A Garganta da Serpente
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Hobby

(Anselmo de Sousa Gomes)

A olho nu permeio a amplitude da avenida. Dia de segunda-feira os alvos se multiplicam em quantidade e opção. Sempre demoro a escolher um, como aquelas dondocas que se perdem a tarde inteira num supermercado em busca de qualquer coisa que nem mesmo elas sabem o que é. Vejo através da mira novamente e percebo os rostos cansados e distraídos dos seres humanos que passam sob mim. Mal sabem que podem ser mortos a qualquer instante, como num piscar de olhos. A ignorância é mesmo uma dádiva. Observo seus semblantes despreocupados, nulos. Sinto uma coceira na garganta. Talvez seja sede. Emborco o litro de vodca uns segundos, sinto o fogo alcoólico temperar minhas vísceras. Estou menos denso. Empunho novamente o rifle de precisão, exponho seu cano elegante à rua movimentada, procurando.

O quarto de hotel onde estou hospedado hoje cheira a desinfetante pinho. Deve ter sido limpo pouco antes de eu chegar. Na entrada, a recepcionista com cara de peixe me fitou como se eu fosse um pedófilo. Não é bom chamar a atenção. Devia ter feito a barba, mas a praga da minha cunhada tinha que achar de raspar as pernas. Puta. A Wanda sabe que eu a detesto, e ainda assim a enfia em casa por semanas... Hum... Aquele velho parece um bom alvo: Anda arqueado; as pessoas o olham com pena e desprezo; deve ter uns oitenta e tantos anos e muita desgraça pra contar. Digno de compaixão. Assim mesmo é que eu gosto. Miro em sua testa encovada, suada do dia quente. Não espero muito. A bala segue seu trajeto determinado, quase silenciosa, indo aconchegar-se suavemente na fronte esquerda do ancião, que tomba como se fosse liberado de todo o fardo que carregasse nos ombros. Dorme. Antes que a multidão horrorizada se acerque do defunto, posso ver ainda o buraquinho discreto que o projétil deixou. Quase nada. Morte rápida e indolor.

Desço as escadas lento, dizendo ao tambaqui da recepção que contabilize as minhas despesas. Ela me encara sem discrição e soma. Pago em notas miúdas e saio com a maleta em punho, certamente cheia de fotos de criancinhas nuas.



Mês passado matei um garoto espinhento na 1º de Abril. Coração. Em cheio. Talvez estivesse pensando, segundos antes, num macete para o jogo de computador da lan house do bairro. A vida mal vai saber que ele existiu. As pessoas que o viram ser abatido conhecem de cor a história da bala perdida. "Hoje aquele menino, amanhã um pai de família, e por aí vai... O Brasil não tem jeito mesmo!" Reclamação vazia, indiferente. Simples cópia da reclamação de outra pessoa, do cara da TV. Ninguém quer saber da pessoa que vai ao lado ao metrô, que se senta junto e ri no cinema, que dorme no quarto conseguinte, que cruza rapidamente na rua. Só ambiente. E ambiente se reconstrói; ao ambiente se adapta. Como não? Hoje em dia é tudo pedaço de carne, vidro, cimento, dióxido de carbono, madeira e ar. Um prédio implodiu, uma mocinha foi estuprada... Dia-a-dia. Por isso eu mato gente. Porque também sou gente e não ligo pros outros. É só um tipo de esporte, uma distração para o imenso tédio que me engole diuturnamente.



Escolhi o domingo desta vez porque queria algo novo. Alvos coloridos e pululantes. No dia mais branco da semana a morte me soa iminente. O domingo transpira morte. Foi difícil convencer a Wanda e os meninos do pepino na empresa. Nunca fui de sair num domingo. Sempre brinco de vídeo game com meus filhos, asso o churrasco e bebo a minha cervejinha vespertina diante da TV. Há muito tempo que faço isso. Usei de todas as artimanhas pra dar uma volta na família. Ficaram me olhando do portão, pensos, assim que eu saí com o carro.

A rotina é como um tolete de bosta na calçada. Só fede quando cutucamos nele.

