A Garganta da Serpente
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Encontro ao acaso

(Anselmo de Sousa Gomes)

Olhos entregues à janela. Os acenos dos postes baixos faiscavam no empecilho dos vidros, deixando um rubro quase irritadiço na impressão veloz com que se superavam. Seu corpo queimava, no que era um aviso prévio da aproximação dos caldeirões de fundição. Podia já distinguir os primeiros, a alguns quilômetros de distância, expulsando milhões de faíscas incandescentes numa fúria sem vida. Suas mãos não se acalmavam, tentando de forma inútil e maquinal abrandar a transpiração constante.

Era um amanhecer terrível.

O imenso veículo em que era conduzido estava superlotado. Gente de toda sorte e idade comprimia-se no metal indiferente de quatro vagões ultrapassados, prestes ou não a desabar pelo solo pedregoso que se expandia até o limite da vista. Criavam todos, gentalha e ferragem, barulho incansável, miscelânea de xingamentos, gargalhadas, atritos metálicos e gemidos. Eram raros os passageiros que se entregavam, nos poucos instantes entre o vale e a mina de fusão, ao atordoamento mudo de olhar através das janelas, ocos como o que viam. O homem de mãos nervosas era um deles. Talvez o único. Chamava-se Taoo, caco vivo que sustentava um resto de cabelo ainda não destroçado pela parca alimentação compacta da Companhia. Contudo, não se sentia um privilegiado. Pelo contrário. A resistência de seu corpo à destruição fazia-o pensar no quanto ainda lhe restava pela frente, se a insanidade não batia à porta. Parecia inacabável o seu futuro.

Desfazia-se nisto.

Em Adrobah, geralmente sobreviver é uma maldição.



Ela era franzina demais para passar sem esforço no pouco intervalo entre os corpos aglomerados que praticamente entupiam o vagão. Seus braços, desacostumados, forçavam aqui e ali um peito, uma espádua, um glúteo. Não emitia o menor ruído. Simplesmente espremia-se, como sempre, seguindo vagarosa e arfante até o seu objetivo: um assento reservado.

Chamava-se Côba, e tinha os pensamentos devastados.

Ainda com qualquer coisa de jovialidade, além da agilidade no controle dos autotrituradores, sentia-se precariamente viva. Seu couro cabeludo reluzindo a ausência de qualquer fio e o lábio superior pendido davam-lhe um semblante infantil. Os olhos não tinham brilho, apagando-se num preto moribundo. Vestia o macacão marrom da Companhia, enfiado num par de botas azuis muito bem cuidadas.

Enfim, conseguiu acomodar-se. Esticou os braços no assento posterior, depois os cruzou apoiando o queixo sobre um deles, circunspecta. Todavia, algo lhe retirou imediatamente daquele torpor. O passageiro do assento paralelo ao seu, após o intervalo do corredor, começou a ser esmurrado violentamente por um brutamonte de tórax nu, que rugia ódios incompreensíveis.



Taoo distinguiu uma gota de sangue, esmagada, quase na limitação do vidro. Ainda estava fresca. Perdeu-se nela. Tentou entendê-la, deduzi-la. Tocou suas narinas, a ver se não estava sangrando. Nada. Sem sair muito desses singelos devaneios, voltou-se para o interior do vagão.

Foi aí que se percebeu desperto a uma nova possibilidade de existir.



Côba pretendia falar cada vez menos. Esquecera das pessoas. Não precisava delas. De vez em quando, esforçava-se por lembrar as formas de tratamento usuais. A anciã ao seu lado não cansava de vociferar contra a violência de há pouco. De como tudo se acabava, da humilhação daquela condição submissa etc. A franzina entrelaçou as mãos, mirando a ponta de suas botas limpíssimas. Era atacada de uma indisposição horrenda. A velha não desistia. Nisto, o vagão cambaleou em uma depressão do terreno. Irritada, Côba buscou os olhos da anciã com a intenção de um xingamento áspero.

Porém, distinguiu-lhe de imediato. Mantinha a cabeça pendida e os dedos a friccionar as fossas nasais.



Foi aí que Taoo se percebeu desperto a uma nova possibilidade de existir.



A multidão entrava novamente em polvorosa. Começavam uns gritos, uns empurrões. Eram algumas mulheres, que tentavam agredir um apalpador mal sucedido, fato que comprometia ainda mais a condição dos que se encontravam de pé, já tão maltratados. Chamavam pelo guarda do vagão, que ninguém mais conseguira ver por ali depois que foram levados o brutamonte de tórax nu e o ensanguentado que ocupava o assento destinado a Taoo. Nesse instante, a confusão explodia. Côba desvairava-se, buscando a Taoo entre a fenda de uma perna e um ventre. Suas mãos nervosas amassavam carnes alheias, impediam quedas, desferiam tabefes. A anciã ao seu lado era quase engolida por seu corpo arqueado, confuso, decidido.

