Não me dei conta dele quando desembarcamos, dentro da noite fria, enrugados
até os ossos por causa das descargas elétricas e do receio. Durante
a espessa viagem de três dias inteiros, arranjei ânimo para prestar
atenção em alguns de meus novos companheiros de cárcere.
Do lado esquerdo do comboio havia as expressões mais mórbidas.
Um garoto mal formado contraía-se, cansado de tanto soluçar e
urinar nas calças; dois grandalhões mal-cheirosos trocavam olhares
cúmplices sempre que se esqueciam de seus ferimentos; um velho raquítico
dava a impressão de querer constatar o sucesso de cada respiração;
uma mulher da vida sorria sarcástica como se já soubesse o que
a aguardava. Do lado oposto, figuras ainda mais estranhas fendiam aquela tristeza
com gemidos, pragas e inquietação - eu era um deles. Entre os
tais, um rapazola de aspecto torpe consumia um fumo saído não
imagino de que esconderijo; três meninotes choravam desesperadamente;
uma senhora bem vestida cuspia e xingava, olhando-nos com desprezo; eu, por
meu turno, havia contraído qualquer espécie de reação
físico-psíquica às feridas, estrebuchando num canto do
comboio.
Mesmo cuidando em observar, não o notei. Somente mais tarde vim saber
por quê.
A prisão a que nos destinávamos era popularmente conhecida como
"Ilha Mouca". Instalada a oeste de Rigonoba, seus muros irregulares
de cor escura davam, ao passante que cruzava a via de acesso rumo à cidade,
a impressão de uma enorme e lúgubre montanha artificial cravada
bem no meio do vale Allete. Recebera esse apelido porque a imposição
básica a quem quer que ali se "hospedasse" consistia a inibição
pura e simples do ato de falar. Tanto que, logo que um prisioneiro chega, é
implantado em sua garganta um mecanismo que suprime imediatamente a atividade
das cordas vocais. Desse modo, toda a sua linguagem se reduz a patéticos
grunhidos. A finalidade desse recurso é impedir ainda mais a aproximação
entre os prisioneiros. Envolvimento pode gerar união e união facilita
a contestação. Mudos, somos isolados com nosso próprio
universo mental. Em suma, inofensivos.
Devidamente enjaulados, durante o dia preenchemos nossas horas com atividades
agrícolas, culinárias, artesanais e mecânicas. São-nos
servidas duas refeições diárias, na maior parte constituídas
de uma ração insípida. A rotina é bastante rígida,
não sendo admitido qualquer tipo de contato com outro condenado. Dormimos
em celas unitárias, minúsculas, sendo despertos antes mesmo do
amanhecer por um apito irritante, extremamente pontual. Ao longo do tempo, suicídios,
acessos de fúria e surtos de loucura eram presenciados, tornando-se em
pouco parte do cotidiano da Ilha. Nos dois últimos casos, o castigo quase
era invariavelmente a execução.
Cheguei à conclusão de que o emudecimento também é
um modo de não sabermos quem é quem neste lugar. Eu, por exemplo,
sei apenas de mim. Vim parar aqui por ser pego vendendo vales-alimento a um
contrabandista Mataguenho. Precisava do dinheiro para ajudar a uma prostituta
local com uns problemas de saúde que a estavam matando. Não que
eu me compadecesse. Acontece que a vadia deu de me perseguir pelas ruas, implorando,
gritando, chamando a atenção de todos. Não queria que um
colega de trabalho visse aquilo e me delatasse na estação metalúrgica.
Podia perder o emprego. No entanto, o resultado foi bem pior. Mas o fato é
que esse é o meu delito, o único que conheço aqui na Ilha
Mouca. De resto, não faço a menor ideia da infração
dos outros prisioneiros. Para falar a verdade, nem sei quem são essas
pessoas. Vêm de lugares distintos, mesmo dos outros dois continentes.
Assassinos, estupradores, ladrões baratos, sádicos, corruptos...
Não tenho a menor ideia de quem convive comigo todos os dias.
O que teriam feito os três pirralhos chorões, a senhora bem vestida,
o rapaz mal formado, os dois grandalhões? E esses outros milhares?
A Ilha não tem como ouvi-los e me contar.
Entre a pequena população contida aqui, está aquele que
não notei no comboio. Nos meus primeiros dias de prisioneiro, procurei
manter as regras da melhor maneira possível. Trabalhando, comendo e repousando
maquinalmente, sem ao menos olhar a minha volta. À hora das refeições,
sentava no meu lugar e mastigava no silêncio que me foi forçado.
