O advogado chegou ao fórum, dirigiu-se a sala dos causídicos
e ficou aguardando que algo ocorresse. Permaneceu ali algumas horas. Leu todos
os avisos, todos os folhetos sobre a mesa, palavra por palavra, vírgula
por vírgula. Não havia mais o que se ler, ninguém para
conversar. Foi por duas ou três vezes para a rua que fica defronte, olhou
para os lados, fumou dois ou três cigarros envenenando mais um pouquinho
os seus pulmões...
Retornou a mesma sala, sentou-se, escreveu uma poesia e uma crônica. Lá
pelas quatro e tanto da tarde foi solicitado a prestar defensoria para um réu
cuja advogada havia faltado à audiência criminal. Ela fazia parte
daqueles que pouco se importam com seus clientes ou quiçá estaria
com um grande problema a justificar sua falta. Um servidor da Justiça
socou nas mãos do experiente advogado um processo bastante volumoso para
que o lesse e se colocasse a par do seu conteúdo e o convidou a falar
com o pobre desconhecido réu que aguardava numa das salas de espera.
Tinha um prolongado prazo de cinco minutos para realizar tudo aquilo, enquanto
que o juiz e o ministério público o tivera à sua disposição
durante meses ou talvez durante anos...Parecia até um ato de covardia
para com o advogado e com pobre réu...
Não fora o fato de ter o ilustre causídico feito um excelente
curso de memorização, não teria conseguido em dois minutos
ler e entender cerca de quinhentas folhas de um processo de tentativa de homicídio.
Para pessoa tão habilitada aquilo era uma canja de galinha de tão
fácil de ser digerido, entendido.
Em conversa com o réu ficou sabendo que o coitado havia estado na casa
de sua ex-companheira com a qual tinha dois filhos. Ele a havia deixado talvez
por estar de saco cheio daquela companhia. Depois, arrependido, retornou a casa
dela buscando reconciliação. Lá chegando deparou com outro
pretendente que a tentava seduzir. Enciumado, desferiu duas leves facadas no
rival. A faca atravessou o corpo da infeliz vítima porque ela tinha a
carne muito macia, pois o esfaqueador apenas lhe encostou aquele objeto pérfuro-cortante
de cerca de doze polegadas de comprimento por sete centímetros de largura.
Era uma "faquinha" tão insignificante que não dava para
entender como penetrara tanto e produzira buracos tão grandes muito menos
como pode atravessar-lhe o corpo. Depois de ter sido esfaqueado por apenas duas
vezes, a infeliz vítima, pessoa muito forte e resistente, passou a mão
num pedaço de pau e meteu duas pauladas na cabeça de seu agressor.
Este, atracado com o homem já ferido, continuou a dar leves cutucadas
com sua pequenina lâmina de doze polegadas até que o desgraçado
caiu desfalecido. O agressor tratou de "se mandar" do local do crime.
A vítima foi socorrida e lamentavelmente, para ele, não morreu.
O réu, pessoa simples do povo, sem passagem pela polícia, sem
antecedentes criminais, primário, estava desesperado no dia do interrogatório
judicial, pois sua advogada dera-lhe uma tremenda "mancada". Alguns
são assim mesmo! Infelizmente para os seus clientes!
A vítima, um bandido pobre coitado, fugitivo da penitenciária,
condenado por apenas e tão somente três homicídios dolosos,
não fazia nada de mal no momento daquele acontecimento. Só queria
expulsar seu agressor da casa para ficar com sua mulher que afinal estava lá
à disposição de quem a quisesse. E naquele instante, fatídico
instante, dois a estavam querendo ao mesmo tempo, mas unicamente um poderia
com ela ficar. Deveria ser a mais cobiçada das mulheres na face da terra.
A mais bela de todas. A mais sensual. A única a ser desejada pelos homens!
Que glória para ela ver homens disputando-a, digladiando-se da forma
mais violenta possível! Existem muitas mulheres assim que pensam ser
únicas, e para alguns homens elas o são. Seus olhos não
vêm outras nem novas possibilidades. Então que se há de
fazer. Paciência...São seus olhos e seus corações...
Por sorte o infeliz réu pode contar com um advogado de momento que tinha
memória de elefante conseguindo estudar, memorizar em dois minutos aquele
pequenino processo de apenas quinhentas folhas. Assim, seus direitos constitucionais
de ampla defesa estavam garantidos. Seu defensor, em dois minutos conhecera
todos os atos do processo e do inquérito policial nele anexado ou juntado
como se queira dizer. Seu defensor de momento ainda tivera longos três
minutos para conversar com o réu, tempo mais que suficiente para conhecer
de todos os fatos com os mínimos detalhes.
