A Garganta da Serpente
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Desonrados

(Arlindo Gonçalves Marrão Junior)

"Eu não me inclinei diante de ti, eu me inclinei diante de todo sofrimento humano..."
(Fiódor M. Dostoiévski)

São Paulo, IML. Tarde de uma sexta-feira.

Pietro lava as mãos por necessidade, mas também como uma forma de descontrair antes da seção exploratória. Geralmente, nesse momento, o Demônio parece sussurrar na sua cabeça... Vá, vá logo, estamos ansiosos para ver o corpo, travar contato...

Encharca o rosto para espantar a voz interior... Veja, estamos eufóricos. Podemos até contar piadas para diminuir o estresse, mas queremos mesmo é ficar tensos. Vai logo, começa. Sei que você quer tanto, não? Sei, também, que você adoraria explorar o corpo de alguma daquelas suas alunas lá da universidade, né? Tanto vivas quanto mortas, não é mesmo?

- Vamos! - disse para os dois auxiliares, decidindo começar os trabalhos.

- Tão logo começa, tão logo acaba. Se é que acaba, não é mesmo?

Pietro não responde à provocação, apenas olha severamente para o auxiliar, fulminando-o na hora... Sim, vai, vamos! Libere-nos, até o auxiliar tá a fim...

Coloca as luvas apressadamente... Não me diga o que teremos hoje, tá? Quero adivinhar se será homem ou mulher, tá bom?

Confusão mental. Talvez cansaço... Dizem que precisamos de férias, mas sabemos como ficamos mal sem vir aqui, não?

- Chega! Vamos começar logo.

- Sim, só estamos esperando o senhor, doutor Pietro - respondeu um dos auxiliares enquanto o outro já vinha entrando com o corpo.

Depositam o cadáver sobre a mesa de autópsia... Enfim, é chegada a hora. Não se segure, certo? Libere-se, sim, libere-se...

Quando Pietro olha para o corpo... Ihhh, dei azar hoje, hein? É homem, reeeee, e bem velho, reeee...

São Paulo. Manhã de um sábado.

Filosofar pateticamente a respeito da rotina da sua vida. Era isso que Pietro fazia todos os dias ao amanhecer. A questão colocada era que, uma vez tendo os Demônios sob controle, poderia pensar em coisas mais triviais. Para ir às aulas matinais de medicina que ele ministrava, precisava vencer a preguiça e o processo sempre repetitivo de tomar uma ducha, vestir-se e engolir um medíocre café da manhã.

No IML, como legista, sempre encarava corpos geralmente velhos, mutilados, fétidos e, às vezes, em início de decomposição.

Na universidade, a turma de alunos era quase sempre desinteressada e insensível. Não condenava o comportamento deles. Primeiro, porque procurava combater as generalizações - até que havia raros alunos interessados e motivados. Segundo, porque não cabia a ele reprovar ninguém por falta de sensibilidade com os cadáveres que eram utilizados nas aulas - isso poderia comprometer o andamento dos trabalhos. Por fim, ele mesmo, muitas vezes, mantinha total interesse e sensibilidade nos membros presentes às aulas de anatomia - não nos membros dos cadáveres das mesas geladas, mas sim naqueles muito vivos e fartos de algumas alunas.

Pensar em condutas exemplares parecia-lhe uma hipocrisia. Os hábitos de Pietro, muitos dos colegas de profissão e alunos reprovam. Fuma, está sempre fora de forma, não cuida da alimentação e prefere ler histórias em quadrinhos a compêndios de medicina.

As coisas piorariam muito se soubessem de seu estranho prazer em... manipular... os corpos.

Aquele era um dos Demônios. No IML, onde trabalha como legista, abusa dos corpos sempre que pode. Nas aulas da universidade, consegue conter melhor o Demônio; o infame sempre toma força, acalmando-se somente em casa, com uma, duas doses ou uma carreira de cocaína.

