Era a primeira vez que eu entrava no quarto de R., o pé direito era alto,
mas eu só notei depois de uns minutos, pois a 'cacetada visual' do mosaico
que era o quarto adiou esta impressão. Na parede "Lisa Minnelli
e Robert De Niro" em 'New York, New York', ao lado Batmam e do Homem Aranha
e ainda:flores, porta banner, cartões telefônicos, recortes de
revistas, uma bandeira azul do último candidato a prefeito - usada como
cortina- , um pano vermelho que disfarçava um buraco, vários pôsteres
colados no teto, dois oratórios - um com santo e um sem santo- , uma
televisão- com o som baixíssimo e letrinhas passando na tela-,
um vaso com flores laranjas e vermelhas enormes, citronela perto da janela,
duas camas, um vão na parede que dava para um 'cantinho-cozinha', dois
gatos, tapetes coloridos de linha, um rack branco, uma geladeira antiga com
um cartaz de cerveja e umas figuras humanas coladas na porta, um mapa, um batik-
pano chiquérrimo, filtros dos sonhos, móbiles de estrelinhas,
fotografias em preto-branco roubadas do Centro de Convivência, recortes
de animais e plantas, cestos de palha e bambu, banquinho, cadeirinha de criança
vermelha, mesa, estante, bauzinho indiano, bolas de natal douradas, gatinhos
de madeira, bonecas russas, vasos de vidro coloridos e transparentes, castiçais
com velas vermelhas, aparelho de som, indiozinho de gesso com cachimbo na boca,
bolinhas de madeira emendadas umas as outras formando um cordão, teia
de aranha- com aranha- , um escorpião 3-D, cartões postais, latas
de refrigerante vazias, ursinhos de pelúcia, revistas, banquinhos, três
cinzeiros e ainda seis malucos fumando pedra.
Eu e o Inho entramos, já estava acostumada com muita coisa, mas reconheço
que aqueles malucos com cara de noia me assustavam um pouco, sentei,
tipo 'normal , - nas situações mais improváveis eu sempre
tentei fazer cara de normal, - os malucos me olharam, de cima em baixo, o R.
perguntou de onde eu vinha, quem eu era e o que fazia ali. Passado o interrogatório,
se apresentou, e apresentou cada um dos malucos acrescentando que aquela era
a função 'normal', todo mundo muito loco, mas 'normal'. Normal,
pensei, e nessa hora essa palavra começava a tomar um significado bem
diferente, e o tempo me demonstraria que o padrão da normalidade é
bastante variável.
Os Malucos estavam sentados em circulo, e eu sentei, 'normal', um deles pegou
uma lata de refrigerante, amassou pelo meio, tirou o lacre, furou a parte amassada,
levou a boca, e deu algo como uma puxada, testando a passagem do ar, pegou um
plastiquinho preto, abriu, tirou uma pedrinha do tamanho de um dente, amarelinha,
- nessa hora o R. soltou um, 'esse é o doce de leite', - apertou encima
de uma capa de cd, desfazendo-a, recolheu uma porção de cinza
de cigarros com um cartão telefônico, pôs na lata, pegou
uma porção do pozinho em que havia transformado a pedra, colocou
encima das cinzas, e meteu fogo, ao mesmo tempo, do lado oposto, sentado na
cama, R. desmanchou um cigarro, colocou em uma seda, misturou com crack, bolou
seu pitilho e fumou - sempre fumava assim, esse era seu jeito, como a convivência
mais tarde me mostraria, - a ansiedade materializava-se ocupando toda a sala
junto com o cheiro do crack, algo parecido com plástico queimado.
Eu 'normal', desesperada por dentro, mas 'normal', com a noia dos caras
passando para mim, mas 'normal', o Inho deu umas pauladas - de acordo com R.
ele não dispensava- , saiu, com um cara grandão, que só
vi daquela vez, e voltou rapidamente trazendo mais dois papéis de pedra
e um de pó, encomendas do Piu. Uma figura branca de olhos claros, quase
azuis, e mandíbula trancada que a tornava monossilábica, quase
muda, naquele momento, e que parecia ligeiramente insólita equilibrada
em um banquinho. Papel de um, papel de outro, tudo distribuído, e o de
pó Piu jogou inteiro em uma revista, bateu dois tiros enormes, mandou
um e me fez sinal com a mão, na verdade ele também falou baixinho,
murmurou mais precisamente, me chamando. Eu rapidamente me aproximei, ele me
deu o canudo, mandei a lagartona, e qual não foi a minha surpresa quando
ele me disse que o papel inteiro era meu, inteiro e enorme. Mandei um, dois,
três e comecei a achar ótima a proximidade do meu quarto, mandei
mais um, minha noia se misturava mais ainda com a dos caras, fumava vários
cigarros, um atrás do outro. Ninguém falava nada. Um maluco levantava
e ia ate a janela uma vez por minuto, arrumava a cortina-bandeira, verificava
se não havia nenhuma fresta e voltava a posição inicial,
concomitantemente, outro deles enrolava e desenrolava o plástico da base
de um cachimbo de crack que só nessa hora eu vi, um terceiro olhava fixamente
para o cinzeiro, o Piu permanecia imóvel, enquanto R. mantinha a boca
aberta e Inho olhava para mim, estalado e elétrico.