A Garganta da Serpente
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Urbis Ignóbil

(Alex Guima)

Abri minha caixa de e-mail e lá estava ela: Imponente, sorridente, com um ar lascivo a mexer com as minhas mais abjetas emoções de macho latino. Não imaginava que o golpe seria tão eficaz. Mas ela estava muito carente quando a conheci, e o fato de ter respondido às minhas gracinhas voláteis com foto, telefone, endereço e umas picardias adolescentes, me surpreendeu positivamente.

Era ainda iniciático nesta arte da comunicação cibernética, e me fugia completamente ao conhecimento, as manhas e artimanhas da paquera eletrônica. Simplesmente um neófito no jogo da sedução, sutil ou descarado, das salas de bate-papo da Internet. Mas o que descobri logo, é que este mundo existia. E estava ali à minha frente desafiando minha romântica e, agora, burlesca, concepção de relacionamentos inter-humanos.

A garota mostrou-se interessada desde as primeiras gaiatices.

- Olá! Vamos? Quero conhecer uma gatinha linda e sensual. É você? Se for, venha conversar comigo no reservado e garanto que vamos nos dar superbem. Você topa?

De cara, um longo e prolongado "claaaaaaaarooooooo!" como resposta, e uma avalanche de carinhas de felicidade, paixão, desejo, que as salas disponibilizam para este tipo de comunicação sem fala.

Comecei a aprender que as palavras e imagens comunicam emoções muito fortes em corações carentes de alguém. Mesmo que por trás daquele nick - ah, essa é a forma de designar o indivíduo, por meio do uso de uma alcunha que venha a ser a sedução do outro - esteja um impostor ou impostora. Por vezes, o tal, se enrodilha em sua própria armadilha e deixa-se seduzir pelo concorrente mais preparado. Vence aquele que consegue transformar suas mentiras - embrulhando-as numa capa de mais-verdade -, para superar as mentiras originais recebidas do interlocutor ninformático.

Há todo um exagero sensual nestas salas de tagarelice idiotizante. Gente que está à procura de passar o tempo ou de estabelecer aventuras relacionais. É por isso que a figura do "reservado" - um dispositivo que hipoteticamente garante privacidade aos dialogantes - é usual e recorrente. Na democrática rede, procura-se privacidade para as "falas" e publicidade para as imagens.

Já no bate-papo do primeiro dia tinha asseverado que gostara tanto dela que, com certeza, iria sonhar com a princesa naquela noite. Ela ficara toda boba! Como ficam também os homens quando se apaixonam de verdade. No outro dia, mandei-lhe cópia do suposto sonho e, como contrapartida, - uma espécie de permuta intermail -, ela deveria enviar-me sua opinião sobre o texto, além de mais algumas fotos, de preferência, agora, mais ousadas. De biquíni, por exemplo.

"Você não imagina o quanto gosto de você e o quanto a quero. Acordo de manhã pensando em você, mas, à noite, quando vou para a cama, levo sua imagem comigo, em meus pensamentos, já que ainda não posso tê-la de fato ao meu lado. Junto ao meu travesseiro, deitado em minha cama que a empregada arrumou e colocou lençóis limpos, de cetim, brilhando de limpeza e cheirando aromas suaves, imagino você: Um lindo corpo estendido de maneira sensual a me seduzir o olhar...".

Como ela se encantava com estes meus textos. Era algo que eu lhe enviava como "Um sonho de nós dois: A antecipação sonhadora de nosso primeiro encontro." Suas respostas eram de puro encanto e alegria. Parece que o mundo de Pâmella consistia em desilusão real e alegria virtual. Ela, desde o início, mostrara-se encantada e apaixonada.

"Imagino você, Pâmella, ali deitada, com seu corpo esguio e esbelto esparramado sobre os lençóis, transpirando sensualidade e convidando-me ao prazer... Estendo minhas mãos; toco seus cabelos, trago-os para junto de mim; cheiro; sinto o perfume das essências do banho que acabaste de tomar: Você está fresquinha como a noite, cheirosa como o campo, linda como as estrelas, suave como as nuvens e apetitosa como a mais linda e cheirosa fruta que me convida a saboreá-la..."

Cafajeste! - Penso comigo mesmo. - Você é um imprestável que blasona na infâmia de seduzir meninas sonhadoras... Mas, o que fazer? Pensava, em seguida. Elas gostavam. E queriam.