Casa... e se alguém da universidade aparecesse de surpresa? Realmente, se conhecessem seu lar, ele não teria qualquer direito a questionar a conduta de ninguém. Se um dia entrassem lá, constatariam, pela quantidade de garrafas, a sua peculiar habilidade em domar um Demônio dando espaço a outro, talvez ainda mais feroz.

Mas essa era uma das práticas que ele mantinha em segredo. Bebidas... somente era visto flertando com elas em breves ocasiões, em pequenas doses. Ele sempre teve o Demônio Maior sob controle e segurança; era difícil, Deus, como era difícil segurar o segundo. Lembrava de uma ocasião - um coquetel de lançamento de um livro escrito por um amigo dos tempos da universidade - em que, pela única vez, não conseguira se relacionar com o segundo Demônio em público. Simulou passar mal, desculpou-se e foi embora para casa, para os braços do trevoso em forma de álcool.

O cigarro? Esse não tinha jeito de segurar. O Demônio de fumaça, mesmo hoje, parecia ser mais tolerado em público. Apesar de os outros condenarem um médico e professor por fumar, em outras palavras, por fazer, diametralmente, o oposto do que manda a profissão, ainda assim, pareciam suportar melhor a presença da fumaça do que o desconcerto que a bebida em excesso causa.

Mas quem é bom?... pensou enquanto dava as primeiras tragadas já em frente à universidade - na região da Mooca -, vinte minutos antes de mais uma aula de anatomia naquele sábado de manhã.

Dentro do carro, Pietro distraía-se folheando o jornal. Um vulto chamou sua atenção. Olhou por cima das manchetes e viu um velho prostrado do lado de fora do carro. O tipo vestia-se de forma comum a um morador de rua, no entanto, um chapéu estranho de cor berrante destacava-se, cobrindo parcialmente seus olhos e dando-lhe um semblante esquisito. Pelo seu mirrado porte físico, porém, aquele visual inspirava mais pena do que medo... Maldita cidade, não há como passar dois minutos na rua sem que alguém venha pedir dinheiro... pensou enquanto abaixava a cabeça para dobrar o jornal sobre o colo e se preparar para sair dali. Em questão de segundos, quando levantou a cabeça novamente, viu que não havia mais ninguém por lá. Vasculhou todas as direções, mas não viu ninguém... Deus, e ontem eu nem bebi. Deve ter ido para o albergue ou para a praça...

Nas proximidades da universidade há uma espécie de albergue que distribui sopa para mendigos. O sujeito do chapéu poderia ter ido para lá, ou mesmo para a praça ao lado. Pessoas da universidade vinham reclamando do albergue, diziam que a presença dele tornava a área perigosa, uma vez que os pobres, após tomarem a sopa, ficavam perambulando pela praça. Ele mesmo, Pietro, já tentara se informar da possibilidade de forçar a transferência da instituição para longe do campus... Isto aqui está ficando insuportável, não se pode andar sem que alguém venha pedir esmola. Pensam que podem se apropriar da praça? Que direito eles têm? Pagamos impostos, temos o direito de exigir segurança... eram exemplos dos comentários que se ouvia, expressando o pensamento coletivo das pessoas da universidade.

Pietro saiu do carro e seguiu para a banca de jornais, a fim de comprar um novo maço de cigarros... Ahhh, lá está ele... pensou ao avistar mais uma vez o velho do chapéu. Agora a figura esquisita estava distante, olhando para um outdoor. Pietro estranhou a forma compenetrada com que o velho observava o anúncio. Tentou ler também, mas a sua posição não permitia a visualização das letras ou de qualquer imagem da peça publicitária... Ainda bem que não estou vendo coisas, você está aí sim, menos mal... O rapaz da banca o interrompeu:

- Moço, seu troco.

- Opa, obrigado! - agradeceu, enquanto automaticamente desviava o olhar.

Já não ligava tanto para o velho, mas ficou curioso para saber que anúncio era aquele. Andou até um ponto onde pudesse observar melhor.

