Seu cheiro me enojava e me seduzia. A sua companhia já não me
é mais um mistério, é apenas hábito... Um velho
hábito. Atrai aquilo que há de pior no mundo e o que considerei
como sendo o melhor em mim: meu silêncio e minha escuta. Sei que o copo
diante de mim carrega, carregou ou carregará a minha "essência",
ou algo que o valha. Tomo um gole bastante longo e demorado, limpo meus lábios
e olho à minha volta o novo cenário. Beber água nunca me
fora tão salutar. A bem da verdade, nunca estive sóbrio o bastante
para apreender o quão valioso poderia ser aquele momento. E isso me faz
recordar de um dia em especial. Não há data, pois não fixo
comemorações. Pois, deste dia, recordo-me constantemente e com
muito carinho.
Estava eu num bar bem pé-rapado do centro da cidade dando corda a velhos
hábitos. Tinha contas a pagar, problemas em casa, muito mais do que hoje
eu consigo acompanhar. De qualquer maneira, eu tentava desviar o olhar, o olfato,
o paladar, mas parecia ser sempre tarde demais. Meu raciocínio não
era mais tão preciso. Desviava o olhar por um segundo e esquecia-me.
Tinha lapsos momentâneos; meu foco ia e vinha e quando eu menos percebia...
Outra garrafa seca jazia à minha frente. Seu corpo morto, seco e vazio
espelhava minha alma, ou assim eu o supunha. Ver meu reflexo no fundo de um
copo americano, daqueles que provavelmente já foram continentes de alguma
geleia ou algo parecido me enojava. Sei que o álcool e eu nos
tornamos, ao longo do caminho, um só. Só não me lembro
quando.
Mas lembro-me disto: havia um homem estranho, curioso e aparentemente um viciado,
ali do meu lado naquele dia tão especial. Ele também parecia procurar
por algo, ou alguém. Pensei comigo: "talvez, também procurasse
sua essência no fundo de uma garrafa; temos algo em comum". Ele balbuciava
coisas estranhas como: "maldito idealismo", ou "niilismo fácil,
fuga para os tolos", "pura tolice... Persifal", algumas coisas
em latim, como "et hoc genus omne" [e toda essa gente] que
eu só conhecia por meu passado como empregado numa igreja. Eu não
fazia ideia do que se tratava, mas me soou como algo que nos identificava
com aquele lugar, aquele momento e, pensando em retrospecto, um com o outro.
Acho que ele se referia à sua conexão com o vazio ao seu redor,
à solidão. Ou com o fato de estarmos ali buscando algo de eterno,
imutável ou universal. Eu não fazia ideia... Ele falou
alguns nomes como Platão, Aristóteles e Sócrates. Mas a
culpa de tudo parecia ser do tal Platão ou do Sócrates, ele parecia
não saber definir um e outro. Eu mesmo comecei a detestar o tal filósofo
grego, mesmo sem saber ao certo qual deles odiar. Parece que a culpa de tudo,
tudo mesmo, da moral, das guerras religiosas, do egoísmo, da pena, da
caridade, do capitalismo e até de uma ideia absoluta de paraíso,
do bem e do mal, seria culpa de um deles. Eu ouvia atentamente e tentava apreender
alguma coisa.
Seus olhos eram como fogo e entre uma golada e outra eu o fitava. Ele me viu
e se dirigiu a meu encontro. Não movi sequer um músculo. Ele me
olhava de maneira aguda. Quando ele se pôs a minha frente, eu o olhei
de cima a baixo e, com um sorriso no rosto, o convidei a se juntar a mim. Ele,
que tinha um semblante sério, ébrio e sombrio, deu uma enorme
gargalhada, que despertou até os mendigos a nossa volta, e sentou-se
junto a mim. Conversamos por horas, e eu realmente acreditei que estávamos
ambos bastante embriagados e nenhum dos tópicos ali desenvolvidos poderão
ser reproduzidos à altura nesta curta memória. Se não por
um lapso alcoólico, por pura e simples ignorância de minha parte
quanto ao tema. Ele, um professor universitário, que me parecia no momento
ser alguém bastante conceituado, e eu, um bêbado desempregado e
cheio de contas a pagar, juntos; bebendo e conversando.
Depois de alguns goles meus, ele me perguntou se eu gostava de beber. Eu apenas
respondi que eu esquecia de parar de beber e que quando eu me dava conta já
havia bebido! "Força do hábito, hein?", ele retrucou.
Eu acenei que sim com a cabeça. Depois de uma curta risada de canto de
boca ele falou por um bom tempo de sua admiração pelo esquecimento.
Ele parecia adorar mesmo o esquecimento, "condição única
da felicidade", como ele me disse naquela mesa de bar. Por isso, ele tinha
uma paixão especial por cavalos. Ele passou horas falando de como os
cavalos são alguns dos poucos animais necessariamente sinceros, ao contrário
de nós homens, precisamente pelo fato de esquecerem. Não sei o
por quê disso, mas comecei a me sentir um pouco melhor ao ouvi-lo.
Quando lhe perguntei o quanto havia bebido, e se ele gostaria de trazer sua
conta para minha mesa, ele respondeu: - "eu não bebo. Água
apenas me basta". E eu fiquei ali sem saber ao certo como lidar com aquilo.