Sem mais, um dia qualquer eu caminhava pelo refeitório quando senti um
solavanco por trás. Temeroso às normas, dirigi-me apressado ao
meu assento. Só então pude constatar o que havia ocorrido. Um
indivíduo macilento, de cabelos volumosos e modos contidos tinha, em
sua distração, colidido comigo e consequentemente derramado
toda a sua comida. Estava ali, estático, olhando para o chão como
se uma poça de sangue tivesse surgido bem na sua frente. Não movia
um músculo. Parecia ter perdido instantaneamente a respiração.
Logo apareceram guardas, furiosos, desferindo golpes secos de barras metálicas
sobre o dorso daquele homem. O mesmo suportou a agressão no mais absoluto
silêncio, como se ainda permanecesse em estado de torpor. Foi conduzido
de volta à sua cela, no que todos nós tivemos que seguir com nossa
refeição, como se nada tivesse acontecido. Fora sempre assim.
Uma vez ou outra uma confusão rompia a normalidade daqueles momentos,
tendo que ser ignorada por todas as suas testemunhas. A ordem era elemento primordial
naquele lugar. No entanto, uma dessas coisinhas ínfimas, inexplicáveis
e indeléveis que nos tomam de assalto as entranhas nos instantes mais
inesperados deu de me ocorrer bem ali. Não pude deixar de guardar comigo
um interesse até certo ponto estranho em relação ao sujeito
pálido. Não sei dizer que aspecto daquela figura deprimente ficou
grudado na minha memória ou porque diabos passei a, frequentemente,
pegar-me pensando nele durante o dia. Não era ninguém, não
possuía qualquer qualidade ou esquisitice que se pudesse pôr em
relevo. Constituía, dos pés à cabeça, uma sombra
sem importância, um a mais para ser devorado pelos muros da Ilha Mouca.
Todavia, qualquer faísca de veemência advinda do sujeitinho instaurou-se
no meu interior. Além do mais, outra coisa que eu não esperava
é que isso fosse render como rendeu.
Um fato comprovado é que o silêncio a tudo expande. Um simples
segundo, quando imerso no vazio da completa ausência sonora, ganha um
aspecto secular. Principalmente aqui. Não é de estranhar que muita
gente dentro destes muros enlouqueça. Eu mesmo poderia jurar que vultos
esquisitos cruzam diante de mim, todas as noites. Mas o mais gozado é
que, depois de tanto tempo afeito à surdez, você consiga tornar
palpáveis os sons gravados na sua memória. O que antes era apenas
uma impressão fosca pode se tornar concreto. Percebo nitidamente tons
de grave e agudo, melodias da infância, ranger de máquinas antigas,
gargarejos de meu pai, o estalido de um beijo, todo o som confuso e belo de
uma noite na cidade. Em suma, uma orquestra insana dança para mim noturnamente,
enquanto luto pelo sono.
Na noite do incidente acontecido no refeitório, não seria diferente.
Recolhi-me no horário instituído, assim como o restante dos prisioneiros.
A iluminação das celas iria embora em cinco minutos, sendo que
cada uma delas era devidamente monitorada por câmeras de vigilância,
equipadas com um sistema especial de funcionamento para a mais completa escuridão.
Desse modo, eu estava constantemente cercado de olhos eletrônicos. Precipitava-me
no leito quando, tocando maquinalmente meu único bolso traseiro, senti
um volume. Antes de qualquer movimento brusco, lembrei das câmeras. Tinha
que tornar meus movimentos completamente insuspeitos. Controlando a tensão
que se atinha sobre mim, fingi uma coceira e, do modo mais dissimulado possível,
arranjei uma forma de catar aquilo imediatamente. Senti uma leve rugosidade,
enquanto interpunha o objeto entre os dedos. Deitei-me de bruços, sem
movimentos esparsos, virando o rosto parcialmente na direção da
parede, enquanto apoiava-o com ambas as mãos, aparentando naturalidade.
Foi então que, tendo o item bem próximo de meus olhos, abri cuidadosamente
os dedos que o ocultavam. Constatei, confuso, que se tratava de um pedaço
velho de madeira. Como fora parar ali? Minhas obrigações diárias
até então não haviam me conduzido à carpintaria.
Foi no meio dessa indagação que distingui, num dos lados do pequeno
estilhaço, uma inscrição, entalhada desgraçadamente
por mãos descoordenadas. Sentindo a iminência da escuridão,
li: "Você se debatia como um catruch degolado naquele comboio. Chamo-me
Dibnus."
