A Lua cheia repousava na linha do horizonte redonda e dourada, conferindo ao
mar aveludado e escuro um brilho inigualável de joia. Ela chegou
do jardim com rosas entre as mãos e um meio-sorriso no rosto, a pele
nua ainda gotejava a atmosfera morna da banheira quando ela colocou as flores
sobre a bancada da pia juntamente com o pequeno punhal de prata. A cozinha cheirava
doce à canela que emanava das velas acesas, e curiosamente acentuavam
a luz castanha do seu olhar enegrecida pelos cabelos que desalinhados escorregavam
pela fronte e pescoço até os bicos dos seios. Ao movimentar-se
pela cozinha as chamas inquietas pontuavam inadvertidamente as curvas do corpo
que se afunilavam em sombras fugidias que ora revelavam, ora escondiam, o triângulo
pubiano em pêlos pretos e úmidos.
Ela aspirava o ar da cozinha cada vez mais profundamente, e a medida que o fazia
podia saborear a canela e os próprios suspiros. Permitiu-se absorver
pelo aroma da especiaria e pelo próprio desejo, deixando que o sangue
do dedo espetado pelo espinho de uma das rosas dissolvesse-se em meio a carne
vermelha das pétalas que amassava vigorosamente na tigela de cerâmica,
e envolveria em açúcar. Com um pano branco cobriu a pequena tigela,
reservando-a sob a lua que adentrava a cozinha pela vidraça, e o próprio
corpo nas trevas do quarto em que se entregava aos sonhos.
Mal o sol despontara e lá estava ela deixando entre os lençóis
brancos seu cheiro de água, rosas e especiarias. No espelho contemplou
por alguns minutos a morenez da própria pele emergindo das mãos
cheias de água e da espuma que se fixava no ar por um leve aroma de erva-doce.
Com um sorriso claro iluminou o próprio rosto e dirigiu-se a cozinha
cheia de sede e fome. Ao conteúdo da pequena tigela de cerâmica
adicionou água, mais açúcar e o suco de um limão
espremido entre as unhas crescidas e os dedos das mãos finas e adocicadas,
lambidas e sugadas pelos lábios e a língua que buscava avidamente
atenuar o próprio calor. A mistura vermelha e doce foi levada ao fogo
brando e coordenada em movimentos sinuosos às ondulações
do quadril que insistiam em dançar sobre as longas pernas, nervosas como
o ritmo do derback, enquanto mordiscava displicentemente um pedaço de
pão macio com o sabor do leite. O líquido viscoso e caramelizado
tinha a cor do mel e o cheiro das rosas e estava pronto para ser usado quando
ela falava ao telefone numa voz ardente e quase rouca apertando com a boca o
fio do aparelho e as palavras.
O dia passou sereno e quente, e a casa foi preenchida pelo ritmo baladi e pelos
movimentos serpenteantes do corpo dela que se entregara em êxtase a dança,
e a si próprio, enquanto ela limpava pisos e janelas, trocava os lençóis
e as toalhas, aguava as plantas e as ideias. O anoitecer a encontrou
envolvida pelo odor de óleos de banho e com os cabelos lavados e perfumados
e delicadamente arrumados num rabo de cavalo que inclinava-se do meio da cabeça
em direção as costas, expostas pelo vestido rubro e transparente
que escorregava sedosamente pelas coxas e rodopiava farfalhante ao andar em
saltos altos na direção da cozinha.
Na bancada da pia, um morango graúdo perdeu-se num beijo com a boca dela,
confundiu-se com o batom carmim e a excitação dos lábios
que o devoraram comprimindo-o entre os dentes. Enquanto isso, suculentas, as
mãos cortavam uma boa porção da fruta e colocava na sonora
jarra de cristal revelando a carne macia recém amputada dos pequenos
mamilos vermelhos. Os dedos contornaram o corpo redondo de uma maçã
fresca e perfumada enquanto o pequeno punhal de prata o cortava em pequenas
partes que foram acomodadas junto aos morangos, formando um bonito contraste
entre o branco lívido dos pedaços expostos e a cor encarnada no
fundo da jarra. Vertendo entre as falanges, o líquido azedo de um limão,
umedeceu e aromatizou as paredes do recipiente de cristal e por fim envolveu
o seu conteúdo temperado com cravo e canela.
Ela rolou entre as palmas o vermelho amarelado de uma romã, cujas vísceras
foram expostas num corte preciso do pequeno punhal, deixando assim escorrer
sobre o mármore da pia o líquido bordô, intenso e transparente,
dos bagos desmembrados que se esparramaram sobre a bancada. Com vontade espremeu
os membros em pedaços e arrancou-lhes as pequenas sementes róseas
e úmidas, que foram aleatoriamente se perdendo no leito castanho do mel
de flores que escorria por entre as reentrâncias macias e aromáticas
da jarra de cristal.
A luz da geladeira se extinguia através da greta da porta, que se fechava
para abrigar o precioso conteúdo do vasilhame de cristal, quando o telefone
tocou e ela atendeu-o ainda arfando de ansiedade e de espera. O som ininterrupto
do relógio no corredor marcava as batidas do coração. A
respiração desordenada fazia o fino tecido do vestido vermelho
tremer sobre a pele do colo, revelando a pinta escura que fugia por entre os
seios. A brisa marinha invadiu a sala quando ela abriu-se para a varanda deixando-se
iluminar pela lua e pela noite... agora era esperar, e silenciosamente ela esperou
que a campainha tocasse.
E ela tocou! Caminhando suavemente até a porta, respirou fundo, sentiu
o próprio cheiro e o da casa. Dando uma última conferida na arrumação
da sala, com suas flores e suave iluminação de velas e abajur
e luz lunar, olhou-se no pequeno espelho dourado próximo a entrada arrumando
por cima do ombro o rabo de cavalo. Com um sorriso no canto dos lábios
envolveu a maçaneta e girou-a silenciosamente, permitindo que o peso
da porta fizesse o esforço por ela. Lá estava ele, pronto para
adentrar os seus domínios... Lá estava ele, lindo, inquieto, inseguro,
ligeiramente tímido e libidinoso... Lá estava ele, sedento...
e ela mataria a sede dele, porquê disso dependia a extinção
da dela própria.
Ele se acomodava na varanda e ela se dirigiu a cozinha, tirando da geladeira
a jarra de cristal e cubos de gelo, enquanto uma garrafa de vinho tinto era
aquecida em banho-maria. Da garrafa inclinada sobre a jarra, escorria pela garganta
um vermelho sanguíneo que se enervava pela carne macia dos frutos,
tal como o desejo dela que se inflamava nas próprias veias e injetava
sangue nas dele, submergindo todo o conteúdo no líquido viscoso
e doce das flores, e do seu próprio sexo. As sementes róseas se
deixavam confundir na uniformidade cromática de toda a mistura navegando
sinuosamente no líquido morno das entranhas da jarra, e do corpo dele
que desejava refrescar-se no cálice do ventre dela, sem saber que a brisa
gelada que transpirava pelas paredes de cristal da taça que acabara de
receber em suas mãos continha mais que cubos de gelo, vinho, meles e
frutas...
... Ela agradeceu com um sorriso o gole saboroso que ele lhe ofertou da própria
boca, e gargalhando silenciosamente, sentenciou... "Te peguei!".