Devo informar, primeiramente, que sempre fui homem de boa fé. Não
me lembro de alguma vez não contar com a simpatia e solicitude amigável
dos ao meu redor. De bem com a vida e de bem com a humanidade. Ao menos era
o que acreditava. Afinal, engajei toda a humanidade ao escolher minha moral
e objetivo (será que deveria?). não vi nessa conduta a liberdade
de todos, e junto a minha. Até onde via, meu universo era harmônico,
justo, fiel na determinação do progresso. Então , Por que
sentia este incômodo que não sabia de onde vinha e nem por quê?
Talvez tenha relação com o que sofro agora. Estou em um sonho
do qual não consigo acordar. E , em verdade, sei que não sonho.
Hoje, logo antes de levantar, tive um sonho que não entendi. Estava,
calmamente e sorridente, sendo tragado por areia movediça. Na verdade,
era ouro movediço e, quando estava só pela cabeça, senti
todo o eterno desespero de quem afunda irremediavelmente para a morte.
Foi então que subitamente acordei, aliviado. Ainda podia respirar ;mas
sentia aquela sensação ainda.
Levantei sonolento e, como sempre, busquei minha determinação
na agenda. Nunca pensava o que fazer, preferia seguir um bem calculado itinerário
para não desperdiçar tempo (que, afinal, é dinheiro). Mesmo
que estivesse de folga. Me acostumei a isso, pensava tranquilo que estava
me assegurando, entregue a determinação de um bem maior que eu,
o que de mais valioso e poderoso e importante havia no mundo: o dinheiro. um
objetivo constante e uma maneira de vida que sempre me ensinaram. Na minha boba
juventude, pensei em revoltar-me ao ler, por acaso, um autor, acho que tinha
um nome engraçado, Sartre, Sade ou coisa assim, que falava que o homem
era totalmente responsável pela sua vida, por sua escolhas, por sua moral.
Mas percebi que luta seria, que mais tranquilo era o caminho da acomodação
e ao que , afinal, era consagrado. Não haver bem nem causa superior era
um incômodo que preferi abandonar, já que é de domínio
público a determinação da Vontade de deus e da história,
o inevitável devir que tranquiliza o medo e a culpa.
Como dizia, ao voltar-me para a coisa que meus olhos veem ao levantar,
algo de muito estranho aconteceu. Meus sentidos não me transmitiram os
compromissos, tarefas e horários marcados. O que vi era apenas um emaranhado
de cifrões, reluzindo em verde-dourado.
Esfreguei os olhos, sacudi a cabeça e nada. Somente aqueles símbolos
com algo de atraente dançando na minha frente.E o pior é que ,
quando me dei conta, estavam por toda a parte, não via nada que não
fossem cifras a confundir meus sentidos.
O mais estranho é que conseguia agir normalmente, seguir com minha rotina.
Fui até para o trabalho; trabalhei com a mesma eficiência (talvez
até melhor), tive um dos dias mais produtivos, não só financeiramente,
como também socialmente. Além de só ver cifrões,
a cada frase das conversas banais do corredor (e bebedor) eu como que entendia
dinheiro, como se percebesse que cada palavra era um numero , o conjunto uma
operação matemática, e a resposta sempre a mesma. Dinheiro.
A pergunta constante, essencial e absoluta: como conseguir mais dinheiro. Ou
algum dinheiro qualquer.
Meu sucesso me levou a pensar que aquilo era uma benção, talvez
deus me tivesse presenteado com uma visão mais clara. Mas o incomodo
do qual falei antes agora me corroía. Estaria louco? Era uma ideia
que acalmava o grito sufocado de dor. Realmente, pensando e sentindo claramente,
aquilo não podia ser bom. Quantas coisas deixaria de ver. Quantas coisas
belas, às quais nunca dei atenção, devido a minha determinada
missão, não mais poderia ver. Tinha que acabar com essa loucura.
Corri para o hospital, estava certo de que me tratariam.
Chegando lá mostrei meu cartão de crédito e logo fui atendido
por um doutor bastante atencioso, que ouviu, concentrado, toda minha história
e infortuito. Após o relato, me acalmou, dizendo que não me preocupasse,
não era nada de mais, era até certo ponto normal, e coisas do
tipo. Me colocou na cama e disse que daria um calmante e que logo tudo voltaria
ao normal.
No meio do sono induzido, tive alguns instantes de despertar, que fizeram-me
perceber que estava sendo levado para algum lugar. Imaginei que um hospício.
Entretanto, quando tentei novamente abrir os olhos, que espanto sombrio estremeceu
minh' alma. Ainda via por cifrões, mas pude perceber, até pelo
aumento dos cifrões, que estava em um grande e luxuoso escritório.
Só entendi o que acontecera quando um grupo de sujeitos pequenos e feios,
de voz suja e fraca, não tantos cifrões(como querem, apesar de
isso ser natural e comum), entraram e , ao se dirigir a mim, proferiram:
- Quais as ordens do dia, nosso chefe e sábio guia, sapiente senhor presidente?