Tinha uma tia que era crente. Sim, daquelas convictas e radicais. Viúva
e de luto desde que me entendo por gente, ai de quem falasse de sexo perto dela,
ou de futebol, bebida, política, televisão, macumba... tudo era
coisa do diabo. E tome discurso de salvação! Pra todo mundo era
a mesma ladainha. Se alguém interrompesse, ela começava do zero,
afinal, aquilo tudo era decorado mesmo, sabia lá o que significava? Sempre
que alguém arriscava um palpite pro FLA x FLU de domingo, ela esbravejava,
com aquele sotaque nordestino bem carregado: "tá amarrado
em nome de Jesus!"
O dinheirinho que minha tia juntava era destinado à igreja. Era o tal
do dízimo. O pastor dizia que era o pedágio pra ir pro céu.
Para quem criticava, argumentando que prejudicava o sustento da família,
ela desferia na lata: "Tá repreendido em nome de Jesus! O sinhô
pode deixar quieto que Deus provê! " E assim ia alimentando
e sustentando a causa do Senhor. E a sua própria causa.
Certa vez, num fevereiro tipicamente carioca, vestida de preto, saia no meio
das canelas, blusa de mangas compridas, bíblia embaixo do braço,
uma quentura do cão, minha tia esperava a condução para
voltar para casa depois de uma campanha de orações em sua igreja
contra a festa pagã. Um carnavalesco embriagado, a essa altura sem qualquer
noção dos bons costumes, pensou encontrar ali um bom motivo para
encerrar a farra do dia. Decidiu achincalhar com a velha.
Com a voz embolada, começa, apontando para minha tia:
- É ffffantasia de carnaval, é? - E tome risadinha cínica,
vez em quando repetindo a frase debochada.
Como fizesse não era com ela, o maluco resolve partir pra pirraça
mais direta. Aponta para a mulher e, cambaleando, dispara:
- Êiiiiita, vai sair no broco! Vai no "Rola Preguiçosa"!
Ao que a velha, sem conseguir se conter, rebate:
- O sinhô largue de osadia, que eu num lhe conheço!
O homem apela para um nome de bloco peculiar e ainda mais atrevido:
- Vooocê sabe como é que eu vou aí, veia?
Vou é "Cutucano atrás"... hihihi... - provoca
jocosamente.
Silêncio...
Destemido, o bebum prossegue zoando a coroa, usando tudo que é
nome de bloco carnavalesco carioca que então lhe vinha à cabeça:
- Aí tia, vê se "Chupa, mas não baba"!
Nesse momento, a velha intercepta o homem mais uma vez, já meio alterada,
dando ensejo a uma troca de farpas:
- É bom o sinhô procurar o seu lugar!
- Iiihh, "que merda é essa", veia? Ficou nervosa?
"Se não quer me dar me empresta", pô!
- O sinhô se respeite, seu descarado! Vou lhe meter a mão
na cara e vou chamar a polícia!
- Calma aê, tia! "Quem num guenta bebe água"!
Vamo se embriagar no "Suvaco do Cristo", vamo?
Era demais, o nome do Senhor em vão... Antes que ela pudesse revidar,
o homem dispara:
- Já sei, já sei! Vestida assim, a senhora é a mulher
do cramulhão!
Aí extrapolou. A velha deu dois pulos e três gritos, saltando em
cima do miserável com uma cruz de metal, acertando-lhe a testa e determinando
aos berros:
- "TÁ AMARRAAAAADO EM NOME DE JESUS"!! "SAAAAIII! SAI
DESSE CORPO QUE NÃO TE PERTENCE!" "QUEIIIIIIIMAAA"!!!!
Pronto! Estabelecido o quiproquó. Pití no ponto de ônibus,
a turma do deixa-disso tentava separar, mas a velha estava grudada, agarrada
no pescoço do bêbado como que possuída. O homem, coitado,
esticado pra lá e pra cá, cambaleante, acabou estatelado no chão
com a velha em cima, descabelada e com as pernas arreganhadas. Ninguém
sequer prestou atenção na calçola da velha... De modo trágico,
com a queda, o homem arrebentara a nuca no meio-fio. Silêncio no ponto
de ônibus, e o sangue se espraiando pela calçada... E agora? Não
tem um médico no ponto, ninguém quer fazer boca-a-boca no bebum...
"Chamem os Bombeiros!" - alguém grita.
Depois de 10 minutos chega a Defesa Civil e constata a morte do infeliz. Nada
mais há de se fazer... Fatídico dia, esse.
Seguiu-se a vida para os transeuntes e frequentadores daquele ponto de ônibus.
Aos poucos, o aglomerado humano foi se dissipando, cada um cuidando de si e
de seus próprios interesses, cada qual imerso em seus próprios
pensamentos, planos e sonhos... Aquilo tudo logo cairia no esquecimento, como
sempre acontece.
- "O pior é que não teve tempo de aceitar Jesus para ser
salvo"! - minha tia ainda teve tempo de lançar a pérola
ao entrar no carro da polícia pra ir "prestar esclarecimentos"
na Delegacia. Ainda bem que, já cansada depois da cerimônia Expulsa-Exú
em praça pública, nem percebeu uma discussão paralela sobre
futebol que acabava de se instalar ali mesmo, entre dois desavisados recém-chegados
no malsinado ponto de ônibus:
- "Rapaz, o Vasco vai ser campeão esse ano ainda..."
- "TÁ AMARRADO em nome de Jesus"!
(outubro de 2009)