que, tão tristemente, eu via pelos
metrôs. Te encontrar para tentar construir com você, quem sabe,
sonhos... dias melhores...
Minha moral está baixa, tenho apenas degradações... fragmentos
com os quais poderei construir, ao invés de sonhos, pesadelos. Pesadelos
de seres degradantes, como todos nós...