Dou um jeito de entrar no casarão abandonado que dá para o parque. Estendo um lençol no chão entulhado e monto o rifle. Com a prática, faço em menos de cinco minutos. Na primeira vez, às voltas com o manual de instruções em inglês, quase varo a noite. Nesse dia amaldiçoei toda a parafernália tecnológica existente no planeta. Mas, pensando melhor depois, não fosse ela, como eu teria um instrumento assim tão sob medida para a minha distração; e mais ainda, como eu poderia comprá-lo a não ser via internet, em doze fixas sem juros? Deito sobre o lençol e engatilho a arma. Apoio meu cotovelo direito no chão e aponto na direção do parque, através da janela escancarada. Seis da tarde. Horário de pico do domingo. Muitas famílias. Muitas crianças. Crianças... Nunca matei uma criança. O mais perto que cheguei foi o adolescente espinhento... Onde está a vodca? Tomo um gole e me sinto russo. Não sei por que mas sempre que bebo vodca imagino-me um daqueles russos grandalhões, peludos, cobertos de lã até o crânio em uma taverna escura de São Petersburgo. Penso na puta da minha cunhada, alojada em casa comendo do meu queijo minas. Se ela passeasse pelo parque agora, se surgisse na minha mira, eu com certeza a mataria... Vaca... Há também cachorros e velhos de camiseta branca e moletom fazendo cooper. Sigo alguns dos transeuntes com a arma, como um observador de pássaros. Um moleque toma iogurte com verdadeira ânsia. Um cão pitbull corre veloz entre as árvores, perseguindo não sei que canela imaginária. Nada demais. Tomo outro gole para afastar o ócio. Tremo um pouco. Deve ser a idade. Os quarenta do homem atual são os sessenta do homem de trinta anos atrás. Merda de comida industrializada.

Bem, vamos ver... Vamos ver... Que tal a mocinha de macacão? Não... Talvez... Isso mesmo... O pitbull!

...

Pronto. Acho que o bicho não sentiu mais que um beliscão atrás da orelha. Tô ficando bom nisso. Acertei um cão em movimento. Peguei o jeito desse negócio. Bem que eu podia garantir um extra como matador profissional... Pensando melhor não, ia estragar o propósito de o meu hobby existir. Diversão é diversão, trabalho é trabalho.

Agora deram de cercar o cão morto. Como fizeram com o velho sofrido. "Essas balas perdidas..."



Hoje saí do trabalho com desejo. Quero uma façanha. Percorro as ruas ansioso, com leve taquicardia, vendo os barzinhos lotados de funcionários públicos e filhinhos de papai. Uns amigos da empresa me convidaram para um chope no lugar de sempre. Na minha ânsia, recusei. Hoje estou como louco, com o corpo todo remoendo e coçando de vontade. É fato: estou viciado em matar. Meu menino mais velho é viciado em skate; eu, em matar. E hoje o desejo deu de vir com tudo. Viro a esquina na 02 de Novembro, onde a profusão de bares se torna latente. De repente, minha garganta começa a ficar irritada. Procuro a vodca no banco de trás, no banco da frente, em baixo dos bancos, no porta luvas... Nada. Esqueci minha bebida em casa. Cacete! A vodca é como um lubrificante. Sem ela minhas engrenagens não funcionam. Olho os bares, cutuco a carteira, estaciono atrás de um Golf branco. Entro no recinto abarrotado e, sem mais nem menos, resolvo sentar. Peço vodca pura, da minha marca. O garçom traz a dose num copo achatado. Engulo dum só trago e fico olhando em volta, sentindo suavemente o contato do líquido com as minhas entranhas. Estou mais calmo.

Toda essa gente bebendo e vociferando é apenas barulho e espaço preenchido. Ambiente de bar. Um bando de possíveis futuros alvos. Tem um pau de cana esparramado nos fundos que nem sentiria falta dessa vida. O garotão do jiu-jítsu cercado de comparsas não alteraria em nada a ordem das coisas se fosse fulminado na esquina da José Bonifácio com a Tiradentes. E o garçom que me traz outra vodca? Esse então, passariam por cima do corpo e nem notariam. Gente é só gente, mais nada.

Engulo a segunda dose tranquilo e só então me dou conta de que estou na 02 de Novembro. Um matador bebendo na rua dos finados. Baita anedota do acaso. Quase dou uma gargalhada diante do pessoal.

O desejo cresce como nunca!

Deixo o lugar e ganho a interestadual. Levo uma garrafa de vodca comigo. Nas sextas-feiras o movimento é qualquer coisa de razoável. Escalo um daqueles ex-restaurantes em ruínas, enquanto a noite explode de nuvens. Se eu estivesse na estrada, provavelmente estaria no clima de ouvir "Beautiful" do Marilion ou coisa que o valha. A estrada sempre trás um aspecto de lentidão, de meia velocidade à paisagem e aos pensamentos. Melancolia dócil. Um dos poucos momentos em que se vale à pena estar vivo.

