A Garganta da Serpente
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O retirante

(Alberto Metello Neves)

João Maria dos Anjos, o João dos Anjos, pequeno agricultor que vivia no alto sertão de Pernambuco, com a esposa Coralina e seus dois filhos, Lucineia, com dez anos e Estevão com quinze anos.

A situação da família estava muito difícil pois nada produzia devido à escassez das chuvas e a má qualidade de suas terras. Algumas vezes, João dos Anjos trabalhava como boia fria para um fazendeiro distante de sua propriedade. Só assim, conseguia algum alimento para a sua sobrevivência e a da sua família. O leite era fornecido por duas cabras, que muito mal tinham algum mato ralo para ingerir, pois o seu terreno era árido demais. A água de má qualidade vinha de uma cacimba e se prestava para a higiene e alimentação.

Certa noite, Cora, perguntou ao João: - João, meu velho, vamos embora deste pedaço de terra? Não há mais nada a fazer por aqui. Não aguentamos mais ficar aqui. Os nossos filhos estão se definhando. Não temos mais roupas para eles e nem para nós. Isto não é vida . Estamos morrendo aos poucos. Até a Filó já está toda arcada, com as costelas de fora. É muito triste, João dos Anjos. Vamos buscar outro destino.

João dos Anjos só escutava. As suas lágrimas silenciosas já se desciam pelas suas barbas enormes. Cora está coberta de razão. Esperar o que? Vamos partir, embora seja triste a nossa terrinha ficar. Mas, não podemos levá-la, não é?

- Vamos para a cidade grande tentar a nossa sorte? Você topa?

- Mulher, o que vamos fazer na cidade grande?

Vamos arranjar trabalho e salvar os nossos filhos. Aqui, vão morrer de fome.

O alimento está se acabando e nada mais podemos fazer.

- Vamos para São Paulo, Cora? Ouvi dizer no rádio da farmácia, que em São Paulo

estão construindo casas e edifícios.

- Cora - disse-lhe João. Lá podemos morar em um barraco numa favela. Os visinhos ajudam a gente. Eu vou trabalhar na construção.

São todos conterrâneos nossos e talvez a gente encontra um pernambucano destas bandas. Somos todos unidos. Eles vão nos ajudar. - João, falou-lhe Cora; eu posso trabalhar em uma casa de família e assim a nossa vida pode melhorar, você não acha?

Que futuro os nossos filho terão aqui?


Eu gosto deste pedacinho de chão, mas temos tudo contra nós: não chove, não podemos plantar, ficamos sem alimentos, não temos escola aqui perto, o posto de saúde fica muito distante. Temos apenas a botica do seu Joaquim, que nos serve, mas nem sempre podemos pagá-lo. Em São Paulo, a vida será diferente. Os nossos filhos poderão ir para uma escola, tem posto de saúde e o mais importante, trabalho.

Vamos vender o nosso sítio para o boticário Joaquim. Ele deve comprar e assim vamos ter algum dinheiro por certo tempo. Vai dar para a nossa viagem e sobrar algum.

- Cora - você teve uma boa ideia. Não temos outra saída. Amanhã mesmo vou falar com o dono da botica e vender o nosso sítio. Jantaram o que restava dos alimentos e ainda repartiram com a cadela Filó. Ela era a grande amiga da família, principalmente da Lucineia. Foram dormir, cheios de sonhos. O amanhã, seria a salvação deles.

- No dia seguinte, João dos Anjos foi procurar o seu Joaquim, que logo cedo já estava com a sua botica aberta.

- Bom dia Joaquim. Eu vim cedo porque preciso ter um dedo de prosa com o amigo. O senhor tem um tempinho?

- Entre, amigo João - vamos conversar.

- Joaquim, eu e a minha Cora resolvemos mudar para a cidade grande. Vamos para São Paulo para tentar a nossa vida. Aqui não tem futuro para nós e nossos filhos. Por essa razão, eu vim oferecer as minhas terras para o amigo. Entregamos o Monjolo por cinco mil reais. A terra tem cinco alqueires dos grandes. Eu nada posso fazer com essas terras e o amigo, tem condições de lá produzir alguma coisa, ou mesmo negociar. Com essa quantia, podemos nos mudar para São Paulo e assim, arranjar a nossa vida.

- Não é um bom negócio para nós dois?

- Deixe-me pensar um pouco na sua oferta. Joaquim pensou, pensou, pensou e decidiu.

- Sim, João dos Anjos - posso comprá-lo. Negócio fechado.

- Vamos até o cartório do escrivão Paulo e ele arranja os papéis. Vou lhe entregar agora, a quantia de dois mil e quinhentos reais. O restante eu lhe entrego no final dos papéis - está bem assim, João?

- Sim, Joaquim. Está muito bom. Amanhã cedo terminaremos o negócio. A Cora virá assinar o documento. Eu recebo o restante, não é?

