Mais um caso comum e despretensioso, onde o nada fere e incomoda, onde a falta
de raios solares é presente, deixando tudo envolto por sombras de alvorada...
Um episódio como tantos outros; pena que a relatada não se chama
Maria, seria bem a propósito, mas, como o contador está despropositado
este dia, usarei o seu verdadeiro nome de batismo: Cleusa.
Uma menina que poderia passar despercebida pelas calçadas da pequena
cidade, se não fosse o seu jeito de andar. Cleusa, nome geralmente de
senhoras, pertencia a esta menina que carregava seus quatorze anos; mas saibam:
chegar a esta marca foi um feito! Nasceu para sofrer, como dizia sua avó,
senhora batalhadora que carregava marcas encravadas em sua pele ocre, sempre
de lenço na cabeça e recendendo a fogão de lenha, onde
ficou boa parte da vida, ouvindo os estalidos e os grilos, sonhando e se benzendo...
Cleusa, a menina que andava engraçado, nasceu muito doente e logo foi
abandonada; a mãe, mulher afoita de desejos insaciáveis, apaixonara-se
novamente, deixando a pobrezinha clamando pelo seio, que entregou a um loiro
consertador de motores... Pobre menina, deixada nas mãos da senhora sua
avó, mulher de muita fé e pouca paciência; também
pudera, depois de criar seus oito filhos ainda lhe restava uma neta bastarda?
Negada pelo pai (sabe-se lá quem era) e pela mãe... "Menina,
ocê naisceu pra sofrê" - foi um dos rogos que mais ouviu em
sua infância.
O fato de ser abandonada pela progenitora nos primeiros instantes que chegou
ao mundo não causou a dificuldade para chegar à marca dos vinte
anos, isso aconteceu da seguinte maneira: apesar de toda a graça que
um bebê possui, Cleusa não recebia carinhos ou zelos, muito menos
mamadeiras quentinhas e fraldas limpas; cresceu junto aos gatos, aos grilos
(sim, tinham muitos grilos em casa), aos cães e, principalmente, com
uma velha goiabeira que jazia no quintal, um abrigo perfeito para acomodar um
pequeno corpo (as formigas que o digam). Menina doente, teve um sério
problema na primeira infância, sendo classificada pelo médico como
possuidora de um "leve retardo mental". A pobre avozinha, mulher analfabeta
e com calos seculares nas mãos, mal entendeu, levou o recado como quem
ouve uma anedota tola. Quando a pobrezinha sofria espasmos eram bênçãos
e galhinhos de arruda por todo o lado, onde era gritado aos quatro ventos: "Filha
do demonho". A senhora realmente acredita que se tratava de uma possessão.
Foi sorte nada de pior ter acontecido, ou azar, como diriam os anjos.
Cresceu admirando a fumaça do velho fogão. Adorava ficar olhando
para a pequena nuvem cinérea, que desenhava rostos e formas, que subia
devagar (dependendo do vento) e desaparecia, deixando saudade daquilo que ninguém
sabia o que era. Assim passava grande parte do dia, com seus pés descalços,
seu sorriso tolo e seus olhos assustados e curiosos. Menina de pele bronzeada,
de cabelo negro bem liso e de lábios grandes, olhos pretos sempre molhados,
nariz seco e orelhas de morcego. Não sabia o que era a escola, até
um grupo de voluntários (seria isso mesmo?) aparecer, dizendo à
velha senhora que deveria mandar a menina para uma escola especial. A avó
negou gritante, mas ficou, naquela noite, pensando na palavra "especial".
O que seria especial? Em suas várias décadas de vida jamais entrara
em uma escola (o pai não permitia, tinha que trabalhar no roçado),
e ficava se perguntando o que teria de especial nisso... acabou vencida pela
curiosidade matreira e mandou a menina para tal lugar. Esqueceu-se disso na
primeira semana e logo colocou a menina de volta na "mexedura" de
doces e gorduras.
Algo tão insalubre não deve ser dito às minúcias,
deve-se antecipar muitos fatos, para que o leitor não sinta náuseas
ou comiseração. O importante é saltar alguns anos no futuro,
pois uma parte da triste infância da pequena Cleusa (menina de mãos
tolas - esbarrava em tudo e quase sempre espatifava o que lhe coubesse...),
já foi contada e não devemos nos alongar. Saltemos, então!