"Achego-me junto de você. Não posso vê-la em minha cama sem a desejar, sem a querer, sem a amar... Estamos nus! Nossos corpos tremem de desejo e paixão. Nossos pensamentos se ligam um ao outro... Nossa respiração está ofegante e nossos lábios se comprimem na ansiedade do amar..."

Nesta altura, ela estava totalmente entregue. Não esboçava qualquer reação a não ser de submissão aos galanteios que lhe asseguravam uma ponta de esperança no mundo do amor. Platônico. Lacônico. Imbecil.

"Vou roçando suavemente meus lábios por seu rosto lindo e maravilhoso. Fico encantado com sua beleza nua estendida em meus lençóis: Você é princesa celeste e seu trono se estende sob os meus domínios. Seu poder de atração e de sedução é grande. Seus encantos maravilhosos. Você me arrebata a alma e faz-me tremer no silêncio do meu desejo..."

Como aquelas palavras canhestras e difusas funcionavam no seu coraçãozinho contaminado. Ah, Pâmella querida: Se fosse possível te devolveria a sua, pela minha vida.

"Nossos lábios se encontram no amor da madrugada. Beijo-a ardentemente. Olhos nos olhos, face a face, sentindo nas narinas a respiração entrecortada do amor que incendeia nossos corpos e faz latejar a epiderme, a partir de um vulcão interior que quer explodir dentro da gente..."

Ah, Pâmella, amor da minha vida. Minha salvação e minha perdição. Se eu soubesse hoje o que lhe aconteceria então, naquele fatídico dia, não teria permitido que seus sonhos desmoronassem. Teria investido minha alma na sua e entrelaçado nossos destinos com amarras de esperança e fé.

"Olho você. Você está exuberante. Lindamente vestida de você mesma. Sua pele é macia. As vibrações que emanam de seu corpo sedoso, mavioso, suave como canções de elfos que brincam no campo orvalhado e que se lançam ao amor nas grutas da natureza-mãe, me arrepiam a derme estremecem a alma. Você, com sua beleza estonteante, torna-me poeta, me faz cancioneiro de nosso amor."

Lembro-me, quando você simplesmente começou a implorar pelo encontro de nossos corpos. Tinha que ser naquele fim de semana. Mesmo que na sua ingênua imaginação, o Rio de Janeiro se parecesse com um canteiro florido qualquer de sua misteriosa São Luis.

"Olhos nos olhos, face a face, lábios nos lábios, sinto a paixão ardente que aflui de seus lábios, de seu interior, pondo a descoberto um vulcão incandescente de sentimentos e desejos secretos que transbordam sobre mim. Estou pegando fogo, inflamado pelos desejos lindos de seu amor."

Mas, a questão é que eu fui. Juntei dinheiro de tudo quanto é lugar. Arrumei o que tinha e o que não tinha. Adquiri um pacote promocional de baixa estação - ufa! neste ponto, ela me foi propícia - e descabelei-me para uma pensãozinha de terceira categoria na Rua das Tormentas, nº 13, só para vê-la e amá-la.

"Você me seduz, Pâmella, e seu corpo estendido em minha cama, num convite irrecusável da deusa do amor, me leva a um envolvimento do qual nunca quero sair, acordar, pois o amor que nos une, é como a eternidade: Nos faz naufragar nos banquetes deliciosos da luxúria e viajar nas palpitantes sensações de epidermes afloradas de desejos."

Nem sei ao certo se você entendia tudo o que eu lhe escrevia. Você era muito nova, quase uma "Lolita", de quem qualquer Nabokov pudesse até lhe roubar o título, mas nunca a beleza e os encantos...

"Beijo-a intensamente! Você é a musa de meus sonhos e de minhas inquietações flamejantes que partem como raios cortantes em sua direção e querem aprofundar-se na penetração de seu mundo interior, pondo a descoberto este sentimento lindo que nos une e que faz do cotidiano a poesia de uma cama linda, arrumada como pétalas de flores milenares, ao se tornarem simbiose da libido eterna no leito de nosso amor."

Você suspirava de paixão e ia aos extremos, numa entrega voluptuosa de carne trêmula e desejos incontidos, saboreando cada investida minha no seu corpo, que se abria para receber meu amor. Foi uma paixão ardente ali naquele velho catre de província, sob a luz de lâmpadas encardidas e cheiros nauseabundos.