Manteve o velho sob a mira do olhar; pelo menos dessa vez não houve nenhum desaparecimento mágico. Pegou distância até que o campo de visão permitisse a leitura do outdoor. Deu de ombros ao descobrir o que era. Apenas um anúncio, da própria universidade: Prove que dinheiro traz felicidade. Ganhe muito.

Sorriu um pouco e pensou como aquilo poderia provocar as pessoas que passassem por ali todos os dias. Partiu para a aula.

São Paulo, IML. Tarde de uma sexta-feira.

A vista de Pietro começou a escurecer, seu corpo foi tomado por uma tontura, uma vertigem. O fato, no entanto, não foi notado pelos auxiliares. Após a tontura, veio a vista turva e embaçada, sensação que parecia transportá-lo para longe.

Ele não sentia mais o ambiente externo, apenas começou o trabalho. Neste início de autópsia, o Demônio costumeiramente não o incomodava tanto, dava uma trégua como quem, generosamente, dá ao outro a exclusividade de saborear os melhores momentos na companhia de algo de que se gosta ou se quer muito. Pietro, então, parecia transportar-se...

As lembranças da infância não pareciam doces. Ele queria que elas fossem açucaradas como os copos sujos sempre deixados pelo pai para a mãe lavar.

Se não eram doces, os copos enganavam muito bem as formigas e as moscas que passavam pela pia da casa em Mogi.

Sempre tinha a curiosidade de saber o que era aquilo que o pai bebia. Quando ele e a mãe saíam, o menino pegava o copo e cheirava. O que sentia era qualquer coisa, menos doce... Doce é coisa que estraga os dentes, Pedrinho... respondia o pai quando o menino pedia que comprasse balas... Meu filho vai ser médico ou dentista quando crescer, não vai ser que nem o pai que é taxista, né filho?... dizia o pai, envergonhando o menino que sempre era levado para o bar.

Não dá isso pro menino, Zé... brigava a mãe quando o pai dava conhaque para o menino...

São Paulo. Manhã de um sábado.

Na praça de alimentação da universidade, Pietro tomava um café e relaxava após a aula que dera.

Uma moça aproxima-se e coloca as mãos sobre os olhos dele.

- Advinha quem é?

- Daniela?

- Achou! - beija Pietro na boca.

- Calma, Dani, podem ver a gente.

- Ahhh, vai. Foi rápido, ninguém viu, não. Tudo bem?

- Sim, normal... Linda moça, hein, doutorzinho?

- Tudo certo para a gente ir lá?

- Claro, já reservei a casa... Veja como a pele dela é linda... Chega!

- O quê?

- Nada, desculpe, é que...

- Falei alguma coisa errada?

- Não, acho que é só um pouco de cansaço...

Daniela levanta-se e, sorrindo, começa a massagear os ombros de Pietro.

- Calma, já está chegando o final das aulas. Depois, então, é só alegria.

- Sim, tá certo. Você vai adorar o lugar que arrumei.

- Litoral norte, né?

- Sim.

- Bom, está ótimo ficar massageando seus ombros, mas vou ter de ir. Vem?

- Não, acho que não é bom nos verem saindo juntos. Vá na frente. Eu te ligo e nos encontramos em cinco minutos.

- Tá bom, meu celular tá carregado, pode ligar.

- Tá, te ligo.

- Até mais.

Daniela beija o rosto de Pietro. Sai em seguida.

São Paulo, IML. Tarde de uma sexta-feira.

O cadáver é velho, bastante maltratado... os dentes estavam imprestáveis.

- Está muito magro, com sinais evidentes de desnutrição - explicava.

Começaria a pior parte. O Demônio permanecia sob controle, parecia que tudo aconteceria normalmente. Pegou o bisturi e, com força, começou a cortar e abrir o corpo.

As lembranças da infância não poderiam mesmo ser doces. Na mente do menino, o pai, decerto cansado de tanto deixar os copos com fundo açucarado para a mãe limpar, desapareceu... Papai cansou de enganar as moscas e as formigas?... perguntava o menino.