Uma senhora de frágeis cabelos brancos, que adorava saias longas e que,
por conta de um capricho juvenil, pintava as unhas de cores berrantes, compadeceu-se
da menina e, aos treze anos, levou-a para trabalhar em sua casa, como uma pequena
doméstica. Aos poucos foi tomando a menina para si, negando que voltasse
à sua antiga casa de paredes esburacadas repletas de grilos. Uma mulher
católica que frequentava as missas há vários anos,
sem nunca ter faltado, e que comungava com os olhos lacrimejantes, reconhecendo
que trazia para o seu interior o poder do sagrado. Onde mais essa boa cristã
conseguiria uma empregada tão boa como a Cleusa? Em lugar algum, ainda
mais em troca de um prato de comida (as sobras das sobras dos seus dois poodles)
e um vestido cheio de flores que usava dia após dia, além de um
par de chinelas e um colchão frio às margens da varanda. Uma prenda
sem igual, que não objetava nem rosnava, admitia tudo com seus olhos
sempre brilhantes de coisa alguma e, por ter vivido anos pisando em chão
de terra vermelha, adorava olhar as flores dos azulejos do banheiro, que apenas
limpava e não usava. Menina prestativa, levava café para as senhoras,
que discutiam o sermão e os outros, sentadas nos grandes sofás,
onde diziam a plenos pulmões: "A senhora vai para o céu,
cuidar tão bem de tal criatura".
Cleusa passaria despercebida, não fosse o seu jeito de andar. Ia sempre
comprar o que faltava em casa na pequena mercearia, levando um bilhete que não
sabia ler e o dinheiro, que deveria "voltar em forma de moedas" (era
o troco que tinha que vir inteiro, pois era conferido o recibo). Um dia uma
das moedas foi perdida, uma das mais pequenas, o que gerou muita mudança
na bondosa senhora, que perdeu o controle e a tonalidade branca, desferindo
cintadas e mais cintadas no magro busto da descuidada Cleusa.
As pernas muito próximas, ligeiramente tortas, os passos curtos demais.
Alguns diziam que se parecia com um pinguim, outros relacionavam àqueles
bonequinhos de corda, que andam rapidamente fazendo estalidos e provocando risos.
O fato era que, diante da vista apurada dos moradores daquela pequena cidade
flutuante, os passos eram muito engraçados, além de toda a alegoria
que acompanhava: a expressão assustada; as mãos que ficavam mexendo
sem parar, sempre com alguma folha ou galho entre os dedos; o cabelo desarrumado
e sujo; o eterno vestido amarelento de flores negras; as chinelas gastas revelando
dedos grosseiros; os lábios ressecados; a jovialidade perdida.
Um rapaz, que era vizinho da bondosa senhora, acompanhava por vezes estes passos
incertos de Cleusa, rindo junto dos amigos. Estavam sempre em bandos. Época
de convívio em grupo, de identificação com os outros, uma
fase de aceitação. Adolescência, fase de hormônios
pululantes, de desejos ofegantes. Triste era que este rapaz tinha muitas espinhas
e não se achava bonito, muito menos era reconhecido como tal. Tinha muitos
sonhos noturnos e diurnos, mas ninguém para satisfazê-los. Uma
bela tarde, de sol quente, suor na face e desejo aflorado (nesse dia estava
mais que o normal), tudo se ligava ao prazer, até mesmo o zumbido de
uma mosca era doce gemido. Foi então que um pensamento passou por sua
cabeça, ao ver a jovem com outros olhos: uma percepção
varonil! Começou por analisar os contornos, que desenhavam um quadril
balançante, canelas finas de carne dourada, braços moles e pouco
resistentes, cabelo negro bem comprido e dançante, lábios grossos
e expressão tola, seios pequenos, porém, pontiagudos. O sol estava
realmente forte naquele dia, deixava à mostra o contorno perfeito do
corpo, pois atravessava o frágil vestido sem maiores dificuldades. Aquilo
foi o ápice para o rapaz que, motivado pelo desejo de ver como eram aqueles
seios e outras coisas mais, saltou a janela em direção da rua,
alcançando sem problemas a moça que pisava em falso.