"Pâmella, meus dedos passeiam sobre seu corpo, qual nau que singra suave sobre as águas do oceano da vida. Meus dedos, então, vão assim percorrendo este oceano de mistério e paixão que é seu corpo lindo. Mas a visão e o toque deste corpo me faz lembrar as canções que posso tirar do piano do amor! Então vou perpassando suavemente meus dedos sobre você e de cada toque, de cada afago, tiro canções, em forma de notas melodiosas que me convidam a cantar o amor, a gozar o prazer de tê-la, de conhecê-la, de desejá-la e de amá-la."

Mas quando tudo parecia caminhar para se espatifar no ar, desintegrando-se e desaparecendo como se não houvera existido... Naquela noite, à beira mar, - a gente estava em Copacabana, lembra-se? -, cenário sonhado e idealizado por você durante os tantos anos de uma adolescência curtida sob o signo da tevê Globo. Pois, naquela noite, você já tinha um pressentimento de que não ficaríamos juntos, fazendo alusão comparativa de nossa paixão a certos políticos que mantém um caso de amor quase erótico com as cidades que administram. Naquela noite, assustei-me com sua inteligência latente. Confesso - ah, se você pudesse me ouvir agora! - que pela primeira vez ficara assustado com o nosso relacionamento.

"Pâmella, gatinha manhosa querida e desejável. Não imagina como anseio por você. É algo assim: Como o trabalhador anseia pelo descanso de uma jornada exaustiva; como as águas da chuva, pelo leito do rio; como as palavras do poeta, pelo papel branco que lhe dá vida; como os acordes do violão, pelos dedos do instrumentista. Assim sou eu: Desejo você intensamente e me perco nos devaneios de amá-la."

Sim, ali nas areias fétidas, porém encantadas de Copacabana, nós nos amamos pela segunda vez - estou contando a noite de São Luis como uma só vez, embora tenhamos tido uma maratona sexual digna de um filme pornô B qualquer - e rolamos tanto nas areias, sob a cumplicidade de uma lua exuberante, que a nossa reintré no hotel foi sob uma saraivada de olhares inquisidores. Mas nós não estávamos nem ai para ninguém. O mundo era só nós dois e o Paraíso!

"Preciso de você e anseio pelo encontro de meu corpo com o seu, para o amor supremo de uma vida que se liga em existência singular através da junção de todos os mecanismos de amar que nossos corpos podem construir, na arquitetura benfazeja do castelo de nossos sonhos de amor."

Que melosidade adiposa de palavras flecheiras... Você ria de meus textos, mas não conseguia desgrudar-se deles. Acho que foi aqui, na altura destas palavras, que um turbilhão de desejo incontido tomou conta de você, levando-a a exigir minha presença. Sim, você dissera-me que não aguentava mais tocar sirigaita pensando em mim, e que me queria naquele fim de semana de qualquer jeito para eu próprio tirar canções de seu corpo jovem.

"Minha querida, você em meu leito de amor, me faz pensar em como a vida é gratificante, prazerosa. Você me encanta e torna meus dias mais suaves e belos. Toco seus seios lindos, qual duas peras maduras, prontas para serem saboreadas pelo gourmet do amor. Levo meus lábios até eles e sinto os mamilos intumescidos e durinhos que apontam para o alto como montanhas virgens a serem exploradas pelo alpinista do amor que me torno com você na cama. Vou desbravando como aventureiro-bandeirante de seu corpo, toda a geografia desta linda paisagem que se descortina à minha frente: Você é um encanto da natureza, uma obra-prima do Criador. Você é um troféu que eu, como esportista do amor, ganho a cada noite que a encontro, linda e despida, em minha cama."

Querida Paminha, onde você está? Por que fizeste isto? Será que eu não merecia a oportunidade de lhe servir esperança na bandeja da sinceridade? Foi muito tarde quando descobri que seu frágil e inexperiente corpinho abrigava um espírito irrequieto, desbravador de mundos que a simples odisseia do cotidiano contemporâneo era insuficiente para conter. Você já tinha se desiludido com a Escola. Você já não acreditava mais na Sociedade. Você tinha uma desconfiança exagerada em qualquer Político engravatado em época de campanha. O Rio de Janeiro lhe era uma grande prostituta, em cujo ventre se aninhavam os resíduos de noites não-dormidas, amores não-realizados, doenças incubadas que poderiam explodir a qualquer momento.

