A Garganta da Serpente
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Manchete perdida

(Arildo Marques)

Manhã de inverno. O sol ainda não desponta, mas a claridade lá fora prenuncia o momento da partida.

Degladia-se com as cobertas, suplicando mais um minuto de sono. A noite havia sido tempestuosa, marcada por rápidos cochilos e devaneios incessante. Sua mente agora divaga os acontecimentos anteriores ao dia. Relembra nitidamente a última inquisição de seu chefe.

Tem certeza que é isso que você quer? Sônia.

Sim, absolutamente, sim.

Sua resposta sem nenhum constrangimento, deixa-o perplexo, restando apenas confiar-lhe a tarefa e desejar-lhe boa sorte.

Parece acordar de um pesadelo, imagina haver sonhando tal responsabilidade, mas em meio a esse torpor sonolento, sobressalta e encara a realidade.

Não há mais como retroceder, vê junto ao criado mudo, o bilhete de passagem e o envelope com as últimas instruções lidas minuciosamente e as malas prontas para a viagem.

Arruma-se demoradamente, postergando o tempo. Mas não lhe resta alternativa alguma.

Procura acercar-se de que tudo esta em ordem. As janelas bem fechadas, gás desligado e nenhuma torneira pingando. Afinal, seu retorno é uma incógnita.

O táxi a deixa na estação, apenas a cinco minutos do horário previsto para a partida. O tempo suficiente para acomodar sua bagagem e localizar o seu vagão.

O sacolejar lento do trem em movimento, acelera seus batimentos cardíaco, causando uma sensação de medo e ao mesmo tempo desafiador pela decisão tomada.

Vê os últimos sobrados da cidade, perder-se de sua vista, e em pensamentos vislumbra o inicio de sua carreira.

Acabara de formar-se em jornalismo, e indicada pelo reitor da universidade, apresentou-se para seu primeiro trabalho. Como estagiara no Jornal dos Bairros, onde dois anos já se passaram. Seus trabalhos resumem-se em cobrir eventos escolares, ações de moradores de bairros um e outro evento social, algumas vezes também um pouco de esporte.

Diante dela agora a grande oportunidade! Uma reportagem de cunho investigativa, e o resultado poderiam vir abalar não só a vida social do povo, mas influenciar os movimentos políticos e religiosos contrapor-se a economia do país e quem sabe alterar o andamento dos grandes centros comerciais no mundo. Talvez até desequilibrar as bolsas de valores IBOVESPA e NASDAQ. Aí então seria reconhecida uma profissional.

Imagina as manchetes de jornalísticas e chamadas televisivas:

"Jovem repórter desvenda o segredo do Ser". "Nada mais está encoberto sob o universo". "Repórter é recebida pelo Congresso como heroína".

TREC TETREC TREC o ruído ensurdecedor nos trilhos esvaem seus pensamentos perdendo-se no cansaço pela noite anterior mal dormida. O corpo desfalecido parte para o mundo dos sonhos.

A primeira hora da tarde, uma voz longínqua, a desperta. È o contramestre solicitando os bilhetes.

Boa tarde, senhora, desculpe-me acorda-la. Mas preciso de seu bilhete para marcação.

Ora, não se desculpe. Aqui está meu bilhete. Em que cidade nós, nos encontramos no momento?

Alexandria, senhora.

Falta muito ainda para chegarmos a Redenção?

Apenas três horas, senhora. Com sua licença, tenha uma boa viagem!

Obrigada.

Parecia estar viajando há dias, e ainda faltavam três horas! Sentia o corpo dolorido e levantou-se se espreguiçando para esticar os músculos, em seguida soltou-se na poltrona como se o peso tivesse dobrado.

Aproxima-se da janela, o vento forte toca seu rosto e seus olhos automaticamente se fecham e o recuo é instantâneo. A janela é baixada e pelo vidro aprecia a paisagem que às vezes lhe fogem da visão pela velocidade do trem.

Um mar verde de pastagem se delineia a sua frente, vez ou outra uma arvore ou um capão de mato assoreia a mansidão deste verdejante oceano.

Passam das quatro horas, quando a força da locomotiva vai se estagnando e com um assobio de dever cumprido pára na estação.

Um pouco cambaleante pelo sacolejar sofrido, desce apreensiva do veículo. Em vão, seu olhar inóspito procura algo familiar para justificar ali sua presença.

O maleiro, com um carrinho de carga, vem ao seu encontro.

Sua bagagem, madame? Posso ser-lhe útil.

Oh, sim. Aquelas duas malas azuis com adesivos de aeronaves.

Quer que chame um táxi? Madame.

Sim, obrigada.

Absorto em pensamentos, mal consegue visualizar o trajeto que percorre. Vielas estreitas cobertas por paralelepípedos, ladeada por casas datadas do século XVII, em precário estado de conservação.

Chegamos senhora. Visione Hotel é aqui.

Obrigada, quanto lhe devo.

É trinta, senhora, se tiver trocado....

Aqui está. Pode me ajudar com as malas?

À entrada da portaria é recebida por um moço jovial, que a cumprimenta com um sorriso como se já a conhecesse.

Boa tarde, D, Sônia. Seja bem vinda. Sua reserva foi reconfirmada ainda esta manhã, eis as chaves quarto 32, é no terceiro andar. Por aqui, por favor.

O quarto é amplo, com móveis modular, uma cômoda, dois criados-mudo, um pequeno guarda-roupa e uma grande e estranha cama de casal revestida com uma cocha de linho cor-de-rosa trabalhada em babados acorrentados, abaixo de um descortinado mosqueteiro.

Uma porta-janela com acesso a varanda, onde se vê a única praça da cidade, com quatro grandes coqueiros trançados em si formando um grande W.

O tempo indevassável é infinito, e a cada segundo o cansaço mina o seu ser roubando o raciocínio lógico. Sem mesmo despir-se, atira-se na cama naufragando em êxtase de profundo sono.

O sol á pino, atravessa a vidraça do quarto em vasta claridade, anunciando mais um dia. Degladia-se para livrar-se das cobertas. Enquanto o despertador é socado de seu triiimmmtriirmmm.

Sacode a cabeça para ambos os lados, e procura ambientar-se. Os olhos inchados buscam o inimaginável. Uma longa noite de sono e sonhos tinha atravessado a barreira da realidade. Olha a sua volta e vê que tudo esta como havia deixado. Sobre o criado mudo não há bilhetes de passagens nem envelopes, a mala desfeita está no alto do guarda roupa.

Sua mente agora divaga os últimos acontecimentos. Relembra nitidamente a última inquisição do chefe.

Tem certeza de que é isso que você quer? Sônia

Sim, absolutamente, sim.

O chefe perplexo, ainda insiste.

Não quer mesmo assumir essa reportagem?

Parece agora acordar para um pesadelo. Arruma-se demoradamente.

Não há como retroceder.

Adeus manchetes.

(SET/2008)

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