- Sim, João - é assim mesmo.

- Vamos pegar a jardineira à tarde. Vamos à Caruaru e de lá, de ônibus, para São Paulo.

- Então, amigo Joaquim. Deus lhe pague. Vou para casa falar com Cora e os filhos. Teremos uma vida nova com a ajuda de Deus e do Padrinho Cícero.



A viagem



Eram dezoito horas e trinta minutos quando a jardineira chegou ao Bar do Ponto. Todos os passageiros tomaram o seu lugar. Era um veículo muito antigo, empoeirado e com pouquíssimo conforto. Mas a família do João dos Anjos estava contente, pois iria partir para uma aventura, que segundo a sua fé, seria a sua redenção.

Entretanto, uma sombra de tristeza lhes pairava nos olhos. Era a Filó. Ela não pode viajar, mas o boticário Joaquim, ficou com a sua guarda. Prometeu à família, tratar Filó como se fora sua, com todo o carinho, o que tranquilizou a Lucineia e o Estevão. Compraram alguns alimentos para a viagem, que iria ser penosa e se recostaram em seus bancos, que não apresentavam muita segurança. Mas, sonhavam com os olhos abertos. Nova vida. Como seria?

A viagem começou. O sofrimento de deixar o que lhes pertencia para trás, onde sempre viveram, a Filó que não podia lhes acompanhar e a falta de conforto do coletivo que os transportava, era o mesmo para todos. A jardineira estava lotada de companheiros que iam atrás de tão esperada felicidade.

O veículo, roncava estrada afora. Havia um bom caminho a percorrer até a cidade de Caruaru, onde os esperava o ônibus para São Paulo. Todos dormiram. Sacolejava, era barulhenta, mas representava a felicidade para aquela tão sofrida família.

Depois de várias horas de viagem, a primeira parada. O motorista, seu Onofre, avisou que teriam quinze minutos para descansar. Todos desceram. Alguns esticaram as pernas, outros foram fazer suas necessidades, outros foram ao café e outros não se levantaram.

Cora - você está cansada? E os nossos filhos? Cora foi falar com eles. Continuavam dormindo. A próxima parada deveria se daí a duas horas, se tudo corresse bem. Continuavam sonhando com a nova vida.

A viagem seguiu dentro desse clima de descontração e novidades, pois a família de João dos Anjos, inclusive ele, nada conhecia de uma cidade grande.

Após muitas horas de estrada, chegaram à Caruaru.

No terminal rodoviário desceram e foram se acomodar nos seus respectivos lugares no ônibus que os levaria a São Paulo.

Passaram para o veículo todos os seus pertences, que não eram muitos e se encontravam embalados em sacos de aniagem que conseguiram na venda do senhor Diogo, além de alguns alimentos para a viagem e alguns copos plásticos com água para saciar a sede durante o trajeto.

O ônibus estava lotado de conterrâneos que como eles, iam à busca de melhores condições de vida na cidade grande. Alguns, iam sozinhos, como o Pedro Caetano, que havia deixado a família lá no sertão, outros, levavam a sua família.

O Pedro Caetano falou ao João dos Anjos que tinha um conhecido que morava no Jardim Ângela, por sinal, um dos locais mais perigosos da zona leste de São Paulo, porém, ele tinha barracos para alugar e com certeza João dos Anjos, iria conseguir um para abrigar a sua família. O barraco tinha dois quartos, uma pequena cozinha, um banheiro bastante simples, o que daria para ele ficar abrigado por um certo tempo até conseguir uma acomodação melhor e mais ampla.

João dos Anjos e a Cora gostaram, pois não iriam ficar ao relento, embora o ambiente fosse perigoso devido ao movimento de marginais que atuavam na área.

Teriam água encanada em uma bica coletiva, que atendia a população do pedaço e a luz era uma grande "gambiarra", também fácil de se fazer, porque haviam "técnicos" que atendiam aos moradores locais.

Próximo ao barraco havia também, uma escola da prefeitura, onde Lucineia poderia estudar pela manhã e o Estevão, à noite. Ele teria que trabalhar também para ajudar a casa. A escola fornecia todo o material para o aluno, além de uma farta alimentação por turno de estudos. Esta escola era constantemente invadida por marginais dos locais próximos, porém, era a única que existia no bairro.

A família possuía as certidões de casamento e de nascimentos dos filhos. Era suficiente para a matrícula na escola e para tirar outros documentos, como carteira de trabalho, que o próprio sindicato providenciava e os RG de todos.

Estavam cheios de planos e por eles, tudo ia dar certo. Foi com este pensamento que chegaram à São Paulo, um grupo de cidadãos sofredores e penalizados pelas condições ambientais da estiagem no sertão nordestino. Eram lutadores, em busca de dignidade e de melhor condição de vida. Em busca da sua cidadania.

(07/08/2002)

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