Ele disse que sentia nojo do álcool. Senti-me simultaneamente ofendido
e próximo da sensação de nojo que ele descrevia com palavras
que eu desconhecia até então. Mas não conseguia compreender
como ele poderia estar ali sentado em meio a tantos bêbados, como eu,
sem sequer ter dado um trago. Ele sorriu e disse que o que ele procurava não
estava no fundo de uma garrafa. Pelo que eu entendi, ele procurava a solidão.
Vencer, ou superar, o nojo do álcool tinha a ver com um retorno a si
mesmo, à sua humanidade. Não havia lugar mais solitário
do que aquele pequeno bar perdido em lugar nenhum em meio à gentalha
que nos cercava. Por mais rodeado de perdedores que ele pudesse estar, ele sempre
estaria solitário ali. Engraçado, eu também me sentia assim.
Mas curiosamente aquele dia nos reservou uma surpresa e tanto. Pela primeira
vez, não estávamos sós ali. Pela primeira vez esqueci de
pedir mais uma ao atendente. E ele, também pela primeira vez, sentou-se
com alguém para falar de sua doença.
Fiquei um pouco incomodado com aquela franqueza toda, mas nunca me senti julgado.
Afinal, que doença o levaria a buscar tamanha solidão em meio
a tantos bêbados? Para mim ficava cada vez mais clara a ideia de
que das duas uma: ou ele seria um lunático ou um bêbado que se
esquecera de que bebera além da conta. Isto é, ou um doido varrido
ou alguém como eu, se não pior. Perguntei se ele era religioso
ou vegetariano. Ele, rindo, disse que nem um nem outro. Ele simplesmente preferia
água. Ele me chamava de "espirituoso amigo", e dizia: - "in
vino veritas [no vinho, a verdade], parece que nisto estou em desacordo
com este mundo, meu espirituoso amigo". Ele ria solenemente e pedia um
copo de água ao atendente. Quanto à sua enfermidade, ele era enigmático.
Apenas enfatizava que graças a ela ele pôde viver de fato. Ela
o lançou de volta ao mundo do qual ele insistia que todos nós
tentávamos evadir. Papo de bêbado, se me perguntarem. Mas desde
que havia se juntado a mim ele não tinha ingerido uma gota de álcool
sequer.
Enfim, alguns alunos passaram por nossa mesa e vieram cumprimentá-lo,
dizendo que suas vidas haviam mudado graças aos seus escritos e lições
e que com ele tinham aprendido muito. Eu me lembro exatamente das suas palavras,
o que é até curioso, mas ele se levantou, bastante irritado, e
gritou: - "não aprendestes nada, se me veneram como a um ídolo!
E quando vossa fé desmoronar, que terão então? Como assim?
Ainda não vos havíeis procurado, nunca vos encontrastes! E, então,
me encontrastes e me tomam pelo o quê? Um Deus, um messias? Não
sejais tolos, assim fazem todos os crentes; por isso valem tão pouco
todas as crenças! Agora, como professor, rogo a vós que me percais
e vos encontreis antes de qualquer coisa; e, somente quando todos me tiverem
renegado, retornarei a vós...". Fez-se um silêncio sepulcral
e seus alunos apenas abaixaram as cabeças por um instante. E, com isso,
ele voltou-me o olhar agudo de antes, sorriu, deu uma leve piscadela, acenou
com a cabeça e agradeceu-me gentilmente, como que em gratidão
pela companhia, e partiu em direção ao crepúsculo. Nunca
mais o vi.
Fiquei um pouco mais sóbrio depois daquela cena toda. Paguei minha conta,
inclusive pelas duas águas que ele havia consumido. Meu olhar parece
que mudara, e eu observei que nossa mesa esteve sob a penumbra pela tarde inteira.
Enquanto os outros estavam ou à sombra ou ao sol. Exatamente na justa
medida entre o sol e a sombra, curioso como isso se destaca em minha memória
hoje. Hoje penso que este poderia ter sido o fato daquele estranho ter se dirigido
a mim, ou apenas um dos elementos que o atraíram.
Quando me levantei e preparava-me para ir embora, seus alunos todos se sentaram
ali, naquela mesma mesa. Mas o sol já se punha e tudo ali parecia já
um pouco mais escuro. Todos bebiam suas taças de vinho. Apenas a bela
mulher que os acompanhava, muito jovem, porém, de um olhar absolutamente
enigmático e confiante, bebia água. A bela moça fitava
o poente e, por um segundo, eu percebi que o professor olhara para trás,
num breve gesto em que sua humanidade parecia ter-lhe alcançado e que
sua "doença" ficou um pouco mais clara para mim. Clara como
água. Ela abaixou a cabeça e sem pronunciar nenhum som bebeu sua
água, enquanto ele seguiu seu caminho.
Um dos jovens pupilos propôs um brinde: - "in vino veritas,
ao mestre!", e todos brindaram, exceto a bela rapariga, que gentilmente
disse que não iria brindar com cavalheiros apenas com um copo d'água.
Eu sorri de leve. Levantei meu copo d'água, saudei os "amigos e
mestres" deles, quem quer que sejam, e brindei à meia distância
com a bela jovem.
Como a coruja que alça seus maiores e mais esplêndidos voos
no crepúsculo, eles começaram a divagar sobre temas que tão
densos e complexos que escapam inteiramente minha parca imaginação.
De lá, parti e nunca mais voltei ali. Não vou dizer que parei
de beber desde então, mas um copo d'água tem para mim hoje um
sabor que nunca antes eu havia sentido. Para muitos a água permanece,
contudo, insípida e incolor. Acho que, ao final daquele dia, todos encontramos
o que procurávamos.