Naquela pequenina cidade, aos sábados, jovens se reuniam formando grupinhos
nas ruas para um bate-papo. Nas duas principais ruas centrais havia uma caminhada
num lento vaivém. Os rapazes caminhavam num sentido e as moças
em sentido contrário para flertar, arrumar namorados. Geralmente as caminhadas
se iniciavam por volta das sete horas da noite indo até lá pelas
onze. Partiam do pátio da igreja matriz e iam até ao final da
avenida onde existia um coreto com uma banda que tocava entusiasticamente as
músicas da época. As ruas ficavam apinhadas de gente bonita com
cada qual procurando sua alma gêmea.
Flávio, jovem de seus dezesseis anos não costumava faltar aos
tais vaivens, também sonhando encontrar uma namoradinha. Não era
nada fácil pois os pais das mocinhas ficavam pelas imediações
fiscalizando tudo com esmerado cuidado acrescendo que tais moçoilas sempre
caminhavam a braços dados com uma irmã mais velha ou uma amiguinha
da confiança dos mais velhos. Driblar os pais era complicado mas sempre
se dava um jeitinho para uma elegante cantada num tempo em que ainda existia
o romantismo.
Nesses caminhares havia sempre um jovem moreno, bem apessoado, desfilando de
braços com uma beleza de cada lado. Era o Isidoro. Flávio não
concatenava o porque daquele sujeito estar sempre acompanhado das beldades e
sempre de duas de uma vez enquanto ele se desdobrava em esforço para
conseguir uma apenas. Tratou de fazer amizade com ele na tentativa de descobrir
o mapa da mina. Não foi difícil fazer a pretendida amizade.
Isidoro era músico e compositor. Flávio gostava de escrever poesias.
Então fizeram um acordo: Flávio faria as poesias e ele as musicaria.
Como nenhum dos dois tinha fama para lançar suas obras, vendia-as para
compositores e cantores já conhecidos no meio artístico e com
alguma fama no seio popular. Isidoro havia pertencido à aeronáutica,
à Força Aérea de onde fora desligado por ter sido surpreendido
na prática do homossexualismo. Sabendo Flávio tratar-se de um
homossexual, passou a ficar temeroso, colocando-se em guarda e criando limites
naquela amizade. Isidoro, sentindo aquele retraimento, preferiu permanecer pura
e simplesmente numa boa amizade. Quando indagado sobre as meninas que com ele
sempre passeavam naqueles vaivens dos sábados, verdadeiro interesse de
Flávio, ele sempre recuava nas respostas dando sempre seu jeitinho de
não apresentá-las. Essa amizade continuou até que Isidoro
queixou-se a Otelo, irmão de Flávio, que estava apaixonado mas
que a pessoa que ele amava não o correspondia. Essa pessoa era Flávio.
A partir de então, aquela amizade ficou assim como um cristal trincado,
pois o interesse do rapazola era pelas meninas. Relações com homens
nem pensar. Não que tivesse preconceito mas sim por não ser a
sua "praia".
Naqueles idos tempos, lá pela década de 50, um rapaz que fosse
visto apenas conversando com um homossexual, caía na boca do povo e nenhuma
garota ousaria se aproximar dele, quanto mais a namorá-lo. Felizmente
para Flávio essa sua amizade não se tornou tão pública
de vez que nas noites de sábado ou dos domingos sempre evitara ter contacto
com Isidoro. Ademais, naqueles bons tempos, dificilmente se via um homossexual
assumido. Eles se reservavam ao máximo possível. Entretanto, Isidoro
passou a extrapolar deixando transparecer essa sua condição. Não
escondia mais sua preferência pelos homens nem sua paixão por Flávio
que ao saber daquele amor esquisito passou a sentir desprezo pelo ex-amigo.
Órfão de pai e mãe, Isidoro morava com sua única
irmã solteira, Eunice, um pouco mais velha, que gostava de promover festinhas
com bailes em sua residência onde compareciam seus amigos, moças
e rapazes , atraídos pela vontade de dançar, uma das poucas diversões
da época. Flávio, sempre convidado, às vezes lá
comparecia na esperança de poder flertar com alguma das mocinhas, porém,
sempre que se aproximava de uma delas, Isidoro enciumado confidenciava qualquer
coisa ao seu ouvido e a partir de então a pretendida passava a evitá-lo.
