Eu não estava longe de casa quando tudo aconteceu. Havia uma mulher chamada
Aurora que morava umas casas depois da minha. Sempre alegre, de gordas bochechas
que só sorriam. Estava sempre varrendo a calçada, aguando as plantas,
sempre verdes e viçosas. Antúrios, alamandas, manacás e
imbés. Tinha também um jaboti que se chamava Chiquinha e era o
xodó de Aurora. Morava sozinha. O marido morreu. Teve cinco filhos. Dois
homens. Que se casaram e mudaram para longe. Um com uma mulher muito rica que
não visitava Aurora : casa simples, pouco a oferecer, já dera
o filho a ela e isso bastava. O outro foi pra bem mais longe. Lá pro
Norte do meu Deus. Sumiu. Não dava notícias. Tivera também
as filhas: Clara, Clarice e Célia. Clara era bonita, talvez bonita demais.
Perdeu-se na vida. Vivia num bairro distante, atendendo viajantes que passavam
por lá. Clarice era rechonchuda como a mãe, vinha vê-la
algumas vezes, trazia a ela roupas que não usava mais ou dispensava alguns
mimos que não lhe tinham serventia. Célia casou-se com homem simples.
Tinha vida como a mãe.
Mas Aurora sorria.
- Deus te abençoe, gritava ela sorrindo, talvez para garantir que Deus
realmente a ouvisse.
Eu passava e repassava e lá estava ela. Contagiosamente feliz.
Um dia a meninada dos quarteirões lá de perto, conhecendo o carinho
com que Aurora acolhia a todos, entraram sorrateiramente nos jardins de Aurora
e capturaram a Chiquinha. Nada queriam com aquela tartaruguinha, já velha
e desgastada, como a própria Aurora. Mas queriam desesperar aquela senhora,
por simples brincadeira sem atentar-se ao significado do que faziam.
Naquele dia Aurora não varreu a calçada. Estava vasculhando o
quintal.
Quando passei por lá ela não deixou, de modo algum a me abençoar
aos berros, sorriu, mas pude ver que seus olhos estavam nublados. Era mais um
carinho que perdia.
O tempo invencível e soberano levou Aurora para uma cadeira de rodas.
Estava lá, pela manhãzinha, bebendo um pouco de sol morno. Num
som forte e desconexo lançava sua benção.
Até que Aurora percebeu que era melhor abençoar a todos de uma
vez. Foi para o Céu. Os filhos apareceram. Choraram e lamentaram, estranhamente
tristes. Aurora era uma pessoa muito boa. Merecia o Céu. E a casa, como
ficou aqui mesmo, foi vendida e compartilhada. Demolida. Hoje tem um prédio
ali. Quase nada da Aurora. Nem seus jardins, nem a Chiquinha, nem seu sorriso.
Mas quando passo por lá sempre repito:
- A benção, Dona Aurora !
E numa brisa macia e suave, como seus alvos cabelos ouço o ressoar claro,
e ainda mais intenso, de alguém que grita lá do alto:
Deus te abençoe, meu filho !