Concreto armado. Vertigem. Um fosso imenso e desnudo. Vão. Vento. Vidro
grosso e polido. Temperado. Vergalhões entranhados protegendo. Cimento.
Massa corrida. Tinta pva. Fiações elétricas como veias
mortíferas. Vidro fino das lâmpadas. Colunas. Portas. Tábuas
e corrimões. Escadas. Fosso. Cabos de aço musculares. Horizontal
menos que vertical. Garagem. Vinte e três andares. Terraço.
Eu.
Nas minhas vísceras milhões de outras coisas importadas do mundo.
Maremoto de coisas. Pequenas, médias e grandes. Em todo o formato possível
das coisas.
Coisas.
E a gente que as carrega e ama.
Dentro de mim.
Movimento eterno em todas as direções. Cima-baixo-lados. Um mar
seco e inquieto. Rumoroso. Por vezes latejante.
Em mim.
Dia 14 de março de 2006 uma terça-feira de sol às 15h21min,
segundo o relógio da portaria
Meu corpo imenso lateja dourado. Olho sempre para baixo porque a vertigem
do céu com nuvens passando passando me deixa tonto.
Abaixo pessoas cruzam para a indefinição. Em carros outros veículos
ou a pé. Fixo-me no vendedor de churros mascando. Fixo-me com os olhos
do primeiro andar. Os de cima são para os outros edifícios e suas
janelas: para mais tarde. O vendedor de churros olha para o nada como se houvesse,
mascando espera. A gente que passa é seu alheio. Seu outro estado quando
for de interesse, de negócios. Agora é só a gente que passa.
Masca um tanto e cospe massinha branca, já sem vida, na vala ressequida.
Tédio que contagia.
Dia 21 de agosto de 1999 sábado 01h54min
Dois ébrios resolveram surrar-se em meu beco. A garrafa de um deles
espocou na minha parede deixando um líquido negro e odorífico
como aranha esmagada. Os vidros centenas. Socavam-se sem muita certeza, errando
mais que atingindo. "filho da puta... te mato..." Observei-os de um
quarto de serviço, meio sem jeito, mal focado. Mas seu cheiro impregnava
aquele ambiente, etílico-soporífero. Com o tempo arrefeceram,
os membros ofensores exauriram-se. Deixaram de mão. Um deles, o baixo
atarracado, quase dormia de embriaguês. Partiram lado a lado como velhos
cães da noite, imiscuídos na paisagem, na lassidão daquele
instante esquecível.
Dia 24 de dezembro de 2005 outro sábado 10h01min véspera de
natal (mais um)
A rua inteira cheira a gente. E chove quase penugem de água sobre a
cabeça de todos.
Natal é sempre assim. Manhãs brancas e complicadas. Muita criança
e sacola, caixa, plástico, coisas de novo. À vezes confundo uma
garotinha bem arrumada com uma boneca nova, com um presente. Parecem sintéticos
aqueles rostinhos arredondados e róseos. Seguram as mãos de suas
progenitoras e vão, balançantes, como pequeninos bibelôs
de exposição. Em minha calçada centenas se empurram a cada
segundo, indo. Muitos entram nas lojas da proximidade. Na sapataria de toldo
azulado com vidros limpos. Na livraria recém inaugurada da esquina a
oeste. No supermercado de duas casas abaixo, branco feito o céu deste
horário. As pessoas, cada vez mais em movimento, confundem-se com as
portas, os postes de luz, os veículos que de vez em quando as cobrem
o corpo pequeno. Por isso vivo as confundindo às coisas, ao mar de objetos
que fervilha para onde quer que eu olhe (seco e inquieto). Tem dias em que chego
a pensar que esta minha vista não vai ter mais espaço para nada,
daqui a algum tempo. Que os lugares vagos, por onde somente o ar, a chuva e
os pássaros errantes passeiam dentro em pouco serão soterrados
de mais e mais seres humanos e suas criações. Eu mesmo me sinto
um entulho, um empecilho grotesco enfiado bem no meio da cidade. Tenho horas
de perfeito remorso, arrependimento de ter sido projetado, financiado e erguido
um dia. Minha consciência carrega todas as minhas toneladas em uma culpa
que sei, não é minha, mas com a qual compartilho pelo simples
fato de querer desesperadamente existir.
O natal ajuda nesta melancolia. Tenho centenas de olhos voltados para os meus
quatro cantos. Não há como fugir. Não há como eu
não me dar conta da maldita desconstrução interior a que
estamos todos sujeitos, carne, osso, metal, vidro, madeira, eletricidade e plástico.