A luz apagou, como se concluísse um passe de mágica.
Durante uma hora inteira não pude me mover, boquiaberto com o que ocorrera.
Inúmeras perguntas ocorreram-me, mas nenhuma delas respondia como aquele
pedaço de madeira havia ido parar no meu bolso. Depois de algum tempo
constatei, mais calmo, que o suspeito reduzia-se a um dos passageiros daquele
comboio. Contudo, eu ainda não havia reencontrado nenhum deles aqui dentro.
Além do mais, qualquer contato físico é proibido, ordem
que procurei cumprir seriamente. Foi então que recordei do incidente.
Era isso! Só podia ter sido o tipo macilento. Aquele encontrão
não havia sido acidental. O desgraçado planejara tudo! Mas como
eu não o notara no comboio? Mesmo sob esta dúvida, aquele sujeitinho
era a única alternativa possível...
Passados esses primeiros momentos, dei início a um longo processo psicológico
para tentar compreender como se dera aquela façanha; como esse tal Dibnus
conseguira estabelecer contato comigo, e por quê.
A noite foi-se num pandemônio. Um turbilhão de pensamentos me suplantara
o juízo, soterrando-me de dúvidas e sobressaltos. Dibnus era agora
parte de uma realidade súbita, um cataclismo que conturba de vez toda
a ordem que eu vinha tentando estabelecer desde o meu ingresso na Ilha. Contato!
Um outro havia proposto, de forma ousada e impressionante, aquilo a que chamamos
comunicação. Eu me sentia profundamente abalado. Talvez o encontrasse
no dia seguinte... Como ele reagiria? Como eu reagiria? Havia muito em que pensar
dentro da noite tão curta. Minha excitação era tanta que
eu quase me esqueci das câmeras. Desse modo, procurei equilibrar minha
inquietação de modo a não levantar suspeitas. Em relação
ao pedaço de madeira, depositei-o cuidadosamente no aparelho sanitário
de minha cela, enquanto fingia limpar-me, dando em seguida o sinal de descarga
e eliminando peremptoriamente a prova.
O amanhecer veio como se eu o arrancasse do horizonte com os próprios
punhos. Tudo parecia redesenhado, adornado vivamente de uma nova e assombrosa
possibilidade. Naquele dia, todos os prisioneiros dos setores norte e oeste
(do qual Dibnus e eu fazíamos parte) estariam encarregados da limpeza
e manutenção da frota penal, uma interminável fila de praticamente
três centenas de veículos destinados a todo tipo de serviço
de transporte, desde a desova de prisioneiros mortos até a condução
indiferente dos inspetores periódicos. Tínhamos um longo trabalho
pela frente. Mesmo aos milhares, estávamos diante de uma situação
sofrível, em se tratando da própria frota. Alguns dos veículos
estavam reduzidos a pilhas de sucata, e mesmo os mais conservados apresentavam
algum tipo de problema crônico. Porém, as ordens eram para que,
ainda no final daquele expediente, o estado geral do patrimônio estivesse
em condições infinitamente melhores. Escorados à espessa
amurada ou rondando por cima de nossos ombros, uma multidão de guardas
observava-nos as tarefas inquisidoramente, loucos por uma fatia de nosso couro
criminoso. Mas, para além desse encargo ofensor, os homens de lei estavam
ali para garantir a comunicação entre os prisioneiros por meio
de um tosco sistema de anotações, no qual repassávamos
dúvidas e instruções, devidamente lidas por eles aos destinatários.
Solução patética, como tudo o que nos rodeava.
Assim sendo, os trabalhos foram divididos da seguinte forma: quem possuía
algum conhecimento de mecânica ficaria responsável unicamente pelo
conserto dos veículos, enquanto que os leigos (a esmagadora maioria)
cuidariam de tarefas auxiliares, como lavagem, transporte e encaixe supervisionado
de peças. Como gravado em meu relatório de habilidades, tinham
conhecimento do meu antigo emprego como mecânico aeronáutico. Destarte
fui encarregado da manutenção de um enorme rebocador aéreo,
nada mais nada menos que uma grotesca velharia caindo aos pedaços. Nem
sabia por onde começar. Teria como auxiliares doze criaturas dos mais
variados aspectos e procedências. Um punhado da corja adrobana.
