A Garganta da Serpente
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Carnaval

(Ana Guimarães)

Silêncio percorrendo a madrugada. Um galo canta no morro ao lado, e no outro extremo do bairro um bloco passa. O telefone rompe - puro real - com o imaginário que a consome. E aí, ele não apareceu? Quer que a gente volte? Bobagem, sinto-me só quando ele está aqui, nenhuma companhia, já me acostumei. Morro do que vivo, de solidão. Abraçada aos livros, só eles me confortam, além dos filhos. Tenho sonhado que sou um pássaro, não sei o plano de voo, mas é só estender as asas e já começo a voar. Acho que preciso acordar. Sei não, às vezes a gente só se sente livre porque nos falta a própria linguagem que possibilite formular a ausência de liberdade. Como naquela piada sobre a já extinta República Democrática Alemã, lembra? Aquela das cartas recebidas escritas com azul dizerem a verdade, e as em vermelho, mentira: "Tudo é maravilhoso aqui, tem emprego, moradia, atendimento médico, só falta tinta vermelha". Ninguém está bem, não se iluda, também escrevo a noite toda, em pleno carnaval, ou você me acha com cara de quem vê desfile de escola de samba ou baile, na tv?Escrever é uma forma de se sentir livre. Sério? Bem que gostaria, mas não posso. Primeiro porque tenho minhas obrigações de mãe e dona de casa de manhã cedo, só pra nós não há feriado, a babá e a empregada folgaram. Depois, não sou mais uma menina, não aguento uma noite em claro, amanhã estou feia, com olheiras. Você ainda é jovem, e está muito bem. Imediatamente ela se transforma. Ergue os ombros caídos até então, tira do olho uma mecha de cabelo, bonito mesmo em desalinho, prende atrás da orelha. Seu rosto se ilumina. Olha-se no espelho. O roupão entreaberto deixa ver a boa forma com que a genética lhe sorrira, odeia exercícios. Até que não estou mal. Ouvindo-se recorda: uma doçura de voz, ele dissera um dia. Desanda a falar, num tom mais alto do que o habitual. Logo a filha mais velha vem reclamando pedir silêncio, ela sempre teve sono leve. Sussurrando, como se recordasse algo proibido, conta dos carnavais do passado, das idas a Petrópolis, das festas, das fantasias, do lança-perfume. No início apenas os outros cheiravam, depois por que não? Dava uma euforia que só seus partos lhe proporcionaram, nunca mais! Agora me sinto uma exilada do mundo que descrevo, como se uma velha aliança comigo mesma tivesse se rompido. Como se algo tivesse sido queimado porque condenado. Foi ele me tocar, dizendo que era para o meu bem, pra sempre, para eu começar a morrer. Na minha singularidade, na minha sadia estranheza, para tornar-me uma simples consequência de uma lei geral. Sem mais possibilidade de mudança, de movimento. Só a ele isso é permitido. O tempo escorrendo, o outro só escutando suas associações, reflexões, confidências. Súbito, ela se cala. Cansada, escorrega o corpo sentado, as pernas esticadas, os delicados pés de unhas tratadas quase saindo das chinelas de dormir, a cabeça recostada no espaldar da cadeira, pálpebras semicerradas como se estivesse distante. Ele espera. Ela recomeça, até que as pausas vão ficando cada vez mais longas. O bebê chora. Acordou, tenho que desligar, o dia está amanhecendo, preciso atendê-lo. Ciao, menina, sua vida parece um conto de Tchekhov!

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