As lembranças da infância em Mogi, realmente, não poderiam ser doces. Tudo lá durou pouco. Durou até o menino saber que o pai não se cansara de enganar as moscas e as formigas. O pai cansara-se de tanto sono, cansara-se de tanto beber naquela noite; cansara-se e dormira, justamente, no volante do táxi que se espatifou, proporcionando, além da gasolina do tanque, um corpo encharcado de cachaça para que o fogo tomasse força e a tudo consumisse.

Pietro suava enquanto retirava os pulmões e o coração do velho corpo...Reeee, parece que não é apenas o velho morto que está calado hoje, né, doutorzinho? Perdão, não quis atrapalhar, foi só uma brincadeira, meu médico está muito sério hoje, reee...

As lembranças da infância jamais poderiam ser doces. Quando deu por si, já não era mais menino, nem estava mais onde nascera, tinha vindo para a capital; não era tão longe, mas era diferente de Mogi. Em São Paulo, casara-se e aprendera o costume do pai, mergulhava na pinga sempre que podia.

Se aquele táxi não tivesse explodido, o pai talvez estivesse vivo. Vivo e frustrado. O menino não era mais menino e também passara longe de ser médico.

Em vez de pensar na faculdade de medicina, preocupava-se muito mais com o trabalho na fábrica, com a mulher, com o enteado, com o aluguel e com a cachaça que abria e fechava o dia.

Herdou o insalubre hábito do pai, ou seja, cansou-se e dormiu. Cansou-se e dormiu não no volante de um táxi, mas - não menos cruel - na máquina da fábrica, deixando lá, além de três dos cinco dedos da mão direita, o emprego, e, por ignorância de seus direitos trabalhistas, uma soma razoável recebida na rescisão, em decorrência dos danos provocados no equipamento.

Se parte da mão o deixou, os horrores não. Escapuliram-se pelos dedos que lhe faltavam, a mulher, o enteado e a casa.

Tentou, e como, abandonar o vício. Vencido pela dependência, doente e amargurado, viu fugir o resto de dinheiro; exauriu-se no fundo das garrafas esvaziadas. Foi parar na rua.

Já não era mais um menino, e sim um velho cujo cérebro havia sido maltratado pela dependência química e pela enorme solidão. Até tentou subsistir como marreteiro no centro da cidade; ganhou muito, não muito dinheiro, mas sim muito murro, soco e pontapé dos outros mais espertos de quem sublocava os pontos.

O último grande projeto foi vender doces nos ônibus, atividade que até deu certo, não fosse a fraqueza habitual com o álcool. Fraqueza que o fazia gastar o ganho diário nos bares.

Para chamar a atenção dos passageiros dos ônibus e vender os doces, arrumara um chapéu ridículo, colorido e deformado. Obviamente, isto não o ajudou muito.

Fragilizado e levado a um estado mental de semidemência, passou a fantasiar suas recordações de infância. Queria, então, poder voltar no tempo e ver as estrelas como na época em que ficava no colo do pai. Entretanto, deu por encerradas todas as tentativas de largar o vício. Chorava muito e entrava no perigoso território da autocomiseração quando decidira morrer...definhar...

Apagou todos os possíveis registros de sua pessoa, RG inclusive. A partir daquele momento, nada de comer, só beber.

Os intestinos repousavam sobre a mesa... Ahhh, doutorzinho, não quer abrir o cérebro? Não esquenta. Não deve mesmo ter grande coisa lá dentro, reee.

As lembranças da infância, infelizmente, nunca foram doces, mas o fundo dos copos era açucarado. Igualmente açucaradas talvez fossem as suas roupas agora, dada a quantidade de moscas que o rodeavam.

A primeira medida para chegar ao fim foi instalar-se próximo a uma padaria, ao lado do viaduto Guadalajara, onde dormia. Decidiu que não pediria nada aos clientes, nem aos funcionários da padaria. As cachaças que lá tomasse deveriam ser pagas por ele mesmo, não importava como. Rezava, porém, para que o fim chegasse antes que seu dinheiro acabasse. E o dinheiro foi acabando...