O burburinho que ouço é de algazarra, de celebração.
Mas tudo penosamente carregado por uma tradição a muito rasurada,
desperdiçada no tempo e na velocidade da euforia barata.
Dia 01 de maio de 1994 não lembro o dia da semana nem a hora só
lembro que havia pouquíssima gente nas ruas
Estranha-me esse vazio. Silêncio enorme que sobe do asfalto e das calçadas
como bafo quente de ar. Nenhum carro, grande ou pequeno; nenhuma pessoa. Nada.
Só essa distância evidente que os caminhos deixam escapar quando
repousam de movimento. O pisca-pisca dos semáforos: inúteis. Dentro
de mim quase a mesma coisa. Tudo dorme ou se espreguiça sem pressa. O
mundo como que cochila. Camas desarrumadas, sapatos por todo canto, vozes murmurando,
cães, gatos, roedores e minúsculas aves enroscadas em si mesmas,
imóveis. Elevador estático. Portas em desuso. O piso ainda sujo
do pó e do pequeno lixo do dia anterior. Plantas por regar. Tapetes tortos.
Louça imunda nas pias, vasos sanitários fedendo.
Talvez porque eu seja um jovem, de tinta ainda intacta, é que me impressiono
com esse silêncio. As outras construções daqui, mais antigas
do que eu, certamente que nem notam mais as peculiaridades a que o quarteirão
está sujeito. Suas fachadas parecem, porém, muito mais abandonadas
neste momento. Posso ver fantasmas através dos vidros e dos vãos
das janelas sombrias.
Esses prédios de algum modo sentem, intimamente, tal solidão.
Só que são durões. Velhos teimosos e enregelados desde
o alicerce. Tenho amor platônico pelo prédio à minha esquerda,
um residencial monótono, antiquado, abrigo de uma gente quieta, que quase
nunca põe o rosto nas janelas. Não sei dizer por que o amo. Talvez
por ter esse ar de morto vivo, como que pendendo para o solo. Cairá um
dia? Seu desmoronamento por certo não assombraria o quarteirão.
Que morressem centenas, que fumaça, escombros e destruição
se alastrassem por tudo. Sua essência é de coisa já entregue.
Sem volta. Sem alarde.
Amo-o com os olhos dos banheiros, que são os que focalizam melhor.
Hoje, aproveitando essa calmaria, posso prestar mais atenção às
calçadas, às valas, aos sacos de lixo que se deixam ver de dentro
dos latões. Noto mesmo um papel que esvoaça e que se perde no
interior de um buraco em obras. De repente, é como se eu nunca houvesse
visto esse pedaço de avenida como agora o vejo. Desnudo. Preparado. Desço
então, aflito de emoção e novidade, olho por olho, andar
por andar, o meu próprio corpo. Reproduzo um fictício suicida
(nunca tivemos um neste quarteirão. Bem que eu queria) que desliza pelo
ar como um pardal. A calçada se aproxima numa velocidade incontrolável.
Quando menos espero, o corpo se estatela sobre os ladrilhos marrons da minha
entrada, quase tocando o velho porteiro Josafá que por ali fuma.
Josafá. Porventura o único elemento móvel que enxerguei
no quarteirão hoje -mal respira, é verdade, com seu cansaço
costumeiro. Um velho sem pescoço. De vez em quando me observa de cima
a baixo. Busca um olho, vê alguém, saúda. Cospe seu pigarro
no vaso sem planta do meu depósito, ou na calçada, quando ninguém
está por perto. Um dia chorou, trancado em meu banheiro de serviço.
Sem lágrimas, apenas soluçando grosso. Nunca pude saber o porquê.
Observo-o sugar seu cigarro com desenvoltura e prazer solitários. Perde
sua frágil atenção nas construções da frente.
Parece-se comigo agora... ao menos na maneira de imaginar fantasmas.
Dia 16 de fevereiro de 2000 a quarta-feira em que atropelaram o estudante
gordo 18h07min
Seu sangue pardo acho que saiu primeiro da boca. Coisa viva aquele sangue,
acompanhado logo mais por outros sangues vindos do crânio, da perna direita,
dos ouvidos, do nariz. Analisando do meu olho da porta de entrada, seu sangue
pareceu fluir da boca, escasso e concentrado. Sangue em forma de poça;
vazamento arredondado para os lados do garoto. Procuro imaginar como deve se
sentir o homem, sabendo-se um recipiente de líquidos, frágil demais
para a força do mundo. Quebram, espatifam, cortam, explodem fácil
demais. E o sangue escapa. O garoto vazando parece que está quase transbordando
de tanto sangue incontido em seu corpo obeso. Sinto-me aliviado. O garoto como
que fica mais vago, descongestionado. Seu semblante parece, então, tranquilo.