Começou com um leve esbarrão e um sonoro "oi", que deixou
a moça assustada, fugindo para o canto da calçada, colando-se
ao muro. O jovem sorriu e se coçou (as espinhas no árduo verão
coçavam muito), esticando a mão em seguida, presenteando a menina
Cleusa com uma doce bala com recheio cremoso de morango. Observando mais de
perto pôde perceber melhor aquela pele morena e aqueles pequenos seios
de bicos que afloravam, que saltavam do tecido frágil. "Sem nada
por baixo" - pensou maliciosamente.
"Gostou da bala?" - disse, ao ver que a moça mastigava vorazmente,
deixando escorrer um pouco do caldo melado até o queixo, que limpou afoitamente
com as costas da mão. "Não precisa ter medo, vem comigo que
te dou mais". Sem outra reação esperada, Cleusa virou-se
e acompanhou o rapaz, que olhava insistentemente para todos os lados, verificando
se ninguém os observava. Por sorte não havia ninguém na
rua, que brilhava em contato com o sol. Um suor e um tremor percorreram o rapaz,
aumentando drasticamente seu excitamento. Levou-a para a garagem da sua casa,
onde poderia brincar sem ser percebido, já que a mãe ocupava-se,
como de costume, a escutar programas de rádio e pensar no prato do jantar.
A menina nem pestanejou, arregalou seus olhos assustados e deixou-se ficar nua,
da mesma maneira que se deixou deitar, deixou-se beijar, deixou-se dilacerar.
Quis sair daquele lugar, mas não teve coragem, pensou apenas que não
poderia deixar cair nenhuma das moedas, senão teria outra surra. O rapaz
jogou-se sobre ela, suou e gemeu, saindo logo em seguida, colocando a bermuda
e mandando que saísse, que sumisse daquele lugar. Não entendeu
direito, estava ainda à espera da bala.
Tudo continuou como o costumeiro. Os cafés servidos nos horários
de discutir a bíblia e a vida das pessoas, algumas crises solitárias
de epilepsia, os gritos para que andasse logo com a faxina, as cintadas que
aconteciam com maior frequência. A bondosa senhora começou
a desconfiar, quando percebeu que Cleusa enojava-se com facilidade ao limpar
os dejetos de seus belos cachorros, bem como ao enjoar comendo as sobras do
almoço. Algo estava errado! "Ai meu Deus do céu, essa menina
está desrespeitando a minha santa casa".
Depois da constatação, que veio alguns meses após a investida
juvenil, a velha senhora surpreendeu-se ao ver a neta parada na porta de sua
casa esburacada, com uma pequena trouxa e uma barriga proeminente. Recebeu-a
com a mesma frieza simplória de sempre, levantando pragas e rogos ao
céu, benzendo-se sem parar com as ósseas mãos.
Devo acrescentar que muitos se perguntavam se Cleusa tinha consciência
do que ocorria em seu corpo, mas isso ficava apenas na dúvida, pois ninguém
ousava encostar as mãos naquela barriga enorme e ocre. A pobrezinha nasceu
sozinha, à base de choro, de palmadas, no mesmo colchão onde sua
menina-mãe dormia, com as puxadas fortes de sua bisavó, que praguejava
seu destino e sentenciava sua vida, que seria repleta de dor e angústia.
Cleusa assistia à sua própria dor com olhos estranhos e débeis,
mas logo se acostumou com o pequeno ser que gritava, mas que se calava ao grudar
em seu seio. Alguns meses depois Cleusa aprendeu a sentar sua bonequinha chorosa
na árvore de goiabeira, que era um abrigo perfeito para ela.
Um caso comum e despretensioso, mas que deve se encerrar por aqui. Contar que
poderiam existir duas Cleusas no mundo seria muito nauseante ao leitor, ou pior,
pensar que a pequena criatura dotaria as pernas tornas da mãe e as espinhas
do pai, seria intragável. Isso se não tivesse aumentado consideravelmente
o formigueiro daquela velha goiabeira. Árvore suntuosa que alimenta e
abriga.