Numa das vezes que entrou na padaria, ele aproximou-se do balcão. Segurava uma moeda - por sinal, a última que lhe sobrara.

Havia um casal tomando café. O rapaz, corpulento, deixava à mostra os músculos adquiridos à custa de muita academia. A moça, por sua vez, devia imitar o visual de alguma artista.

O balconista, que o conhecia e sabia que ele fazia questão de pagar as cachaças, até tentou avisar, mas não houve tempo. De uma sacada só, o rapaz desferiu o golpe.

Velho e moeda voaram para fora da padaria. Traçaram trajetórias opostas e um nunca mais encontrou o outro... Que merda de cidade, não se pode andar dez metros sem que alguém venha pedir esmola...

Uma moça e um senhor caminhavam em direção a um sobrado que ficava no fim de uma pequena rua sem saída. Ao entrar, a moça olhou a figura imóvel em frente à casa. O homem disse a ela:

- É só um velho de rua, não faz nada, está aí parado já faz muitos dias.

- Me pareceu estranho. Veja só o chapéu!

- Não, pode confiar, não reage a nada, nem a chuva, nem a sol. Até tentei dar um prato de comida, deixei aos pés dele e está lá, intacto até hoje, pode conferir - concluiu e entrou na casa, sendo logo seguido pela moça desconfiada.

Muito tempo depois, ela saiu do sobrado, dessa vez veio só e encarou novamente o velho. Este retribuiu o olhar. Ambos encararam-se até que ele se curvou e tocou o chão com o corpo.

Deve estar bêbado. Onde vamos parar com toda essa gente na rua?...

São Paulo. Manhã de um sábado.

A velha entra na universidade e vai diretamente até a praça de alimentação. Lá, várias pessoas comendo salgadinhos e tomando café. Pára no balcão. Vê duas moças. Dirigi-se à que estava mais próxima:

- Bom dia. Minha filha trabalha aqui pra faculdade, trabalha na xerox, sabe como é? Ela disse que vocês tão precisando pro balcão.

- Sim, senhora, estamos precisando sim. Precisamos de alguém para trabalhar no atendimento do balcão, só um minuto que eu vou pegar a ficha de inscrição.

A velha ficou ruborizada ao ver a moça colocar sobre o balcão uma folha de papel contendo um monte de palavras confusas.

- Moça, você me desculpa, mas não sei ler nem escrever.

A moça perdeu a fala por um instante. Olhou com pena para a velha. Não sabia o que dizer. Tentou amenizar a situação:

- Senhora, desculpe, mas para trabalhar aqui tem de saber ler, escrever e fazer conta.

A velha parecia arroxear ainda mais. Não pelo fracasso da tentativa, mas pela vergonha que passou.

A moça da lanchonete ficou sensibilizada. Desanimada e envergonhada, a velha agradeceu a atenção, virou-se e sumiu devagar.

Pietro ainda estava no café e viu toda a cena. As duas atendentes começaram a conversar sobre a velha:

- Cadê a velhinha?

- Foi embora, não pôde preencher a vaga.

- Por quê?

- Porque não sabe ler nem escrever, não pôde preencher a ficha.

- Então ela foi pedir que alguém que saiba escrever volte com ela para preencher a ficha?

A moça olhou incrédula para a amiga, como quem não acreditava no que ouvia.

Pietro, acompanhando a conversa, sorriu maliciosamente. A moça, não se deixando afetar pelos comentários da outra, continuou seu trabalho.

- Ela vai trazer alguém da família, alguém que saiba escrever para preencher a ficha?

O sangue ferveu:

- Menina, não seja idiota! Ela é analfabeta, não pode trabalhar aqui.

Pietro quase não se segurava de tanta vontade de rir.

- Mas que mal tinha se a mulher dissesse o que preencher e a gente escrevesse para ela?

- Chega de papo, garota, tenho mais o que fazer. Vai, vai, vê lá o monte de pessoas para atender!

