Zoológico de Pequim, China. Era mais um dia sem sentido na minha apática
rotina de ofídio tragado pelo desânimo. Ficar a ser espreitado
por toda aquela gente bisbilhoteira, como se eu fosse um extraterrestre que
acabara de pousar na Terra, não é dos melhores paladares. Sinto-me
tão subjugado pelo ultraje das reações, sobrecarregadas
de comentários agressivos e de tamanho espanto! Poxa, será que
acham que cobra não pensa, não tem sentimentos? Compreenda aí:
eu penso, eu sinto, viu!?
Tentando responder a todas aquelas afrontas sobre a minha aparência, retrucava-lhes
com a minha fingida indiferença, enquanto lá estava meu íntimo
dilacerado. Eu só queria ir embora, sumir, desaparecer em alguma mata,
voltar a me sentir normal, ser uma serpente de volta ao seu lar! Mas sou um
preso sem culpa, numa espécie eclética de gaiola de passarinho
e de solitária de homem. Pelo menos estes não são como
aqueles ou como eu, pois, afinal, aparentemente, praticaram algo errado.
- Que fazer??? Cá estou!!! É a minha realidade!!!
Mas aqueles eram apenas pensamentos ilusórios na minha frustrante eterna
tentativa de conformismo. O tédio, a tristeza e a opressão me
levavam ao desespero.
Enfim terminara a tarde daquelas visitas indesejadas. Meia hora depois a metamorfose
começou. O tratador me vinha trazendo a comida, e eu realmente estava
com muita fome, apesar de tudo e ainda bem, pois senão já haveria
morrido, envolto em minhas esperanças. A refeição era um
ratinho, daqueles brancos. Já havia comido muitos deles. Eu não
queria, mas meu instinto falava alto e devorava os roedores, enquanto minha
sensibilidade de culpa os fazia descerem com gosto de fel.
O animalzinho foi solto em minha prisão. Deparou comigo e sorriu com
os seus olhos tristes, com uma ingenuidade que eu ainda não vira e sequer
imaginaria que pudesse existir. Cumprimentou-me com a sua inocência, e
eu percebi - talvez por inabilidade eu não tenha notado em seus companheiros
- uma angústia um tanto semelhante a que tomava conta de mim. Claramente
por aquilo, incompreensivelmente sem qualquer medo, havia desilusão em
seu olhar.
Não há instinto ou fome que resistam! Jamais eu poderia, você
sabe o quê. A empatia recíproca me fez entender que a amizade daquele
ratinho era o grande alimento que eu procurava. Meu semblante lhe sorriu como
resposta. Imagine, você! Consegui sorrir, e para um camundongo! Eu não
mais tinha presas naturais; eu tenho um irmão eterno. E agora sou de
outro nível: só comida congelada!
Ainda não alcancei minha liberdade e continuo sendo ofendido - mas para
eles minha aparência agora está em segundo plano. A fraternidade
que nutrimos, eu e meu amigo, é a principal atração do
zoo, e faz entreabrir a boca das pessoas. Como resposta ao estrelato,
demonstramos a nossa altivez e sabedoria. Cobras e ratos, inimigos? Pois sim!
Sejam racionais, homens, sejam racionais! Aprendam com esta dupla aqui!