"Seu sexo está latejando, suas pernas semicerradas, comprimem-se na sensação de que quero ganhar os contornos do seu prazer... Mas há uma reação sutil que repete um movimento vibratório de seu desejo: Você abre ligeiramente as pernas e sorri, num convite suave para amá-la! Seu Monte de Vênus que, saliente, sobressai de si, é algo espantoso de tão lindo: Uma peça impecável, de arquitetura fina e bela, que nenhum homem em sua limitação humana poderia esculturar. É obra de arte, que me sensibiliza e me diz o quanto não lhe mereço, mas me mostra o quanto a desejo e o quanto não quero perdê-la! A amo! É o que posso dizer neste momento em que você se abre para me receber em seu corpo hirto de desejo; jorrando o cheiro do sexo das fontes inesgotáveis dessa libido que verte de sua vulva quente e cheirosa, ardendo de desejo, pronta para me receber, com meu falo simbólico que esticado em meu corpo, deseja possuí-la eternamente..."

Pâmella, querida! Todas estas palavras produziram um efeito em você que até hoje - passado tanto tempo de sua desdita -, eu não consigo entender, sequer mensurar. Você deixou-se tomar por um aluvião de emoções, um redemoinho de sensações que trouxeram-na para o epicentro de paixões carnais. E neste ponto eu consigo entrever meu erro. A queria muito, era sincero e você duvidava sempre disso, mas nosso amor era um amor-impossível. Eu a queria, mas não podia. A amava - e nunca menti quando lhe disse isso milhares de vezes - mas os passos seguintes, que você esperava de mim, nunca os pude dar. Como o amor é ingênuo e forte como a própria morte!

"Você sorri. Seu sorriso é um encanto. Me seduz e prende meus olhares a você. Sua beleza é singela e meiga e me leva ao Paraíso de minhas emoções migratórias em sua direção. Qual aves fortuitas, sua beleza estonteante provoca a debandada geral de qualquer sentimento ruim, pois em você só há perfeição, harmonia. Sinfonia de Beethoven, de Mozart ou mesmo de Vilas Lobos."

Quando você veio ao Rio de Janeiro pela primeira vez, fiz questão de levá-la aos lugares de sua predileção: Corcovado, Pão de Açúcar, Hotel Glória, MAM. O circuito do Centro: Biblioteca Nacional, Teatro Municipal, Casa França-Brasil, Fundação Banco do Brasil, Candelária e Museu da República. Você se encantava com cada nova descoberta e me instigava a ir, ver, assistir. Pedia-me presentes a toda hora: Livros, CDs, quadros. Você tinha uma ânsia por conhecimento que me deixava estupefacto. Ah, Pâmella, o que você poderia ter sido se tivesse dado esta chance ao teu espírito? Por certo, estaríamos agora, nós dois, bem juntinhos, desfrutando dos momentos seguros da pós-libertação de seus preconceitos, em qualquer barzinho legal do Leblon.

"Então, me torno um lobo devorador que quer você, quer ter você, quer senti-la em toda a profundidade de sua existência. Mas não consigo ter você a não ser com o seu consentimento. Tem que haver entrega, tem que haver paixão. E você está nua, lindamente postada sobre a cama em atitude sacerdotal de entrega, de submissão, à espera da satisfação, do prazer, do amor. Eu a respeito e a quero, mas meu desejo não nega a suavidade de meus sentimentos que a querem lindamente se entregando a mim como objeto de adoração e de entrega."

Os políticos querem gozar na cara das cidades e depois dispensá-las com uma nota suja enfiada na caçamba. O caminhão de lixo passa pelas madrugadas, e os sinos enrustidos nas igrejas centenárias, escondidas entreprédios, tocam badaladas da miséria. Não há sorriso. Sequer troca de olhares. E o tempo vai passando e a esperança se afunilando em segredo, como se a despistar o futuro incerto.

"Sim, mas eu, qual lobo devorador a quero e a desejo. Porém, não sou capaz de não respeitar seu jeito, seu mundo, sua vontade, sua forma de agir. Me aproximo como o príncipe que do alto de sua realeza reverencia sua ama, a dona de seu coração: Que lhe traz presentes; que lhe devota afagos; que lhe faz carinhos; que lhe cobre de flores e perfumes; que lhe despeja emoções; que ergue a taça do vinho da sedução; que sorve junto com a amada o cálice do amor e se prepara para a apoteose triunfal do maior sentimento da vida: Duas almas gêmeas que se unem no amor sideral! A quero e a cubro de beijos em minha cama."