Pietro já estava totalmente descontraído por causa daquela cena. Dava-se por satisfeito, ainda mais após uma aula em um sábado de manhã; espreguiçou-se enquanto acompanhava as moças do café.

Sem querer, visualizou algo estranho. O velho do chapéu aparecera novamente. Ele estava no fim do corredor, imóvel e patético como da outra vez... É ele, não há como confundir agora...

O velho aproximou-se. Sem pedir licença, sentou em uma cadeira.

Pietro pensou em se levantar e sumir, ou mesmo pedir ajuda para que alguém retirasse aquele sujeito desagradável. O cheiro que vinha do mendigo enojaria até os estômagos mais fortes. O velho ficou paralisado, prostrado de forma semelhante ao momento em que ele se colocou em frente ao carro, ou em frente ao outdoor... Prove que dinheiro traz felicidade. Ganhe muito.

- Quem... quem é você?

Um cheiro de podridão partiu dos lábios do mendigo quando tentou, inutilmente, responder. Com dificuldade, levantou-se e olhou para Pietro; parecia que as palavras iriam enfim sair, mas ele acabou caindo sentado na cadeira, fazendo muito barulho.

Pietro tentou socorrer o homem, mas ficou paralisado de frio e sua voz tornou-se tão baixa que talvez ninguém, além do próprio mendigo, pudesse ouvi-lo. Olhou para os lados na esperança de que alguém viesse ajudar. Nenhuma pessoa parecia notá-los.

- O que você quer comigo?

- Desculpe doutor...eu... estou aqui meio que... arrependido de ter seguido o senhor... Não fique nervoso comigo, por favor.

- O que você quer?

- Doutor, um dia meu pai quis que eu fosse que nem o senhor. Um pouco diferente, eu sei, acho que... dentista... Meu pai tá morto... como o meu corpo... lá... naquele lugar que o senhor mexe nos mortos. O senhor abusou do meu corpo ontem, enquanto me cortava...

- No IML? Mas...

- Meu pai quis que eu entrasse pra faculdade, um dia... Por favor, não me julgue, não me perdoe também. Eu fui o que havia de pior... Leve o meu corpo... por favor, doutor... Leve o meu corpo a um fim melhor... não o humilhe mais como fez ontem. Eu sei, doutor, o senhor não vai fazer aquilo de novo, não é?

São Paulo. Madrugada de um domingo.

Pietro permaneceu em casa, apático o resto da tarde. Queria ir até o IML, mas tentava resistir. Sem conseguir dormir, passou a beber, fumar e cheirar continuamente até a madrugada.

Espalhadas pela sala, várias garrafas - apenas uma ainda estava fechada. Tentou alcançá-la, mas parou. Tinha sobre o colo uma antiga história em quadrinhos. Leu sua parte predileta: Em certos momentos, experimento uma sensação de vazio, uma solidão tão profunda, que parece incompatível com a vida.

Pensou no velho do chapéu... Leve o meu corpo... Não sabia se aquele encontro no café fora real ou fruto de alucinações, transtornos causados pela sua dependência de álcool e drogas, ou mesmo por sua consciência pesada.

Leu o último quadrinho da revista: Às vezes eu penso que a dor que eu sinto não é minha. 

A garrafa continuava na sua frente, como a seduzi-lo. Tentou tocá-la mas resistiu... Leve o meu corpo a um fim melhor... Não tirava essas palavras da cabeça. Gostaria que elas o tivessem purificado a tempo de fazê-lo honrar os corpos, seu corpo, sua alma; honrar desafortunados ou não, que agora soube que nada esperam, nada... além de não serem estigmatizados, nem tratados com desonra... Qualé, doutorzinho, vai amarelar assim? Só porque um puto morto veio te tentar, você vai parar de nos dar prazer?

A garrafa continuava na frente de Pietro... Abre ela, vai. Abre, bebe e vamos pegar o corpo do velho lá no IML, novamente, vamos!