O réu confirmou que realmente tivera uma discussão com a vítima
que o queria expulsar daquela casa. Disse então que, ato contínuo,
desferiu-lhe apenas duas leves facadas que lhe atravessaram o corpo. Depois
a vítima, apesar daqueles ferimentos, passou a mão num pedaço
de pau e deu-lhe duas pauladas na cabeça. A seguir, o pretendente à
sua mulher agarrou-se a ele (talvez para escorar-se devido a estar muito ferido)
quando então lhe desferiu muitas outras facadas, perdendo a conta de
quantas, até que o infeliz desfalecesse. Essa foi sua história.
O advogado daquele instante, daquele curto momento, dialogando com seu cliente
de improviso, explicou-lhe sua difícil situação informando-lhe
que sua pendência estaria melhor caso tivesse desferido as facadas após
ter recebido as pauladas, pois em sendo assim, poderia ser alegada a legítima
defesa e responderia apenas pelo excesso de legitima defesa... Não foi
uma "dica", apenas um esclarecimento...
Entram na Sala de Audiências e lá estavam três pessoas: uma
simpática escrevente; uma linda jovem, a promotora, estava acomodada
à frente do defensor dativo, do outro lado de uma comprida mesa; e um
jovem, quase menino, estava sentado num belo trono com uma mesa à sua
frente, numa posição mais alta da sala, que lhe propiciava aquela
superioridade psicológica em relação aos demais. Era o
Juiz! Por que da necessidade daquele posicionamento mais elevado, senão
por motivações puramente psicológicas já que todos
os presentes, à exceção do acusado, eram exatamente iguais
em importância, senão com a finalidade de intimidar, numa demonstração
de falta de confiança em si mesmo? Não seria, a partir desse posicionamento
mais a altura uma verdadeira, mas disfarçada atitude ditatorial como
a dizer façam tudo que seu mestre mandar?...Sendo todos iguais em importância
como realmente o são, deveriam todos estar no mesmo nível num
mesmo ambiente. A capacidade para tomada de decisões nada tem a ver com
a disposição com que cada um se coloque como decoração
em uma sala qualquer...É inadmissível que a Ordem dos Advogados
venha aceitando isso com incompreendida naturalidade, esquecendo-se de que para
a completa aplicação da justiça deve-se dar atenção
aos mínimos detalhes mesmo parecendo de momento não ter importância.
Para tanto, tudo deve merecer seus cuidados. Não somos menos nem mais
que outros. Com toda certeza nos igualamos nos objetivos de fazer a justiça
prevalecer acima de tudo. Nós advogados não somos serviçais
da Magistratura muita menos do Ministério Público e como iguais
havemos que ser respeitados...
O causídico cumprimenta educadamente os presentes com um "boa tarde"
e apenas a escrevente gentilmente responde. O jovem Juiz se via todo poderoso.
Encarava fixamente o advogado como se o odiasse. Talvez se lembrando de alguém
que o tivesse magoado muito ou simplesmente detestasse todos os de igual conhecimento
e cultura. Era juiz substituto querendo afirmar-se em sua carreira. Para tanto,
é claro, não precisaria ser tão sisudo nem seria necessário
deixar de responder a um mero cumprimento, visto que cortesia e respeito todos
se devem no meio judiciário bem como em qualquer outro lugar.
Provavelmente o ilustre e douto magistrado pensasse que responder a um simples
cumprimento pudesse lhe significar promiscuidade ou quem sabe julgasse todos
os causídicos como inimigos. Sabe-se lá! Fossem esses seus pensamentos,
com certeza estaria errado no seu modo de encarar os fatos, pois a maioria dos
advogados cumprimenta por educação e responder educadamente a
um cumprimento não significa promiscuir-se e poucos advogados se envolvem
em corrupção. Má educação de berço
acontece pouco entre juizes, promotores e advogados e envolvimento com atos
ilícitos evidenciam-se em todas as atividades profissionais. Ocorre que
os advogados ficam mais expostos às investigações e às
críticas dado que são em muito maior número e não
contam com a proteção de nenhum poder delegado, a não ser
o poder que seu cliente lhe empresta para sua defesa, enquanto que, a magistratura
e o ministério público estão mais seguros em confortáveis
casulos, protegidos contra a imprensa e quaisquer investigações
devido a que são temidos pela força que têm ou pensam ter.
