Conto-vos o caso como mo contaram.
Frei Álvaro era um bom homem e um mau frade. Capaz de todas as virtudes
e de todos os atos de devoção, não tinha, todavia, a heróica
ciência domar os impulsos de seu voluptuoso temperamento de mestiço
e, a despeito dos constantes protestos que fazia para não pecar, pecava
sempre. Como extremo recurso, condenara-se, nos últimos tempos, a não
arredar pé do convento. À noite fechava-se na cela, procurando penitenciar-se
dos passados desvarios; mas, só reprimir o irresistível desejo de
recomeçá-los, era já o maior dos sacrifícios que ele
podia impor à sua carne rebelde.
Chorava.
Chorava ardendo de remorsos por não poder levar de vencida os inimigos
da sua alma envergonhada; chorava por não ter forças para fazer
calar os endemoniados hóspedes do seu corpo, que, dia e noite, lhe amotinavam
o sangue. Quanto mais violentamente procurava combate-los, tanto mais viva lhe
acometia o espírito a incendiária memória dos seus amores
pecaminosos.
E no palpitante cordão de mulheres que, em vertigem, lhe perpassavam cantando
diante dos desejos torturados, era Leonília, com seus formosos cabelos
pretos, a de imagem mais nítida, mais persistente e mais perturbadora.
Em que dia a vira pela primeira vez e como se fizera amar por ela, não
o sei, porque esses monásticos amores só chegam a ser percebidos
pelos leigos como eu, quando o fogo já minou de todo e abriu em labareda
a lançar fumo até cá fora. À primeira faísca
e às primeiras brasas, nunca ninguém, que eu saiba, os pressentiu
nem deles suspeitou.
Certo é que, durante belos anos, Frei Álvaro, meia-noite dada, fugia
aos muros do seu convento, e, escolhendo escuras ruas, cosendo-se à própria
sombra, ia pedir à alcova de Leonília o que não lhe podia
dar a solidão da cela.
Pertenceria só ao frade a bela moça? Não o creio.
E ele? seria só dela? Também não, pois reza a lenda donde
me vem o caso que, em vários outros pontos da cidade Frei Álvaro
era igualmente visto fora de horas, embuçado e suspeito, correndo sem dúvida
em busca de profanas consolações daquele mesmo gênero.
Mas, no martírio da reclusão a que por último se votara,
era seguro a lembrança de Leonília o seu maior tormento. E assim,
aconteceu que, certa noite, à força de pensar nela, foi tal o seu
desassossego de corpo e alma, que o frade não pôde rezar, nem pôde
dormir, nem pôde ler, nem pôde fazer nada. Com os olhos fechados ou
abertos, tinha-a defronte deles, linda de amor, a enlouquecê-lo de saudade
e de desejo.
Então, desistindo da cama e dos livros, pôs-se à janela, muito
triste, e ficou longo tempo a consultar a noite silenciosa. Lá fora a lua,
inda mais triste, iluminava a cidade adormecida e no alto as estrelas pareciam
que pestanejavam de tédio. Nada lhe mandava um ar de consolação
para aquela infindável tortura de desejar o proibido.
De repente, porém, estremeceu, sem poder acreditar no que viam seus olhos.
Seria verdade ou seria ilusão dos seus atormentados desejos?... La embaixo,
no pátio, dentro dos muros do convento, um vulto de mulher passeava sobre
o lajedo.
Não podia haver dúvida!... Era uma mulher, uma mulher toda de branco,
com a cabeça nua e os longos cabelos negros derramados.
Céus ! E era Leonília!... sim, sim, era ela, nem podiam ser de outra
mulher aqueles cabelos tão formosos aquele airoso menear de corpo! Sim!
era ela... Mas, como entrara ali?... Como se animara a tanto?
E o frade, sem mais ter mão em si, correu a tomar o chapéu e a capa
e lançou-se como um doido para fora da cela.
Atravessou fremente os longos corredores, desgalgou escadaria de pedra e ganhou
o pátio.
Mas o vulto já lá não estava.
O monge procurou-o, aflito, por todos os cantos. Não o encontrou.
Correu ao parapeito que dava do alto para a rua, sobre o qual se debruçou
ansioso e, com assombro, desde novo o misterioso vulto, agora, lá fora,
a passear embaixo, à luz do lampião de gás.
Já impressionado de todo, Frei Álvaro desceu de um relance as escadas
do átrio, escalou as grades do mosteiro e saltou à rua.
O vulto já não se achava no mesmo ponto; tinha-se afastado para
mais longe. Frei Álvaro atirou-se para lá em disparada, mas o vulto
deitou a correr, fugindo na frente dele.
- Leonília ! Leonília! Espera! Não me fujas!
O vulto corria sempre, sem responder.
- Olha que sou eu! Atende!
Leonília parou um instante, voltou o rosto para trás, sorriu e fugiu
de novo quando o monge se aproximava.
Afinal, já não corria, deslizava, como se fora levada pelas frescas
virações da noite velha, que lhe desfraldavam as saias e os cabelos
flutuantes.
E o monge a persegui-la, ardendo por alcançá-la.
- Atende! Atende, flor de minha alma! - suplicava já com a voz quebrada
pelo cansaço. - Atende, pelo amor de Deus, que deste modo me matas, criminosa!
