A Garganta da Serpente
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O músico e o engraxate

(Athos Ronaldo Miralha da Cunha)

A primeira vez que Mestre Lívio tocou na Praça da República, a apresentação sensibilizou poucos frequentadores daquele tumultuado espaço público: um engraxate, um vendedor de algodão doce que, momentaneamente, esqueceu das vendas e meia dúzia de apressados assistentes. O menino da graxa era o mais deslumbrado com a música do Velho Mestre e até arriscou um acompanhamento na caixa de engraxar sapatos, com as escovas e algumas latas vazias de pasta.

Mestre Lívio morava em uma pensão na avenida São João e tocava em um bar de quinta categoria nas noites paulistanas. O "Bar e Restaurante Barbinha's" ficava em uma das avenidas adjacentes à Praça da República.

Tocava saxofone desde os oito anos, foi profissional tocando em uma banda de jazz, e até ganhou algum dinheiro e constituiu família. Sua carreira foi obstruída por péssimos negócios e desavenças amorosas. Hoje, Mestre Lívio está só e faz bicos noturnos nos bares. A sua angústia e pesar era a falta do filho que deixou com a ex-mulher. Lívio Filho tinha três anos quando se separou. Nunca mais sentiu o calor de seu filho, nunca mais viu o sorriso do menino. Dez anos o separam da infância do garoto. Ainda hoje chora de saudade no silêncio do modesto quarto de pensão.

Durante meses, Mestre Lívio cruzou, em diagonal, pela praça nos finais de tarde rumo ao trabalho, mal tinha tempo para perceber o que acontecia ao seu redor, caminhava incólume pela efervescência da Praça da República. Mestre Lívio era um solitário e desatento a perambular pelas ruas da metrópole paulista.

Certo dia, estava adiantado para o serviço. Resolve descansar em um banco próximo a uma tenda de artesanato. Colocou o estojo, com o instrumento, ao seu lado no banco da praça. Ficou contemplando o vaivém dos passantes apressados. A Praça da República fervilhava. Mestre Lívio percebeu que muitas pessoas usavam o espaço público para trabalhar. Uma infinidade de atividades que davam um colorido e um aspecto peculiar ao ambiente da praça.

Ensimesmado, Mestre Lívio não percebeu a aproximação de um garoto com uma caixa de engraxar sapatos a tiracolo. O esquálido menino postou-se em frente ao distraído músico.

O saxofonista viajava em pensamentos, com seu olhar voava junto com os pombos da praça à cata de migalhas e, em seguida, para os galhos mais altos dos jacarandás. Achou engraçado acompanhar o voo dos pombos. E, foi desta maneira, que descobriu um ninho de bem-te-vis escondido em cima de um portal de concreto. Não imaginava que existiam bem-te-vis em São Paulo. O último que tinha visto fazia parte de um cenário de sua terra natal no interior das Minas Gerais. Uma vaga lembrança com mais de vinte anos de saudade e ausência.

- Vai uma graxa aí, tio?

Mestre Lívio volta para a realidade da movimentada Praça da República. Olhou meditativo para seus sapatos gastos pelo uso constante. Responde calmamente, com um monossílabo sintético, ao garoto que tinha a mesma cor dos mulatos das Minas Gerais. A mesma raça que Mestre Lívio trouxe com o saxofone às noites de São Paulo.

- Não.

- Tio, faz um barulhinho?

- Um barulhinho...

- É tio, toca uma música para nós!

Mestre Lívio abre o estojo do saxofone e faz alguns acordes que encantam o engraxate. De repente, Mestre Lívio emplaca Aquarela do Brasil. O garoto, com as escova de sapatos e com as latas de graxa, acompanha com batidas na caixa. Foi neste instante que se aproximou o vendedor de algodão doce e meia dúzia de transeuntes. Encantados e em silêncio assistem ao primeiro concerto de Mestre Lívio na Praça da República.