Não é preciso dizer que minha mente estava totalmente voltada
para Dibnus. Revolvia-me intimamente com o que havia ocorrido no dia anterior,
realizando a minha tarefa mais por instinto prático que por atenção.
O que o levara a correr um risco tão grande? Por que eu? Havia algo de
especial na minha pessoa? Quem diabos era aquele sujeitinho? Estaria ele por
ali? Esta última indagação bateu forte, fazendo com que
eu desesperadamente corresse os olhos em volta, tentando distinguir sua figura
esquisita em meio ao fervilhar silencioso e atordoado que se espraiava por todo
o estacionamento. Sim, haveria de estar por ali, afinal de contas pertencia
ao mesmo setor que eu. Dibnus, meu inesperado e obsessivo tormento, era um daqueles
milhares de infratores diante de meus olhos...
Não acredito em milagres, destino, ou coisas do tipo. Em Adrobah, só
há espaço para o ceticismo, o vazio, a retumbante bordoada cotidiana
de nossa realidade. É o que nos tem provado a desgraça inalterada
da recente história desse planeta. Desse modo, desde que desviara a atenção
de minha tarefa para olhar o movimento silencioso do pátio, à
procura de Dibnus, eu não esperava nada mais que obter uma sorte ocasional
e encontrá-lo: pura probabilidade. Contudo, o que sobreveio a partir
de então abalou consideravelmente meus conceitos à cerca de haver
ou não um propósito maior em nossa miserável existência.
Pois naquele mesmo momento alguém se lançou violentamente contra
o meu corpo, envolvendo-me em seus membros feito um filho que se vê forçosamente
obrigado a separar-se da mãe. Rolamos no chão e eu senti que algo
pontiagudo era inserido dolorosamente em meu abdômen. Desesperadamente
atordoado por aquele ataque súbito, debati-me ao máximo no intuito
de reconhecer o ofensor. Mas, antes que eu conseguisse qualquer coisa, o sujeito
imobilizou-me no solo e, pondo-me face a face consigo, emitiu um ruído
gutural que posteriormente vim reconhecer como a tentativa desgraçada
de uma gargalhada.
Era Dibnus.
Nos meus tempos de criança, minha mãe levava-me ao Parque Termal
de Elva. Porém, o que eu apreciava mesmo ali não eram as fontes
de água medicinal. Havia uma pequena alameda silvestre, um tipo de túnel
verde que subia sinuosamente em torno de uma elevação rochosa,
até um ponto misterioso nas entranhas da mata. Enquanto mamãe
desmaiava gostosamente nas águas, eu escapava pelas veredas umbrosas
daquele duto natural. Em certo ponto, onde a floresta parecia querer adensar-se
mais, surgia inesperadamente sob meus pés aquela revelação:
um grandioso vale rochoso aparentemente virgem, espalhando-se de modo labiríntico
por toda a consumação do horizonte. Tudo eram então morros
chapados, amarelados, que sob a luz crepuscular disfarçavam-se em enormes
monstros azul-grená. Ali, bêbado da imagem, eu perdia-me do mundo
conhecido.
Era esse fantasmagórico refúgio que eu buscava insanamente em
minhas lembranças, então, como alento à desgraça
que desabava sobre meus ombros na Ilha infernal. Ainda não estava em
condições de compreender o ambiente em que me encontrava, contudo
minha primeira impressão entorpecida de sangue e dor era a de um compartimento
circular, de uns dois metros quadrados, cujo teto consumava-se numa espécie
de formação oval. Todo aquele antro fechava-se em concreto azulado
e rígido, havendo como respiradouro somente as frestas ínfimas
da estreita porta metálica e o espaço de uma janelinha também
ovóide, não maior que uma cabeça, por onde a luz anêmica
de um sol ignorante penetrava tristemente. Minha carcaça, alquebrada,
jazia esparramada junto à parede. Os guardas estavam famintos de violência
naquele pátio e não pouparam de seus recursos sobre Dibnus e eu.
Dibnus...
Só então, como que desperto por um choque, pude perceber que havia
mais alguém na cela. A luz era terrivelmente fraca, mas eu pude distinguir
um montículo humano enroscado em si mesmo, bem à minha frente.
