Acordou naquele dia bem mais tarde que de costume. Espichou-se e se embolou
nas cobertas como uma gata no cio. Os olhos abriram-se em câmera lenta.
Com as mãos espalmadas reconheceu o corpo lânguido e desobediente.
Bastaram alguns minutos naquele ballet matinal para que a velha revivesse em
flashes sua própria história. As imagens que se sucederam em cadeia,
como relâmpagos de chuva de verão, inundaram sua alma. Ela sentiu
então um calor tomando conta de seu corpo e abandonou-se ao mistério
daquele momento.
Lembrou-se da passarinhada cantando cedinho nas gaiolas penduradas na varanda
do fundo de sua casa. Do cinema improvisado, figuras grudadas num lençol
úmido e iluminadas à luz de velas animadas pela voz da mãe.
Da família em volta do rádio, ouvindo as notícias do país.
Das máquinas de costura, afinadas pelas pedaladas do pai e da mãe,
chiando horas seguidas.
Resgatou as noites insones, em que lia vorazmente romances empilhados no criado-mudo
ao lado de sua cama. As primeiras poesias sangrando no papel branco. As reuniões
intermináveis com as amigas arquitetando a paz. O footing na praça,
enquanto a banda majestosa tocava marchinhas.
Depois da torrente de lembranças que desfilaram ininterruptas, a velha
ficou ainda mais uns instantes na cama. Lentamente, o corpo começou a
se diluir, primeiro os pés, as mãos, depois as pernas e os braços,
o ventre, os ombros, o peito e finalmente a cabeça. Agora, flutuava.
Na transparência daquela manhã luminosa, descobriu que a vida
não podia ser medida por dias acumulados e ossos cansados. Tudo o que
havia vivido e sonhado ter vivido estava consigo, e era tanto...
O coração bateu irremediavelmente encantado. A vida fluiu como
sempre e a poesia sangrou novamente. Queimou um incenso, acendeu uma cigarrilha
e botou um daqueles discos de vinil da década de 60 na vitrola.
Danou a escrever, agora na tela branca do computador. As palavras borbulharam
como espuma no mar, algumas afogadas, outras perdidas como pequenos barquinhos
distantes da orla marítima. Juntando-as na escrita que decifra a vida,
ela se sentiu possuída.
A velha estava mais velha.