Ela, ao escutar-lhe as sentidas vozes, parecia atender, suspendendo o voo,
não por comovida, mas por feminil negaça, a rir, provocadora, braços
no ar e o calcanhar suspenso, pronta, mal o frade se chegasse, a desferir nova
carreira.
E assim venceram ambos ruas e becos, quebrando esquinas, cortando largos e praças.
O frade já tinha perdido a noção do tempo e do lugar e estava
prestes a cair exausto quando, vendo a moça tomar certa ladeira muito conhecida
deles dois, criou novo ânimo e prosseguiu na empresa, sem afrouxar o passo.
- Vai recolher-se a casa! - concluiu de si para si. Não me quis falar na
rua... Ainda bem!
Leonília, com efeito, ao chegar à porta da casa onde outrora o religioso
fruía as consolações que o seu mosteiro lhe negava, enfiou
por ela e sumiu-se sem ruído.
O frade acompanhou-a de carreira, mas já não a viu no corredor e
foi galgando a escada. Encontrou em cima a porta aberta, mas a sala tenebrosa
e solitária. Penetrou nela, tateando, e seguiu adiante, sem topar nenhum
móvel pelo caminho.
- Leonília! chamou ele.
Ninguém lhe respondeu.
O quarto imediato estava também franqueado, também deserto e vazio,
mas não tão escuro, graças à luz que vinha da sala
do fundo. O religioso não hesitou em precipitar-se para esta; mas, ao chegar
à entrada, estacou, soltando um grito de terror.
Gelara-lhe o sangue o que se lhe ofereceu aos olhos. Eriçaram-se-lhe os
cabelos; invencível tremor apoderou-se do seu corpo inteiro.
A sala de jantar onde, tantas vezes feliz, ceara a sós com Leonília,
estava transformada em câmara mortuária, toda funebremente paramentada
de cortinas de veludo negro, que pendiam do teto, consteladas de lantejoulas e
guarnecidas de caveiras de prata. Só faltava o altar. No centro, sobre
uma grande mesa, também negra e enfeitada de galões dourados, havia
um caixão de defunto. Dentro do caixão um cadáver todo de
branco, cabelos soltos. Em volta, círios ardiam, altos, em solenes tocheiros,
cuspindo a cera quente e o fumo cor de crepe.
O monge, lívido e trêmulo, aproximara-se do catafalco. Olhou para
dentro do caixão e recuou aterrado.
Reconheceu o cadáver. Era da própria mulher que, pouco antes, o
fora buscar ao convento e o viera arrastando até aí pelas ruas da
cidade.
Sem ânimo de formular um pensamento, o frade deixou-se cair de joelhos sobre
o negro tapete do chão e, arrancando do seio o seu crucifixo, abraçou-se
com ele começou a rezar fervorosamente.
Rezou muito, de cabeça baixa, o rosto afogado em rimas. Depois ergueu-se,
foi ter à essa, pôs-se nas pontas pés para poder alcançar
com os lábios o rosto do cadáver e pousou nas faces enregeladas
um extremo beijo amor.
Em seguida, olhou em derredor de si, desconfiado e tímido e, como não
houvesse na sala uma só imagem sagrada em companhia da morta, desprendeu
do pescoço o crucifixo e foi piedosamente dependurá-lo na parede,
à cabeceira dela.
Mas, nesse mesmo instante, as tochas apagaram-se de súbito e fez-se completa
escuridão em torno do impenitente. Foi às apalpadelas que ele conseguiu
chegar até à porta de saída e ganhar a rua.
Lá fora, a noite se tinha feito também negra e os ventos se tinham
desencadeado em fúria, ameaçando tempestade. O monge deitou a fugir
para o mosteiro, sem ânimo de voltar o rosto para trás, como temeroso
de que Leonília por sua vez o perseguisse agora até ao domicílio.
Quando alcançou a cela, tiritava de febre.
Acharam-no pela manhã, sem sentido, defronte do seu oratório, joelhos
em terra, braços pendidos, cabeça de borco sobre um degrau do altar.
Só muitos dias depois, um dia de sol, conseguiu sair à rua, ainda
pálido e desfeito. Seu primeiro cuidado foi correr aonde morava Leonília
e rondar a casa em que a vira morta.
Encontrou-a fechada e com letreiro anunciando o aluguel.
- Está vazia, depois que nela morreu o último inquilino - explicou
um vizinho.
- Há muitos dias? - quis saber o frade, e estremeceu quando ouviu dizer
que havia uns oito ou dez.
- E o morador, quem era? - perguntou ainda.
- Era uma mulher. Chamava-se Leonília. Morreu de repente.
- Ah!
- Se quer alugar a casa, encontra a chave ali na esquina...
Frei Álvaro agradeceu, despediu-se do informante, foi buscar a chave, abriu
a porta, entrou e percorreu toda a casa.
Só ele, além de Deus, soube a impressão que sentiu ao contemplar
aquelas salas e aqueles quartos.
- Estranho caso! - disse consigo, sem ânimo de olhar de rosto para o temeroso
abismo da dúvida. - Fui vítima de uma alucinação que
coincidiu com a morte desta querida cúmplice dos meus pecados de amor...
E, enxugando os olhos, ia retirar-se, conformado com a dupla dor da saudade e
do remorso, quando, ao passar rente de certa parede, estremeceu de novo.
Tinha dado com os olhos no seu crucifixo, do qual já nem se lembrava. Permanecia
pendurado no mesmo ponto em que o monge o deixara na terrível noite.
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