Os veículos passam por mim indiferentes, mecânicos. Monto o rifle, carrego-o e me deito sobre o velho cobertor. Deixo a vodca ao lado, companheira. Encaixo meu olho direito na mira, aproximando consideravelmente os detalhes dos passantes de mim. A primeira coisa que focalizo é um quarentão sem camisa que trafega num Palio verde musgo. Vai acompanhado de uma mulher aparentemente mais velha que ele. Pela cara dela, deve estar enfastiada e com sono. Uns cem metros atrás guia uma mulher de meia idade muito bem vestida, parecida com a esposa do meu irmão caçula. Vai sozinha. Ultrapassa-a uma Pajero preta repleta de meninotes despenteados e faladores. Descem tipos assim ao litoral todo final de semana, desde que inventaram o passeio à praia. Poderia matar um deles. Chego a roçar o dedo no gatilho mas depois acho melhor não. Uma noite como essa merece algo maior, mais contundente.

Tomo um gole enorme. Minhas pernas arrepiam. Deve ser o efeito do álcool. Debruço-me completamente sobre o lençol, rolo umas três vezes, sinto o ar da noite, ouço os motores distantes, arranjo os colhões, tiro os sapatos, bocejo, arroto vestígio de vodca. Olho pra baixo. Um cara está com o carro parado do outro lado da pista, vasculhando alguma coisa no porta malas. Vejo-o através da mira e noto que arruma umas bolsas cinzentas. Abre uma delas e remexe no que parece ser um maço de papéis. A velha burocracia acumulada, com certeza. Mas pra quê tanto papel? Movo o rifle até o alcance de sua perna e atiro. Acabo de ter uma ideia. Atiro e vejo o cara dar uma desequilibrada e cair sentado no capim ralo. Pressiona com força o ferimento e olha ao redor, aterrorizado. Miro no braço que pressiona e disparo novamente. No alvo! Os carros seguem passando, cegos àquilo. O homem dá uma cambalhota para trás e afunda numa moita de capim. Quase posso ouvir seus gritos. Agora começa a tentar uma fuga desajeitada, arrastando-se para o interior do mato. Ainda posso vê-lo da metade para baixo. Enfio um projétil em sua nádega esquerda, ele dá uma volta sobre si mesmo, enlouquecido. Ergue a cabeça um pouco, buscando qualquer saída desesperada. Não está mais em si. É só instinto de sobrevivência. Perfuro sua caixa craniana à altura da calvície e acabo com o espetáculo.

Estou estafado. Sinto minhas mãos formigarem. Aperto-as contra o tórax, afoito. Por um instante, voltei a ser criança. Engulo quase todo o conteúdo da garrafa e a arremesso longe, espatifando-a contra uma laje incompleta, lá embaixo. Sento-me no cobertor. Desmonto o rifle de precisão. Feito isso, lembro de olhar para o lugar onde o corpo está: continua o mesmo de minutos atrás. O carro estacionado, o defunto coberto de sangue e carrapicho, o movimento da interestadual como deve ser. Olho para mim e noto que estou exausto. Não tenho mais idade para certas emoções. Melhor ir pra casa antes que a janta esfrie.

Ganho a interestadual e sou enfim um dos carros passando, vivo por capricho, linha tênue. Cheguei a um ponto da minha distração em que pode se acabar o seu encanto. Mas ainda é cedo demais. Cedo demais. Não há porque parar. Não vejo motivos para isso.

Procuro pensar no peixe grelhado que me espera, deixo a vodca gerenciar as minhas decisões e aprecio o resto dessa liberdade noturna como quem fuma um cigarro muito saboroso.



A mais de duas semanas que não mato ninguém. Estou numa daquelas folgas tediosas que costumam se abater sobre qualquer entretenimento, quando muito usado. Sinto-me um menino que está enjoando do carrinho de sempre. Saio do trabalho e vou direto pra casa, ou quando não degusto uma cerveja insossa com os colegas, desanimado, metido com meus botões. A Wanda a muito que anda com a pulga atrás da orelha, me olhando como se eu estivesse escondendo alguma coisa dela. Deve pensar que eu arranjei outra. Nem implico mais com a pentelha da cunhada...

Mas o que é isso? Custei tanto a encontrar uma coisa que me ressuscitasse depois dos quarenta. E quando encontro, tenho que me enfastiar tão rápido? Ah, não mesmo!



Faltei ao trabalho nesta quinta-feira. Depois conto qualquer mentira pro chefe. Preferi sair numa manhã de semana. O ar parece novo. É um dia como qualquer outro, de trabalho, mas o simples gesto de modificar a rotina põe como que um disfarce na sua cara.

Pego o carro quase eufórico (controlado por causa da minha mulher), deixo os meninos na escola e avanço pela cidade, livre como um cão que passou a semana inteira acorrentado. Na curva da Washington Luiz quase bato num motoboy. Entro pela 15 de novembro, passo pela Praça da Luz, pelo Tribunal de justiça, pela Faculdade de Filosofia, pelo Mercado Municipal. Mas a cidade é outra. As ideias começam a fluir: limpas, frescas, leves.