Haja vista os casos dos Juizes Lalau, Rocha Mattos, outros da região
nordestina, etc. e de promotores como o Igor e outros todos envolvidos em ilicitudes,
precisando de advogados a atende-los em suas defesas.
Magistrados, Promotores de Justiça e Advogados, têm a mesma importância
para a aplicação da justiça, da verdadeira justiça
dos homens. Mesmo porque, ressalvando-se meros despachos e sua sentença,
em todos os atos processuais é necessária a presença do
advogado sem a qual o ato é nulo de pleno direito. Assim, os Juizes são
dependentes dos causídicos em quase todos os atos do processo para que
tenham validade. Então onde estaria sua maior importância? Apenas
na cabeça deles e nas suas arrogâncias? Claro que aqui se refere
àqueles que se consideram superiores (mas não o são) no
chamado "tripé da justiça" - advogado, promotor e juiz.
Aquele jovem e inexperiente juiz encarava fixamente o causídico como
se este fosse o réu. E não lhe desviava o olhar fixo a querer
intimidá-lo. Parecia até que não havia a presença
de um acusado a ser interrogado. O velho bacharel habilitado pela Ordem dos
Advogados e já com experiência de vinte e tantos anos, aceitou
prazerosamente aquele jogo de olhares intimidativos encarando o magistrado e
sorrindo apenas com os olhos por não considerá-lo um adversário
a altura para aquele tipo jogo, até que o douto juízo pusesse
sua atenção onde, desde o inicio, deveria estar, na figura do
réu que ali se encontrava para ser interrogado.
O acusado, considerado talvez, pessoa de menor importância presente, com
ares angelicais, era o menos notado. O jovem e douto magistrado parecendo não
saber o que lhe perguntar devido talvez à sua inexperiência, limitou-se
a ouvir sua comovente história do que o réu soube inteligentemente
tirar proveito, dizendo que antes houvera sido agredido com pauladas na cabeça
e que para não morrer, agiu em defesa própria.
Ao encerramento daquela brilhante audiência de interrogatório,
a lindíssima e competente representante do Ministério Público
pergunta ao defensor qual o nome do réu. O advogado, com todo seu curso
de memorização e com toda sua experiência pede ao acusado
que diga seu nome completo para a bela promotora. Ela insiste com o causídico
que somente queria saber do seu prenome e o esperto advogado não querendo
admitir que o havia esquecido, pois se preocupara somente com os fatos relevantes
lidos na denuncia e no relatório do delegado de policia solicita novamente
ao acusado que informe seu nome completo à doutora...Ninguém ali
sequer se lembrava nem mesmo do seu primeiro nome...
O idoso defensor dativo, um tanto desmemoriado, apesar do imenso tempo dos cinco
minutos para conhecer de todo aquele minúsculo processo de somente cerca
de quinhentas folhas, sentiu vergonha de si mesmo por não se lembrar
nem do prenome do acusado. Depois, numa tentativa de se justificar, lembrou-se
que nem o competente juiz nem a douta promotora lembravam-se do nome daquela
insignificante pessoa. Porém, como poderiam ter tal lembrança
sendo inúmeros os processos criminais que por eles passam diariamente?
Um só magistrado, sendo ainda substituto e uma única promotora,
como poderiam dar conta de tantos processos criminais e cíveis? A resposta
ficaria no ar...
O que não se poderia jamais ter sido olvidado é que naqueles poucos
minutos, naquela luxuosa sala que continha até um trono à disposição
de um suposto dono de um império, estava a acontecer o início
de uma decisão sobre a vida de uma pessoa que tinha um prenome, um nome
e sobrenome e que tal decisão significaria a maneira de como tal pessoa
continuaria sua aparentemente insignificante vida...
Terminada tal audiência, o velho advogado orientou o acusado a procurar
sua representante para lembrar-lhe quanto ao prazo para a defesa prévia
na qual deveria relacionar testemunhas de defesa que confirmasse sua versão
dos fatos. O infeliz o queria como advogado para continuar naquele feito, mas
isso não era possível, infelizmente para ele...
O militante, de tantos anos, sentira um pouco de remorso por não ter
podido fazer mais do que fez, porém alimentou a esperança de que
a justiça seria feita, apesar dos pesares...