Relacionar-se com as amigas de Isidoro foi o principal motivo, as razões
que o levaram a se aproximar dele e no entanto, essa amizade estava afastando
as garotas para cada vez mais distante. Então passou a ser uma necessidade
urgente interromper definitivamente tal amizade, o que foi feito.
Desencantado por nunca haver conseguido nada do que pretendia com Flávio,
Isidoro terminou por amasiar-se com um rapaz apelidado de "Zé Galinha"
que depois de algum tempo de convivência acabou por também assumir
a homossexualidade passiva, tornando-se depois um viciado em bebidas alcoólicas
e servindo de chacota para a rapaziada.
Desvinculado daquela amizade nociva aos seus propósitos, depois de algum
tempo Flávio começou a sentir o interesse das meninas em namorá-lo.
Retornou então aos caminhares dos vaivens dos quais havia se afastado.
Esses caminhares indo e voltando sempre no mesmo trajeto, era denominado "futi",
talvez uma corruptela da palavra inglesa footpath significando senda, vereda,
caminho, calçada. O "futi" era sempre o grande acontecimento
dos finais de semana. Era o ponto de encontro dos namorados e dos amantes. Era
também onde prostitutas e homossexuais se disfarçavam em bem comportados
na procura de seus homens. Assim, no "futi" tinha de tudo. Era uma
diversidade que chegava a encantar. Lá podiam ser encontradas donzelas,
virgens disfarçadas, casadas que se arriscavam a umas piscadelas, mulheres
da vida e homossexuais enrustidos os quais não se atreviam a escandalizar
ninguém, dado aos olhares dos mais velhos que fiscalizavam tudo que pudesse
afetar suas enraizadas tradições. O encantador "futi"
tinha início no pátio da igreja matriz onde nesses dias havia
quermesses e uma banda de música tocando , intercalando os leilões
e sorteios para arrecadar fundos para obras sociais dos católicos. Um
ou dois soldados da Força Pública policiava o local indo e voltando
em meio àquela multidão, garantindo a ordem pública. Os
soldados se destacavam pelo uso de capacetes e equipamentos de couro com porta-sabre
como se estivessem indo para a guerra, só faltando mesmo o fuzil e a
mochila às costas.
Num desses "futis", Flávio viu pela primeira vez Ligia. Quando
seus olhares se cruzaram sentiram logo terem sido feitos um para o outro. Iniciou-se
então o flerte que era como começavam os namoros que se tornavam
firmes ou não. Tal namoro se confirmou depois num baile caipira de uma
festa familiar de São Pedro. Depois de três anos de namoro, casaram-se.
Passados alguns anos Isidoro foi jogado de um barranco de cerca de trinta metros
de altura, numa noite, por um de seus namorados, estatelando-se dentro de uma
valeta ao pé desse mesmo barranco. Encontrado na manhã seguinte
ainda vivo, foi levado ao hospital. Flávio foi visitá-lo. Haviam
sido amigos uns dias e até parceiros em algumas músicas. Isidoro
mal podia respirar, mas balbuciou o nome de seu assassino, pois, não
resistindo aos graves ferimentos, faleceu depois de apenas poucos dias internado.
Com o passar dos anos, o "futi" foi extinto, demoliram o coreto e
as bandas musicais deixaram de existir. O local da quermesse foi transformado
em estacionamento para automóveis. Sobraram a cidade, que cresceu tornando-se
irreconhecível, e a Igreja Matriz, a qual continua do mesmo jeito como
se fosse um patrimônio histórico, sempre com as portas fechadas
para evitar saques aos óbolos dos fiéis, abrindo somente nos horários
das missas e para batizados, crismas e casamentos.
Daqueles festivos "futis", para Flávio, ficaram somente as
recordações, as boas lembranças e muitas saudades...