Os sinos tocam, uma leve ventania fazia um dos senhores segurar o seu chapéu,
enquanto um dedo enrugado deslizava entre as peças de damas. Ele sentou
e esperou. Observava atentamente a escadaria da igreja, as beatas desciam em
pequenos passos, as crianças começavam a correr de um lado para
o outro ao som da Ave-Maria que saia dos alto-falantes. Pombos circulavam do
outro lado da praça, talvez, esperando um daqueles senhores sacudirem
os grãos ao chão.
Ele não conseguia parar de olhar os senhores do tabuleiro; apesar de
estar ali esperando há mais de trinta minutos, ele continuava com o seu
sorriso de quem estivesse passando por uma experiência talvez única.
O carro parou e buzinou. Aquele barulho havia chamado a atenção
de todos, inclusive dos pombos, que ao buzinar do automóvel, voaram em
direção aos braços do Cristo crucificado. Você não
vem? Perguntou a garota, da porta do carro.
Acertaram o encontro na tarde anterior. A mesa era estreita, mas chegava a caber
diversas canetas e lapiseiras além de grossos livros de história
e cadernos que se revezavam entre eles tentando um descobrir como o outro respondeu
aquela questão. Mário - interrompeu ela - você já
foi num asilo? Ele achou um pouco estranha aquela pergunta; o que havia o asilo
com a história? Não... acho que não, por quê? Ela
fechou os livros e explicou ainda com a lapiseira na mão que seus pais
visitavam, sempre aos domingos, um lar de idosos perto da chácara da
família. Após diversas tentativas, ele acabou cedendo.
Eram dois galpões divididos por um salão principal; na entrada
um senhor trabalhava em um modesto jardim repleto de acácias; ele, assim
que avistou os visitantes logo abriu um sorriso e acenou. O carro acabou parando
perto da lavanderia, que ficava um pouco depois das acácias.
No salão principal, dezenas de senhores e senhoras batiam palmas em um
belo louvor, enquanto outros apenas cochilavam, sentados em um dos sofás
avermelhados espalhados pelo salão. Por um momento pensou em voltar para
o carro e esperar que sua amiga voltasse com seus pais, mas ele era um jovem
curioso. Logo entrou em um dos cômodos do primeiro galpão e apesar
de ter demorado um pouco, logo se habituou.
Mas foi no quarto de número sete, que ele conheceu dona Tonha; ele sempre
ficava com algum receio ao conversar com ela, mas ela era sempre comunicativa,
falava de tudo: sua cidade, a santíssima e a casinha que tinha. Chorava
quando falava de seus filhos. Mas logo mudava de assunto, falava da época
da ditadura, lembrava do cadastro que havia feito com os comunistas. Nome? Antônia
Maria Dolores. Filhos? Três. José Joaquim, José Manoel e
José Severino. Fotos? E ela entregava as fotos 3x4 de cada um. Com o
sentido que em uma semana chegaria os prometidos. E chegava; nas cestas vinham
a cada quinze dias: arroz, feijão e batatas. Um quilo de cada.
Contou que cozinhava um pouco de cada coisa, sempre a cada quatro dias, economizava
fervorosamente o santo alimento dos comunistas, mas como tudo chega a um fim.
Ela chorou.
Falou da ajuda que recebia dos Bezerra e Silva; deixava os filhos em casa, todos
chorando com fome: haviam passado mais de três noites sem comer nada.
Chegava no armazém do Chico Bezerra por volta das quatro da madrugada.
Ele quando a via, já pegava uma sacola de plástico e colocava
um punhado de cada um dos cinco sacos de farinha. E ela corria para casa, fazia
uma mistura de sal, água e farinha e cinco minutos depois estava todo
mundo feliz, de barriga cheia.
A afinidade era tanta entre Mário e ela, que ele começou a visitá-la
todas as tardes de domingo. Ficavam horas conversando e comendo pedaços
de bolo (de mandioca) que ela adorava.
No quarto, de uma pequena escrivaninha ela tirava seus talheres e um prato,
nunca comia em outros, sempre só nos seus. Ele sempre reparava nesses
pequenos detalhes que faziam parte do cotidiano dela. Em cima da escrivaninha
ela sempre acendia uma vela, e por volta de cinco minutos de seu jovem amigo
chegar orava, pedindo forças e saúde ao seu novo neto.
Ele completou quinze anos, começou a trabalhar em uma obra perto de casa.
Era quinta-feira da paixão, correu até lá para contar a
ela sobre o seu primeiro emprego. Foi a pé. Passou pela avenida e pelas
ruas do centro às pressas. A felicidade era tamanha que ele chorava de
tanta alegria.
Ele murchou; sentia como se estivesse passando por uma estranha nuvem mórbida,
sentiu seu coração arder ao ver uma estranha movimentação
no salão principal. O que está havendo? Perguntou assustado.
O choque foi tão grande, que tudo escureceu. Bamboleou e quase caiu perto
do caixão.