Estava imóvel. Desesperado com uma hipótese, dei de movimentar-me
em sua direção. Logo pude constatar que havia fraturado a perna
esquerda, algumas costelas e dois ou três dedos das minhas mãos,
além de haver perdido uma quantia incerta dos dentes. Feito um verme,
arrastei-me ao encontro daquele outro, gemendo horrivelmente com meus ferimentos,
sentindo o gosto travoso de meu próprio sangue inundar mais e mais a
minha boca. Como que percorrendo a distância de um mundo, finalmente encostei-me
sobre os ombros daquele estranho. Respirava fracamente e seu corpo inteiro queimava
numa febre hedionda... Todavia, sentir-lhe o contato vivo, receber daquela carne
alheia o calor de que fora privado me fez estremecer profundamente. Desencavei
seu rosto do peito arfante e confirmei minhas suspeitas. Se o plano de Dibnus
era de algum modo aproximar-se de mim, então o miserável havia
conseguido.
Qualquer prisioneiro da Ilha Mouca sabia que, de uma maneira ou outra, qualquer
infeliz que fosse arrastado para a cela de teto oval estava sumariamente condenado
à execução. Não seria diferente conosco. Por isso
não se importaram em nos deixar no mesmo compartimento, tentativa sórdida
de uma piada cruel para nossas últimas horas de vida. Mas não
foi bem assim.
Um dos olhos de Dibnus estava inutilizado, enquanto o outro me fitava atentamente.
Dizia coisas. Seu estado físico era muito mais lamentável que
o meu. No entanto, seu corpo inteiro parecia fervilhar de um ânimo impossível.
Todo ele era palavras, frases, sentido. Agarrava meus cabelos, empastelando-os
com seu sangue. Nossos corpos, abatidos e trêmulos, comprimiam-se como
um só. Não, eu não estava sozinho, não tinha sido
apartado do mundo por uma barreira qualquer de solidão em que apenas
a minha pessoa existia, sendo tudo o mais delírio. O contato com aquela
carne irmã, sujeita ao mesmo que eu, fazia-me repentinamente crer. Dibnus
sabia disso o tempo inteiro... aquele desgraçado! Sabia de tudo desde
o comboio, quando se fez de invisível aos meus olhos. Talvez tenha me
escolhido ali, por um motivo que eu nunca descobri. Agora, naquela cela, contando
os últimos instantes de nossas vidas, havia tanto que saber um do outro.
Sentia (tenho convicção que Dibnus também) aquela euforia
juvenil que atiça os corações em novo contato, perdidos
na ansiedade de inteirar-se, trazer para si um universo alheio, incógnito.
O tempo corria e eu sentia como se houvesse começado a viver ali.
Com as cordas vocais inutilizadas, a nossa linguagem construía-se pelo
corpo: palavras agrupando-se no intervalo dos dedos, escorregando pelos olhos,
dançando frenéticas nas palmas dos pés, revoluteando entre
as dobras dos joelhos, viajando de um para o outro, entendendo-se nas mãos,
nas caretas, nos sons. Desvendamos um reduto onde as palavras convencionais
não podem estar. Ali não cabem a voz, os fonemas, o barulho do
entendimento. Esse é o espaço abstrato para a comunhão
das almas, o refúgio último onde se compactuam as semelhanças.
Nesse esconderijo o mundo inteiro esfumaça, perde importância,
havendo espaço apenas para um que tacitamente diz e outro que tacitamente
ouve.
Para além da dor rascante, do sangue vívido, da consciência
de uma morte premente, Dibnus e eu havíamos estacionado naquela dimensão,
alheios, resplandecentes de uma luminescência dual que nos tornava inatingíveis.
Dizíamos coisas...
Destarte, quando grudaram em nossa pele o adesivo envenenado, trazendo-nos o
branco frio da inexistência, já não fazia diferença.
Nossos algozes, ao nos proporcionar a proximidade física naquelas últimas
horas, haviam nos dado um presente acima de sua compreensão. Em vez da
morte, nosso último pensamento foi sobre o quanto nos preenchia uma sensação
gorda de vida.
Mais tarde, quando um dos guardas ia fechar meu corpo no compartimento de incineração,
encontrou cravado na fenda entre dois dentes um pedaço pontiagudo de
metal. Era o mesmo fragmento com que Dibnus ferira-me no pátio. Eu mesmo
o havia alojado ali, como um presente querido. Entretanto, não foi essa
descoberta de última hora que tanto sobressaltou aquele oficial, mas
um detalhe absurdamente inusitado para a situação. Riscado de
maneira inexplicável sobre aquele objeto, na caligrafia inconfundível
de Dibnus, lia-se este antiquíssimo provérbio Adrobano:
"Como a água constante é para a rocha
Assim é a voz que chega a um ouvido irmão."