A cidade está partida. Há dois mundos que se digladiam para sobreviver. Um mundo oficial; outro, paralelo. Trabalhadores perambulam dores e sofrimentos pelas avenidas abertas nas veias da terra. A correria é oficial. Foi ajustada pelos governantes nas novas taxas da condução coletiva. A cidade esmurra sonhos e transparece emoções. Dorme esperanças e acorda pesadelos. O estonteante esgar sobre as pessoas, conduz a um vaticínio cruel: É grande a chance de sermos tragados pela vida. Mas você, Pâmella, ainda está ao meu lado e isto para mim é tudo. Posso ainda pensar que há esperança.

"Você está refulgente e brilha como estrela nos céus de minha paixão. Me ergo do leito e a contemplo por cima e você se prepara para me receber dentro de seu espaço sagrado do amor. Com vagar estudado, e meticuloso pensar, me deito sobre seu corpo... Sentindo suavemente o encaixe de meu corpo em seu corpo: Côncavo e convexo; meu ser e seu sexo. Minha vida e sua vida. Minha razão e sua paixão. Meu amor e seu desejo. Meus sentimentos e suas emoções. Sinto-me deslizar suavemente dentro de você. Ao encontro de seu mundo interior, penetrando suavemente na gruta deste amor que se oferece pleno. Então, unidos pelo espaço e pelo tempo, vencendo a eternidade de nossas emoções... Gozamos. Chegamos juntos a um orgasmo inigualável, insubstituível, incomparável."

Os votos começam a ser depositados nas urnas da cidade. Os bastidores das pesquisas e a legião de correligionários deflagra o tresloucado processo de antecipar resultados, prever situações. O político está louco de raiva. Assusta-se com a possibilidade da derrota. Reclama da imprensa. Diz que a pesquisa influencia os eleitores. Reforça, então, seu efetivo nas ruas: "Cinquentinha para cada voto". Começa pelos subúrbios, invade as favelas. Quer ganhar na Zona Norte. Antigamente ele gozava ao ver o povo enfiar as cédulas nas urnas. Agora ele é mais sensitivo, mais feminino: Gosta do suave dedilhar dos dedos sobre as teclas da máquina de guardar votos. Gosta de gozar contemplando o rosto do povo vendo sua careta na tela.

"Nos amamos intensamente e faz-se silêncio na terra e faz-se canção nos céus, pois nos encontramos no amor de nossos corpos. Contemplo seu lindo corpo na cama. Seu Monte de Vênus sobressai nesta geografia maravilhosa de seu corpo que me torna topógrafo do amor. Você é linda e eu então me ergo de sobre a cama por sobre você. Meu corpo faz sombra sobre seu corpo lindamente estendido, à minha espera, mas não apaga nem ofusca o brilho que emana de cada poro seu que se rejubila ao me desejar. Você arde em febre de paixão. Você se abre toda ao amor. Você se derrete e se comprime e se contrai e se esparrama sobre a cama esperando que meu corpo pouse sobre o seu. Qual aeroporto reluzente a esperar iluminado a aeronave que sobrevoa o espaço aéreo para a descida tão almejada, é seu corpo após nossa longa viagem de amor. Seu corpo é a pista de pouso de minha alegria e de minha paixão. Deslizo suavemente sobre você e você sente gravitar sobre suas vibrações meu corpo que vai se unindo ao seu, à medida que se aproxima convicto."

Por quê? Qual a razão de sua partida? Minha querida Paminha, você se foi e me deixou só, à deriva, qual nau perdida neste mar revolto. Encalhada na maresia de nosso amor. Inerte na frouxidão da ressaca de tão atroz tormenta. Minha Panterinha moça, meu docinho. Você partiu deixando-me só! Foi-se sem um adeus. Escapou de minhas mãos e conquistou seu mundo. Indômito mundo de seus pensamentos. E eu aqui pensando no porquê de tal desdita. Que sortilégio cruel me destinou tal trama?

