A Garganta da Serpente
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O Quarto de R..

(Alessandra Melo)

Era a primeira vez que eu entrava no quarto de R., o pé direito era alto, mas eu só notei depois de uns minutos, pois a 'cacetada visual' do mosaico que era o quarto adiou esta impressão. Na parede "Lisa Minnelli e Robert De Niro" em 'New York, New York', ao lado Batmam e do Homem Aranha e ainda:flores, porta banner, cartões telefônicos, recortes de revistas, uma bandeira azul do último candidato a prefeito - usada como cortina- , um pano vermelho que disfarçava um buraco, vários pôsteres colados no teto, dois oratórios - um com santo e um sem santo- , uma televisão- com o som baixíssimo e letrinhas passando na tela-, um vaso com flores laranjas e vermelhas enormes, citronela perto da janela, duas camas, um vão na parede que dava para um 'cantinho-cozinha', dois gatos, tapetes coloridos de linha, um rack branco, uma geladeira antiga com um cartaz de cerveja e umas figuras humanas coladas na porta, um mapa, um batik- pano chiquérrimo, filtros dos sonhos, móbiles de estrelinhas, fotografias em preto-branco roubadas do Centro de Convivência, recortes de animais e plantas, cestos de palha e bambu, banquinho, cadeirinha de criança vermelha, mesa, estante, bauzinho indiano, bolas de natal douradas, gatinhos de madeira, bonecas russas, vasos de vidro coloridos e transparentes, castiçais com velas vermelhas, aparelho de som, indiozinho de gesso com cachimbo na boca, bolinhas de madeira emendadas umas as outras formando um cordão, teia de aranha- com aranha- , um escorpião 3-D, cartões postais, latas de refrigerante vazias, ursinhos de pelúcia, revistas, banquinhos, três cinzeiros e ainda seis malucos fumando pedra.

Eu e o Inho entramos, já estava acostumada com muita coisa, mas reconheço que aqueles malucos com cara de noia me assustavam um pouco, sentei, tipo 'normal , - nas situações mais improváveis eu sempre tentei fazer cara de normal, - os malucos me olharam, de cima em baixo, o R. perguntou de onde eu vinha, quem eu era e o que fazia ali. Passado o interrogatório, se apresentou, e apresentou cada um dos malucos acrescentando que aquela era a função 'normal', todo mundo muito loco, mas 'normal'. Normal, pensei, e nessa hora essa palavra começava a tomar um significado bem diferente, e o tempo me demonstraria que o padrão da normalidade é bastante variável.

Os Malucos estavam sentados em circulo, e eu sentei, 'normal', um deles pegou uma lata de refrigerante, amassou pelo meio, tirou o lacre, furou a parte amassada, levou a boca, e deu algo como uma puxada, testando a passagem do ar, pegou um plastiquinho preto, abriu, tirou uma pedrinha do tamanho de um dente, amarelinha, - nessa hora o R. soltou um, 'esse é o doce de leite', - apertou encima de uma capa de cd, desfazendo-a, recolheu uma porção de cinza de cigarros com um cartão telefônico, pôs na lata, pegou uma porção do pozinho em que havia transformado a pedra, colocou encima das cinzas, e meteu fogo, ao mesmo tempo, do lado oposto, sentado na cama, R. desmanchou um cigarro, colocou em uma seda, misturou com crack, bolou seu pitilho e fumou - sempre fumava assim, esse era seu jeito, como a convivência mais tarde me mostraria, - a ansiedade materializava-se ocupando toda a sala junto com o cheiro do crack, algo parecido com plástico queimado.

Eu 'normal', desesperada por dentro, mas 'normal', com a noia dos caras passando para mim, mas 'normal', o Inho deu umas pauladas - de acordo com R. ele não dispensava- , saiu, com um cara grandão, que só vi daquela vez, e voltou rapidamente trazendo mais dois papéis de pedra e um de pó, encomendas do Piu. Uma figura branca de olhos claros, quase azuis, e mandíbula trancada que a tornava monossilábica, quase muda, naquele momento, e que parecia ligeiramente insólita equilibrada em um banquinho. Papel de um, papel de outro, tudo distribuído, e o de pó Piu jogou inteiro em uma revista, bateu dois tiros enormes, mandou um e me fez sinal com a mão, na verdade ele também falou baixinho, murmurou mais precisamente, me chamando. Eu rapidamente me aproximei, ele me deu o canudo, mandei a lagartona, e qual não foi a minha surpresa quando ele me disse que o papel inteiro era meu, inteiro e enorme. Mandei um, dois, três e comecei a achar ótima a proximidade do meu quarto, mandei mais um, minha noia se misturava mais ainda com a dos caras, fumava vários cigarros, um atrás do outro. Ninguém falava nada. Um maluco levantava e ia ate a janela uma vez por minuto, arrumava a cortina-bandeira, verificava se não havia nenhuma fresta e voltava a posição inicial, concomitantemente, outro deles enrolava e desenrolava o plástico da base de um cachimbo de crack que só nessa hora eu vi, um terceiro olhava fixamente para o cinzeiro, o Piu permanecia imóvel, enquanto R. mantinha a boca aberta e Inho olhava para mim, estalado e elétrico.

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