A Garganta da Serpente
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Cocorocó

(Adhemar Molon)

Na casa de detenção superlotada, por volta de 1970, lá no alto, numa das janelas, por entre as grades, duas pernas balançavam ritmicamente. As barras de ferro projetavam sombras desenhando listas negras no corpo sentado no lado de dentro. As mãos do detento fechavam-se em torno às grades com firmeza suficiente ao equilíbrio de seu dono. Lá dentro, os olhos físicos daquele corpo estavam fixos no nada, de vez que os olhos da mente estavam abertos ao longínquo passado, aos bons tempos de infante, quando os pequenos furtos não passavam de heróicas aventuras vinculadas às realizações de pequeninos sonhos e lindas fantasias, quando inexistia a total compreensão do ato delituoso, do comportamento avesso às leis, do significado e das consequências pelo fato de delinquir. Havia, sim, a leve noção do certo e errado, do bem e do mal, sem, entretanto, o tirocínio da complexidade que envolve tais vocábulos...

Luiz Miranda, o "Ninim", era o nome que naquela Casa ostentava apenas um número carimbado à camisa, mas que tinha memória na qual se perdia e se ausentava das atualidades cotidianas. Assim, com tempo de sobra, reconstituía acontecimentos e filosofava consigo mesmo... Que incomparável máquina recebera dos deuses que o levava ao passado e para onde quisesse, mantendo por quanto desejasse um quadro, uma imagem, uma ocasião, uma época em sua memória que via tão nitidamente sem que olhos tivesse, enxergando, num segundo, até uma vida inteira, fundindo, num só instante o passado, presente, futuro!... Que inigualável instrumento recebera dos deuses! Não embarcava em nenhum veículo, não encaixava nenhum plugue, não acionava interruptores, e, no entanto, podia ver o mundo, criar, aperfeiçoar, construir, destruir, ir e voltar sem mover um passo, ver céus e infernos e lá habitar simultaneamente, colorir, apagar, matar e reviver, enfim, sentir as dores e prazeres, viver, morrer e renascer!...Que indizível mecanismo recebera dos deuses!

Ninim nunca fora uma pessoa triste, mas, às vezes, volvia para si mesmo e se revolvia na busca da compreensão da razão do próprio viver, do seu existir. Sua mente inexplorada, desconhecida, incutia-lhe a intuição de que era um e muitos, estrela isolada e universo inteiro a um só tempo e no mesmo espaço, que numa efeméride tinha a compreensão do todo e a seguir o confundia nas ambiguidades, forçava-o a rebuscar a intuição primeira que o fundia no todo de onde partia imanente em séries vibratórias de manifestações de vida, com sensações propostas pelos sentidos físicos não totalmente compreendidos. Tudo lhe partia de uma única fonte primária para depois se esconder nas complexidades... Ninim era sério e risinho, bizarro, pitoresco, realista e sonhador, enfim, com todos os sentimentos homônimos e antônimos, e, principalmente, era um vivedor, um gozador...

Assim, naquele retrato bizarro na janela da cadeia, abriu-se o armazém de sua memória, verdadeira e única máquina do tempo, e então se deixou levar pelo veículo da sua mente que o reconduziu ao passado, à época dos sonhos de sua própria adolescência...

O cinema, naquela época, por volta de 1944, era sua maior paixão. Por isto, enlevado pelos heróis fictícios, deixava-se confundir com eles. Às vezes via-se como o "Sombra", personagem que dava título a um filme seriado, exibido por um turco numa sala de espetáculos improvisada. Cada semana vinha um capítulo que era interrompido num momento de extremo perigo de vida para o herói, o que estimulava a molecada a não perder a sequência daquelas aventuras nas semanas que se seguiam. Era glorioso ver o "Sombra" surpreender, com sinistra gargalhada, no local de crime, um bando de marginais que tremia da cabeça aos pés aterrorizado pelo mascarado vestido de negro com sua capa solta esvoaçando à menor brisa. O dinheiro para o cinema era conseguido com o trabalho de engraxate, com o produto de furtos de frutas de pomares locais ou de coelhos distraídos apanhados nos viveiros de donos ausentes. Agora, enquanto balançava as pernas dependuradas nas grades, via-se olhando com olhares frustrados os cartazes do cinema do turco propagandeando o seriado "Os perigos de Nyoca", anunciando o quinto capítulo a ser exibido logo mais a noite. Já quase na puberdade, examinava atento os detalhes e curva da bela heroína, que na semana passada deixara em suspense a molecada. Embasbacado pela linda donzela, achava sempre uma forma de conseguir dinheiro para os ingressos, pois não poderia deixar de vê-la escapando ao último perigo.