Taoo também não podia se conter. Acordara. Estava tão eufórico em revê-la que não podia permitir um obstáculo tão patético. O que sentia em suas entranhas era incêndio. Havia enfim uma alternativa. Foi nisto que se ergueu, começando a tentar livrar de seu caminho meia dúzia de mineiros ensandecidos.

Preparava um urro de ira, mas um cotovelo involuntariamente fez-lhe engolir a revolta. Tombou no assento, percebendo sangue e dor. O guarda surgiu na portinhola metálica, pescoço erguido e olhar terrível, no exato instante em que o veículo chegava à primeira estação.

Começou um maior estardalhaço. O homem da lei foi encoberto pela multidão que precisava desembarcar ali. Não tinham tempo a perder, nem direito a possuir tempo. Era massa escrava, parafuso sempre atrasado, indefinidamente movimentando-se no ciclo inglório das entranhas de um mundo desenganado.

Côba não desceria. Sua estação era a última, tangenciando com as cavernas de transformação, onde praticamente havia um ser vivo para cada quinze máquinas frias, entre trituradores operáveis e dróides autômatos. Destinava-se a um confinamento de setenta e três dias, tendo por únicas companhias um gigantesco robô não inteligente e dezenas de quilômetros de galerias mal iluminadas, emudecidas, até que pudesse ter novamente o dia de folga correspondente ao seu código de série. Poderia então conceber novamente a convulsão turva da cidade de Baripe diante dos sentidos.

Essa convicção estimulava ainda mais a sua agonia em relação a Taoo.

Este, entregando-se à janela, consumia-se do impacto sofrido. Nisso, voltou a si a consciência daquela que a tanto lhe fora arrancada, que se fazia possível de forma tão iminente na distância idiota de um corredor. Exalou um sopro baixo, onde um nome familiar varava o ar sem rumo definido. Os últimos mineiros saíam. Um ronco gasto indicava a verdade da nova partida. Taoo desceria em seguida. Nas metalúrgicas. Na incandescência terrível e necessária à sobrevivência de Adrobah.

O guarda, enfurecido, desferindo pontapés no encosto dos assentos, invadiu o vagão arrastando um alquebrado sujeito pela gola do uniforme, feito um animal à beira do abate. Vociferava contra a desordem, que não suportaria mais nada dali em diante. Arremessou o sujeitinho, mais morto que vivo, num canto do compartimento, pondo-se bem no meio do mesmo, entre os poucos que restaram: estava pronto a distribuir violência.

Côba podia ver nitidamente a Taoo. Não havia mais nada físico entre eles. Podia olhar em seus olhos, que a tragavam imensos, desacreditados.

Achavam-se um no outro, paralelos, novamente possíveis.

Ao mesmo tempo não.

O veículo relançou-se, débil, sob o som grosseiro dos caldeirões mais próximos. O dia crescia desprezado. Baripe já havia se desfeito totalmente no passado e na distância. Os dois amados, perplexos, tentavam se salvar. Não havia mais dor em Taoo. Não havia mais autotrituradores em Côba. Apenas o guarda.

Apenas Adrobah.

Encontraram isso simultaneamente, desenlaçando os olhos em tácita combinação. Tal processo pode ter custado vários minutos. Não perceberam.

Taoo, esticado no assento reservado, que por pouco não teria que reclamar, acompanhava a previsibilidade do solo negro, em poucos instantes não notando mais o movimento contínuo do veículo. Uma das mãos riscava o vidro levemente até o limite metálico da janela, a outra roçava o emblema da companhia, estampada no uniforme à altura do peito; sentia toda curva, todo detalhe retíssimo, infalível. Seu rosto inchava cada vez mais à pancada recebida, enquanto ele preocupava-se com a possibilidade de ser dispensado por esse motivo.

Côba tentava adormecer. Tinha ainda um bom tempo até a estação. Sentia-se relativamente sonolenta. Cruzou os braços e deixou o crânio pender sobre o peito, fechando seus movimentos - pelo menos nas horas que até desembarcar em seu destino.

Empreendendo uma curva repentina para um grande declive, o veículo precipitou-se definitivamente no túnel que comunica com as entranhas da região, sem nada assustar ou desfazer.

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