São Paulo, litoral norte. Período de férias.

Casa agradável, vista para a praia. Noite fresca. Pietro, na varanda, permanece sentado em meditação. Uma garrafa no seu colo. No quarto, uma garota bem mais jovem que ele - sua aluna, Daniela -, dorme seminua. Ao lado dela, um pequeno canudo e resquícios de cocaína.

Pietro sai da varanda e vai até o quarto. Passa a observar a moça que dorme... Ééééé, doutor, ela parece morta, não? Como nós gostamos, não é? Transar com ela foi bom, não? E se ela estivesse morta, não seria melhor? Admita que sim, vai

São Paulo, IML. Madrugada de um domingo.

As mãos de Pietro percorrem lentamente o corpo do velho... O Demônio...Velho, quanta desonra em sua vida, não é? Mediquinho, continua, tá? Frio, ambiente tórrido... O Demônio... Quanta desonra você passou em vida, né, velho? Mas o que seria da humanidade se não existisse gente fudida como você para que ela olhasse e dissesse: “Nossa, coitadinho...?” Que seria da humanidade sem o que há de podre, o que há de bolor, o que há de fungo na madeira que um dia embalará todos eles, bem-nascidos, né? Os machucados do corpo... acariciados por Pietro... O Demônio... Você não deu certo e foi desonrado no fim da vida, mas o que seria do mundo se, de repente, parassem de dizer: “Não tenho por que reclamar da vida, olhe aquele coitadinho...?” Quantos iguais a você terão de nascer, sofrer e morrer para provar essa teoria? Os velhos dentes do cadáver, tocados por Pietro... O Demônio...Olhe para o meu doutorzinho. Ele é quem veio para provar que não haverá descanso. Mas não se sinta mal, querido velho. Ele vai eternizar o seu sofrimento, prolongar a glória que o mundo sente em cultivar o seu fracasso. Vai fazer de você um símbolo do que essa merda de vida te ofereceu. Ele só tem amor a te oferecer, velhinho, o amor que vai te elevar, te imortalizar em tua desonra.

São Paulo, litoral norte. Período de férias.

Pietro coloca, lentamente, o travesseiro sobre o rosto de Daniela... E se ela estivesse morta, não seria melhor? Admita que sim, vai! Começa a pressionar o travesseiro. A garota acorda e, sufocada, começa a espernear.

São Paulo, IML. Madrugada de um domingo.

Pietro expressa um discreto sorriso de prazer. Deita-se sobre o corpo do velho do chapéu... O Demônio... Sinta prazer, explore o que gosta, acaricie a carne, tenha tesão, machuque o corpo, goze! Isso, doutor, é assim que gostamos...

São Paulo, litoral norte. Período de férias.

Casa agradável, vista para praia. Noite fresca. Pietro, na varanda, sentado em meditação. Uma garrafa no seu colo. No quarto, Daniela jaz inerte. Olhos abertos, sem luz; filete de sangue escorrendo pelo canto dos lábios. Ao lado dela, um pequeno canudo, resquícios de cocaína e um bisturi sujo de sangue. No chão, um lençol também encharcado de sangue.

Lentamente, Pietro toca a garrafa e começa a abrir a tampa...O que está escrito no céu, no mar, na terra...

O barulho de ondas quebrando na areia da praia foi ficando ensurdecedor. O céu inunda-se de um tom rubro.

Lembrou-se do início da sua carreira como legista. Apenas o ato de pressionar um bisturi, iniciando a abertura de um  corpo, era suficiente para lhe dar prazer. Foi quando palavras começaram a soar na sua mente enquanto aplicava mais força aos cortes. Passaria, então, a disfarçar um sorriso de satisfação e de prazer, sempre... ao gozar... E pode ser de outro jeito...? Esquenta não, a merda da minha história já tá escrita...

Pietro pega a garrafa e volta para o quarto. Bebe o resto da bebida de uma só vez. Deita-se sobre o cadáver de Daniela. O quarto enche-se de moscas.

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