As luzes da cidade começavam a iluminar as ruas e calçadas, as vitrines com luzes de neon davam um colorido especial, enquanto o dia ia sucumbindo diante da capital paulista.

- Bom! Estou indo garoto.

- O senhor volta amanhã?

Mestre Lívio não respondeu a indagação do engraxate e foi em silêncio em direção ao bar, do outro lado da praça. Vestia uma surrada calça preta, camisa branca e um colete cinza. Era como o mestre Lívio, o rei do sax, gostava de se apresentar.

Desatento, cruzou sem perceber por um garoto que fazia bolhas de sabão e por uma sorridente baiana que bordava frutas em panos de prato. Mestre Lívio estava disperso. Estranhamente a voz do garoto "O senhor volta amanhã?" não saiu de seu pensamento. Antes de colocar o pé no asfalto para atravessar a rua, com o sinal fechado, falou em alto e bom som para si mesmo.

- Certamente, garoto!

No outro dia, a mesma hora, Mestre Lívio estava lá. O engraxate foi o primeiro a perceber sua chegada e foi rapidamente postar-se bem em frente ao músico para assistir ao espetáculo. Neste segundo dia de apresentação, a plateia estava um pouco mais numerosa e mais entusiasmada e atenta. Mestre Lívio tocou e tocou muito bem, o garoto novamente fez o acompanhamento em sua caixa de engraxar sapatos. "Majestade o sabiá" foi o auge da apresentação. A senhora que bordava panos de prato parou e ouviu contemplativamente com olhar saudoso, ao final uma lágrima umedeceu-lhe o rosto judiado pelas agruras da vida.

Foram vários meses de apresentação, o garoto era o primeiro que chegava e o último a sair. Estavam muito amigos, mas pouco conversavam. Eram grandes amigos, mas só na hora da apresentação. Quando terminava o espetáculo cada um rumava para seu aconchego nessas noites de luz, vaidade, fragmentos de saudade e ocaso da exclusão.

De repente, sem avisar, o músico deixa de comparecer à praça.

Duas semanas se passaram sem o espetáculo de Mestre Lívio. O garoto, todo dia a mesma hora, ficava atento, cuidando a chegada do músico. O engraxate sentia muita falta da música vinda do sax de Mestre Lívio. Certamente, se ele não aparecesse mais, jamais saberia o motivo. O garoto não sabia onde morava e nem quem era o velho artista da música. A arte de Mestre Lívio era para o garoto uma canção de ninar, uma melodia que fazia bem aos seus ouvidos de menino, que não tinha pai e há muito tempo tinha perdido os carinhos maternos.

Certo dia, um rapaz, aparentando vinte anos, com um tom cerimonial coloca delicadamente o saxofone sobre o banco da praça. E deixa o instrumento descansando na guarda do banco e se vai cabisbaixo e pensativo.

O engraxate corre ao seu alcance e pergunta pelo músico.

- Hoje ele não virá, aliás, acredito que não voltará mais a tocar aqui.

- O saxofone vai ficar ali no banco?

- É para um garoto, um engraxate, que tocava junto com o mestre nas apresentações a tarde.

- Sou eu!

- Tem um bilhete preso ao sax, é para ti.

"Caro amigo garoto, não irei tocar mais na praça, o saxofone é para ti". Ass. Mestre Lívio da Silva Rosa.

O garoto perde o fôlego e deixa cair sua caixa de engraxar sapatos, senta-se desolado no mesmo banco em que Mestre Lívio fez de palco durante meses. Procurou, em vão, a pessoa que trouxe o instrumento, mas já havia sumido no burburinho da praça.

Apalpando apressadamente o fundo da caixa, pegou seus documentos de identidade e enxugando, com a manga da camisa, as persistentes lágrimas de profunda emoção, leu o seu nome na certidão de nascimento. "Lívio da Silva Rosa Filho".

- Paaaaaaiiiiiii!!!!

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