- Maldição dos diabos? - exclama Ninim.

- Por que não passavam logo de uma vez todos os capítulos?...

Naquele dia, porém, não poderia apelar para o pomar do "seu" Convões. Primeiro porque já havia sido surpreendido na catança de suas mexericas, sendo por ele até ameaçado de morte caso retornasse àquela chácara. O velho tinha até uma espingarda! Depois, porque o velho português era meio caduco e porisso muito perigoso. Além do mais, as frutas estavam escassas, as árvores eram muito espinhentas, de difícil escalada, havendo ainda a considerar que umas poucas frutas não renderiam o suficiente para o ingresso do cinema. - O turco bem poderia dar-lhe um ingresso - pensou. Mas, aquele pão-duro não era dado a caridades...Também não poderia afanar lebres do "seu" Tomé que há poucos dias os surpreendera, ele e outros meninos, carregando os bichos pelas orelhas. O homem era louco! Tanto era que estava internado no hospício! Era certo que "seu" Tomé tinha lá suas razões para se enfurecer. A molecada não lhe dava sossego. Dedicava ele seu tempo cuidando dos reprodutores, fêmeas e filhotes, construindo caprichados viveiros com taboas de caixote e plantando uma enorme horta num terreno do hospício para manter sua criação. Cuidava da coelhada como se fosse parte de sua família, considerando-a mesmo como tal, de vez que não recebia visitas de parentes fazia anos. No entanto, aqueles diabinhos, delinquentes infantis, não se davam conta desses problemas. Invadiam sua horta, danificavam-na e ainda furtavam-lhe os coelhos, seus diletos filhos. Afinal - pensava a molecada - "seu" Tomé era apenas um louco internado no hospício e, portanto, jamais poderia ser o proprietário legítimo daquela criação de lebres. Porém, apesar disso, não era prudente uma nova incursão, tão cedo, às posses do doente que há poucos dias lhes dera uma carreira. Não tinham ainda, Ninim e sua turma, se refeitos do susto, o que era uma pena, pois o "Toninho do Bar" pagava por três orelhudos o suficiente para duas entradas de cinema, algumas balas e ainda um maço de cigarros "Rodeio" que arrebentava o peito de qualquer cristão. Mas, aquela pequenina brilhante inteligência não se quedaria tão facilmente. Matutando, matutando, lembrou-se de uma galinhada que, ao entardecer, fazia sua cama nas muitas goiabeiras de um cercado próximo ao Manicômio Judiciário, conhecido como "quintal da goterapia" não se sabe o porque desse nome.

As galinhas não tinham donos definidos e tal qual a coelhada eram cuidadas por internos de uma das colônias de doentes mentais. Era só pular a cerca de arame farpado, trepar numa goiabeira e agarrar uma galinha adormecida. Depois, andar alguns quilômetros e vendê-la pro "Toninho do Bar". Ele comprava coelhos porque não compraria também galinhas? Arquitetados os planos, delineados os caminhos, procurou Betinho, o parceiro de sempre, para iniciar-se a busca à coisa alheia. Betinho era esguio como cobra, ladrão feito rato, inteligente como um mestre-escola e valente tal qual Cisco Kide, razão porque liderava quase sempre as tão necessárias incursões ao patrimônio alheio. Exposto-lhe os planejamentos, aperfeiçoados os detalhes, com a condição de que não seria ele, o Betinho, o transportador da mercadoria, apanharam Fabiano, outro componente do bando, numa esquina, e puseram-se, os três valentes mosqueteiros, a caminho da grande conquista, a galinha salvadora! A danada deveria valer mais que alguns coelhos, já que era um prato raro de poucas famílias nos domingos de macarronada.