Sou de novo o homem que fui semanas atrás.

Quase dando um pulo dentro do carro, escolho uma casa comercial da avenida Jânio Quadros. Embaixo funciona uma loja de roupas íntimas; nos altos a fachada envelhecida, de pintura descascada, denota um tipo de depósito pouco utilizado. Estaciono o carro numa ruela lateral, suave. Cato a minha maleta e noto que existe uma escada externa no prédio dos fundos, que vai até o andar de cima. Apesar do dia comercial, esta ruazinha está vazia. Serve apenas de estacionamento a alguns carros do pessoal que trabalha por ali. O prédio dos fundos está caindo aos pedaços. Subo as escadas e entro pela porta escangalhada. Estou numa saleta abarrotada de entulho. Tiro a camisa e o relógio de pulso. Subo numa pequena pilha de tijolos velhos e destelho uma parte do teto, onde devo caber. Penso que estou velho pra estas coisas, mas hoje uma palavra que não existe em mim é desânimo. Jogo a maleta pra cima do telhado, agarro numa das vigas de sustentação e, estalando todos os ossos possíveis consigo alcançar o cimo. O sol frio me reencontra arfante e empolgado. Pego a maleta e dentro de alguns passos chego ao telhado da casa comercial.

Belo início de aventura. James Bond do funcionalismo público. Meus braços doem como se dois cavalos indo em direção oposta os tivessem esticado. Deito sobre o cobertor e respiro uns minutos. Deixo o coração relaxar. Penso coisas brancas, monossílabos. Um urubu sobrevoa-me majestoso. Talvez me enxergue de sua altura, indiferente como procede à condição animal. Se fosse uma pessoa também não ligaria. Vê-se de tudo nesta cidade... Estou melhor. Acho que não vou tremer com o rifle em punhos. Monto o meu amigo mais rápido que de costume, posiciono-me de bruços, encaixo a mira no olho direito. Busco a avenida...



...minhas mãos tremem. Não dá pra controlar. Deve ter sido o esforço pra chegar até aqui. Cãibra nas pernas... olhos lacrimejando... dor...

Quarenta e seis anos. Casei aos trinta e três. Idade de Cristo. Eu não tenho nada a ver com Cristo. Sou um homem moderno. Infeliz e fechado... ai... esmurro as pernas, mas o antebraço está em brasa. O rifle pendeu pro lado faz tempo... cacete...

...meio-dia mais ou menos. Um peso enorme se abate sobre mim. Peso acumulado, é o que parece. Como se um guindaste despejasse uma carga de aço bem em cima das minhas costas. Começo a querer chorar. Merda! Choro não. Agora não. Choro sempre desaba com tudo...

...onde é que eu tava quando isso aconteceu? Nada demais. Preparava-me pra matar. Tranquilo como todo dia. O que que houve? Pessoas passando normalmente, conversando, vivendo. Nada demais. Onde foi que caí neste descontrole filho da puta? Quando perdi a mira?

...começo a pensar que isso pode ser um tipo de ataque cardíaco, ou coisa que o valha...

... está passando... volto a sentir minhas articulações, estabilizo a respiração. Crise passageira. Seguida de uma enorme vontade de fazer alguma coisa nova, como quando deixamos uma pessoa que só nos aporrinhava e encaramos a possibilidade do mundo em nossa frente. Incrível! O meu rifle parece obsoleto. Eu pareço obsoleto. Tudo em volta precisa de uma faxina.

Desço por onde entrei e logo estou no carro, suando frio, mas uns vinte anos mais jovem. Tenho milhões de ideias novas.



Domingo. Saio com a família. Os meninos estão eufóricos. Minha mulher abusou na comida. Está feliz. Voltamos a fazer amor. A cunhadinha vai no banco de trás, retocando a maquilagem como de costume. Não implico com ela faz uns cinco dias. Estou dando uma colher de chá pra pentelha. Vamos todos ao parque de esportes radicais. Descobri um novo Éden: rapel. Gostosíssimo sentir aquela vertigem das grandes alturas, a proximidade com a morte. A morte. Os meninos adoram a cama elástica e a Wanda está sendo convencida aos poucos a me acompanhar. Estou leiloando o rifle pela internet. Já apareceram nove lances. Vou sentir um pouco de saudades do meu antigo companheiro. Mas isso são águas passadas. Matar gente foi uma fase. O lance agora é rapel. Quero aproximar-me da morte, eu, que a vi nos outros. Senti-la comigo, amor dado; agora cultivado e feito meu.

Tornei-me um egoísta por inteiro.

Vamos à escalada! Afinal de contas, nunca se sabe por onde andam essas balas perdidas...

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