"Há um poder de atração inelutável entre nós. Somos quais imas do Eros primacial que nos ergue do vento e nos traz sentimentos eternos. É o Côncavo-Convexo que se encontram e fazem sexo. Amamo-nos. Meu corpo encontra o seu, que me recebe gostosamente e fluem de nós lindas emoções vibratórias que rompem a barreira do tempo e da eternidade, neste memorável dia do encontro de nossos corpos. Somos felizes e nos amamos. Faz-se silêncio na Terra e soam canções nos ares em exaltação de nosso amor. O sino do tempo badala as canções da madrugada em nossos corpos unidos na cama. Só resta-me dizer no seu ouvido de ninfa eterna: Meu amor! E resignar-me benfazejamente: Não saberei mais viver sem você."

Mas, não foi assim. Você morreu. Matou-se. Daquela janela aberta do 13º andar do Hotel Guanabara - o máximo que minhas parcas economias podiam lhe devotar - depois de três meses de intenso conúbio epopéico, quando lhe fiz juras de amor, casamento, mudança para Buenos Aires, pagamento de sua Faculdade, você optou pelo desfecho que lhe pareceu mais sensato: Dar cabo da própria vida, atirando-se sobre a horda que caminhava apressada nos desvãos da Avenida Presidente Vargas, pois você queria ser sepultada pelo povo, absorvida pelo asfalto da cidade que lhe traíra, que lhe roubara os sonhos, o respeito, a dignidade, o futuro, a cosmovisão mais romântica da existência ocidental. Você optou por morrer com suas ideias; levar consigo a revolta mais íntima contra a cidade que lhe negara o amor e a felicidade. Então você optou pela apoteose mais simples, econômica e discreta, porém não menos impactante, que foi morrer violentamente - como quem se despede da vida pela porta dos fundos - para que com sua morte você anunciasse a violência de uma cidade que sangra pelos seus poros e mata seus habitantes e sufoca os cidadãos na orgia sacrifical do deus-progresso, num holocausto mal-cheiroso de oferendas nada suaves, cosméticos de vida, panaceias de existências, esgares de civilidade, arremedo de urbanidade.

"Pâmella, você sorri. Sorriso lindo da madrugada. E a brisa suave do vento que invade o quarto pela janela aberta, nos mostra a lua, linda lua a brilhar, testemunha ocular de nosso amor. Você vira para o lado, linda e nua, com seu corpo de princesa estelar e dorme um sono relaxante do amor, a sonhar com nossas vidas futuras."

O problema, Pâmella - onde quer que você esteja agora, ouça o que tenho a lhe dizer - o problema é que você se foi e eu fiquei. Eu, só! Eu, sem suportar meus pensamentos, meus sentimentos de culpa. Não aquela culpa angustiosa da ação premeditada de te eliminar, mas a culpa inquietante de não saber se fiz tudo o que podia e deveria ter sido feito para tentar afastá-la desta maldita desídia que você colocara na cabeça. Você abandonara-se na incúria de não querer mais viver... Ah, se eu pudesse fazer voltar o relógio do tempo! E também, se me fosse possível voltar a ter acesso ao sorriso desconcertante, de ingênua inspiração, num rostinho angélico, que você dedicava-me a cada olhar guloso que lhe lançava.

Por extrema infelicidade acabei assistindo embrutecido - no esfacelamento gosmento da massa informe e sanguinolenta sobre o asfalto negro da Avenida, quando por ali passava à sua procura -, o desaparecimento desta suavidade etérea de seu rosto. Pam, quero você de volta e não sei como. Quero ter a chance última de me redimir de todos os pecados, possíveis e imaginários, que tenha cometido contra o seu sagrado corpo juvenil. Para recuperar você seria capaz de tudo! Mas, o quê?! O que a vida, ou até mesmo a morte, seria capaz de me cobrar em troca de ter você de volta? Se o soubesse, já teria feito, pois minha vida daria pela sua; meu mundo, pelo seu; meus sonhos, por seus ideais.

"Pâmella, a amo e quero encontrar você em breve."

Quando o caixão desaparecia nos umbrais do Cemitério do Caju, tendo por companhia meu corpo autômato, a multidão de meus pensamentos e minha querida mãe - que se solidarizava na minha solidão bestial -, um ecoar de sirenes do Corpo de Bombeiros atravessa a Avenida Brasil na busca de mais corpos que transmigravam do mundo das gentes. A cidade dos mortos explodia em densidade demográfica soberba, enquanto o mundo dos vivos não se incomodava nem um pouco.

(23 de junho de 2003)

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