Foi numa pequena e aconchegante cidade do interior que aconteceu. Era de tardezinha,
por volta de cinco horas e fazia um frio danado, daqueles que vão gelando
até os ossos. Para completar, o dia estava nublado. E lá era mais
frio ainda porque a tal cidadezinha fica num pé de serra, uma serra maravilhosa,
por sinal. Não vou contar o nome da cidade para não tornar constrangedor
este conto. Mas talvez, até o final da história, você, leitor,
desconfie em qual cidade se passou. Posso dizer que é uma aconchegante
porém fria (apenas o clima) cidadezinha histórica, digo, do período
barroco, no interior de Minas Gerais.
Saí do pequeno e agradável hotel para dar uma volta a pé
pela cidade. A praça central, a um quarteirão do hotel, muito
arborizada e florida, estava cheia de gente. Homens que largavam o turno da
usina e ali paravam para bater um dedo de prosa com os amigos, tomar uma cachacinha,
comer um torresmo, feijão tropeiro ou algo parecido. Mulheres que voltavam
das belas casas onde trabalhavam. Mães que buscavam seus filhos da escola
ou os levavam para passear, andar de bicicleta. Solitários que liam,
atrasados, o jornal da manhã, sentados nos bancos da praça. Além
disso, cachorros, acompanhados dos donos ou vira-latas que vagabundeavam por
ali. E ainda trabalhadores apressados, turistas, como eu e outros passantes.
Passarinhos cantavam.
Vi então a igreja aberta (das outras vezes que lá estive nunca
a vi aberta).Quis logo entrar (essa mania, acredito eu que de mineiro, de visitar
igrejas e, sendo a primeira vez naquela igreja, deve-se entrar com o pé
direito, com direito a fazer três pedidos). Além disso, era Igreja
de Santo Antônio, santo que me acompanha desde criança.
Entrei, olhei o teto com suas pinturas que um dia foram de cores fortes (vermelho,
azul), hoje descorados e clamando por restauração. Todos os anjos
barrocos ali, bochechudos, gorduchos, cabelos encaracolados... zelando por nós
e nos guardando dos perigos terrenos. Me distraí vendo aquela arte, o
altar todo banhado em ouro. Divino! Maravilhoso!
Sentei-me em um banco e pus-me a rezar. Me identifiquei ao santo, fiz os três
pedidos a que tinha direito, agradeci.
Absorta em meus pensamentos e de costas para a porta dianteira, principal e
única, me deixei levar pela reflexão e nem percebi o que acontecia.
De repente, os sinos começam a repicar. Levei um susto. Mas fiquei quieta
e pensei: será que haverá missa agora? Ou será uma novena?
Só sei que aonde estava fiquei. Distraída ouvindo os sinos tocarem.
Como não paravam de repicar resolvi olhar para trás. Lá
estavam eles e elas. Já na porta da pequena igreja, já com o primeiro
passo porta adentro. Só então entendi: a igreja, que nunca abria,
abriu-se para o velório. De quem? Não sei. E eu ali, naquele banco
no meio da pequena igreja que nem portal lateral tinha! Me desesperei. Aí
pensei: vou sair. Mas sair como? Na contramão da procissão que
carregava o morto? Delicadamente, despistadamente, fui me retirando para a lateral.
Fiquei em pé, encostada na parede, pois o espaço entre a parede
e os bancos era minúsculo. Então pensei: calma, para que tanta
ansiedade? Espere o pessoal entrar e depois saia à francesa. Muito bem.
Resolvi esperar. Mas que espera! Era tanta gente! E a igreja tão pequena!
O morto devia ser querido e popular! Aí atinei para o fato: como iria
sair dali? Olhava para a porta e não parava de entrar gente. Eram mais
dois, mais três, mais cinco... A igreja, que já era pequena, virou
um ovo, e lotada! A essas alturas já havia esquecido o frio. Que frio?
Havia muito calor humano ali. E todos rezavam. Aquela reza baixinha, murmurada
da Ave Maria: "Ave Maria cheia de graça o senhor é convosco
bendita sois vós entre as mulheres..." No desespero resolvi rezar
também: "Ave Maria cheia de graça..."
Então me conformei. Disse a mim mesma: já que está aqui,
reze para o morto! Foi o que fiz. Comecei a rezar. Rezar e observar o povo.
Gente simples, amiga, solidária. Aí percebi: ninguém chorava!
Não vi uma lágrima correr! Comecei a pensar no morto: querido
eram pois tanta gente! Talvez fosse um senhor, já de idade avançada,
um pouco doente e por isso as pessoas se conformavam por ver pessoa tão
boa, recebendo o merecido descanso, depois de uma vida de muito trabalho e lutas.
Mas nem a viúva choraria? Talvez ele, o morto, fosse viúvo. Ou
talvez fosse um solteirão que não tivera filhos na vida... aquele
ali presentes seriam amigos, sobrinhos, primos, filhos de amigos... Uma coisa
é certa: só pensava que era homem. E, para mim, era viúvo.
A esposa estaria lhe esperando de braços abertos, com todo carinho, na
porta do céu. Esse meu romantismo...
De onde estava não dava para vê-lo. Só vi ao longe, as flores
amarelas que lhe cobriam o corpo. Seja quem for, pensei, que descanse, que tenha
boa acolhida e encontre paz. Aos familiares e amigos, força, que por
mais contidas sejam as lágrimas, a dor se sente no coração.
Por fim, cuidadosa e respeitosamente, em silêncio, fui me esquivando daqui
e dali entre um e outro parente/amigo e cheguei até a porta. Fiz o sinal
da cruz e saí. Dei mais algumas voltas na praça, voltei ao hotel,
escrevi este conto e fiquei à espera do meu marido, amigo e companheiro.
Ao chegar ele me perguntou:
- Como foi o dia, o que fez?
E eu respondi:
- Fui a um velório.