Chegaram os três no goiabal lá pela tardinha, bem no crepúsculo, quando as galináceas já se acomodavam nas galharias das vintenárias frutíferas e os internos estavam recolhidos, perambulando apenas um e outro mais privilegiado pela administração do nosocômio. Ninim trepou numa enorme goiabeira onde umas cinquenta homônimas se agasalhavam. Betinho e Fabiano, embaixo, babavam à vista do tesouro inesgotável. Aquelas árvores davam mais galinhas que goiabas e os frutos ali estavam e sempre estariam à disposição de suas necessidades cinematográficas. Era só chegar, pegar e levar. Por que não pensaram naquilo antes?...

As aves forravam as frutíferas sem ninguém a vigiá-las! Não tinham dono! Eram do governo e o que pertencia ao governo era de todo mundo e não era de ninguém, como sempre ouviam dos funcionários hospitalares!...Ninim estendeu a mão numa não bem adormecida que passou logo para um galho mais ao alto, criando suspense e agonia de espera aos quatro olhinhos vivos do andar térreo. Ninim praguejou:

- desgraçada! Fique quieta!

Os ingressos do cinema estavam garantidos! A ave não tinha dono, pensavam. No entanto, lá no fundo da consciência, sabiam que era uma ação condenável, pois trataram logo de ocultá-la sob a camisa de Ninim, ficando aquele enorme pelote, parecendo mulher grávida envergonhada do próprio filho, a despertar curiosidade aos passantes durante o retorno. Levassem-na à mão, não despertariam tanta suspeita! A cada olhar curioso, examinavam, os três, todos os botões e as amarras da camisa à cintura...

Nessa caminhada da volta, atrapalhando o glorioso feito, topam com outro bando rival de moleques liderado pelo briguento, gozador e chato "Tião Pretinho" que, a todo custo, queria conhecer o conteúdo daquela enorme barriga num menino tão pequeno. Após tanto interrogatório sem nenhum resultado, Tião rodeava Ninim e danava a cutucar, com o indicador em riste, o suspeito barrigão. A cada cutucada ouvia-se um vigoroso có-có-có. Ninim fechava e apertava mais e mais os braços sobre a própria barriga na tentativa de esconder sua vergonha, aquela gravidez de desconhecida paternidade. E o maldito moleque Tião saltitava, rodeava e cutucava...Derrepente o có-có-có foi se tornando fraco, tênue, sussurrante, agonizante... Depois de mais alguns cutucões os moleques se afastaram cantando em coro:

- ladrão de galinha, có-có-có, có-có-có, ladrão de galinha, có-có-có,...

Tal esdrúxula canção ficou martelando a cabeça de Ninim o tempo todo. Chegados ao barzinho da estação ferroviária trataram logo de vender a presa. O Toninho estava interessado. Quis ver!... Ninim abriu a camisa e caiu ao chão a glória do seu grande feito! Estava mole! Muito mole! Nem fazia mais o maldito denunciador có-có-có! Pariu, ali mesmo, na presença de todos e sem assistência de parteiro, um vergonhoso natimorto. A galinha havia morrido por asfixia...Temeroso de doença, galinha morta o Toninho não quis comprar. Os argumentos de Ninim não o convenceram. Tanto trabalho para nada... O jeito foi perder um capítulo do seriado, ficando sem saber, passados tantos anos, como a Nyoca dos seus sonhos doirados conseguiu se safar do perigo que ficou em suspense. Agora, balançando as pernas por entre as barras de ferro daquela insuportável cadeia, sofria, como sofrera sempre, aquele vazio, aquela ausência e ainda ouvia na alma o maldito có-có-có-cócórocó...

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