Sangue saindo, peso saindo.
Recolhem-no como uma pluma, minutos depois. O sangue é lavado do asfalto
por homens de uniforme engraçado.
Fico com a impressão de leveza por muito tempo ainda. Talvez por ser
um prédio oco, cheio de apartamentos e saídas.
Estranho.
Dia 11 de dezembro de 2003 quinta-feira começando chuvosa 06h08min
Olho para dentro de mim. Inverto minhas retinas de mentira e reparo no meu
mundo.
Será que essas pessoas não sentem aflição? A morte
lhes escapa tão fácil. Esquecem a constante iminência do
seu fim do mesmo modo que respiram. E como se acabam por aí (vejo nas
TVs), aos montes e de toda forma. Outro dia um estudante morreu esmagado por
um caminhão de cervejas bem na minha frente. Sua carne foi facilmente
rasgada, com seu líquido saindo aos montes. Não custou nada a
perda de sua vida. Nada.
Posso durar décadas. Meus antepassados mantinham-se por muito mais tempo,
impassíveis ao tempo. Uns ainda perduram até hoje, ásperos,
negros, desabitados, mas firmes. Minha matéria prima é mais precária
e descartável. Sou corroído aos poucos pelos gases químicos
a cidade. Talvez tenha a mesma média de vida dessa gente. Mas sou mais
difícil de ser destruído.
Bem mais difícil.
O morador do meu apartamento nº113 tosse a todo instante. Vejo que amarela
dia após dia, como se mofasse. Poderia matá-lo com um simples
choque elétrico, ou com um lustre que caísse na cabeça.
Mora sozinho, fuma descontroladamente e em todo lugar -mesmo quando come. Tenho
a impressão de que apressa o seu fim. Talvez fizesse o mesmo se estivesse
em seu lugar. Talvez, se fosse humano, não durasse nada.
O céu hoje está escuso. Começou a quinta-feira numa garoazinha
impertinente. Molha-me aos poucos, sem ansiedade. Penso para dentro sempre que
o dia está assim. Desde a madrugada que venho bisbilhotando os apartamentos.
Na sua ampla maioria, dormem. Alguns se unem, nus; outros perambulam sombrios,
sem saber direito para onde vão. Não há muito com o que
se interessar. Mas ainda assim eu reluto nessa inutilidade, ocioso e apático.
Não tenho muito o que dizer...
Dia 13 de junho de 1997 sexta-feira são 01h33min, soturnamente um
poeta despido escreve versos na minha parede
Ele tinha acabado de sorvê-la. Os cheiros todos e o corpo. A mulher
resplandecia então uma luz baça, atirada no leito, entorpecida
num sono profundo. Dona do apartamento. Ele, um hóspede de três
dias, próximo demais para não tê-la. Agora um homem como
aqueles que vi no beco, dias atrás, após consumirem uns fumos
escuros e odoríficos. Satisfeito, pacífico.
Nu, olha pela janela. A cidade que vê deve ser a mesma que a minha, amarelada
e abatida. É um olho através do meu. Mas um olho de outro instante,
somente dele, porque encara a noite de um modo muito deprimente. Fita os pequenos
movimentos. Um casal torpe que se esbarra para qualquer destino, um chinês
robusto -dono do hotel vizinho- que respira o ar gelado, talvez tapeando o sono,
o sinalizador da torre de comunicação, uns bairros acima, a lua
magrela, um morcego. Talvez o sujeito pense o mesmo que eu, que a noite neste
lugar é uma espécie de outro mundo, de dimensão terráquea
apartada da vida diurna. Um mundo melhor para sermos o que somos.
Cheio quem sabe disso, o homem pegou dum toco de lápis que achou no criado
mudo e rabiscou o que me pareceu um poema, na parede próxima à
janela. Letras grossas, quase borradas. Poema feito sem demora, sem cuidado,
sem o cuidado com que vejo a moça do 609 escrever. Tentou o poeta esboçar
um retrato daquela noite, mas penso que lhe escapou. Mesmo no marasmo em que
o instante mergulhava, era escorregadio demais. O poema apenas tangenciou qualquer
detalhe, qualquer fagulha. Não prendeu nada em seu todo, como eu notei
que o poeta desejava.
Infeliz dele, que confiou naquela sensação (já a tive tantas
e tantas vezes, mas da mesma forma fortuita). Contudo, vejo que ele também
é experiente neste caso: mal se desconcerta. Vai dormir, pondo-se inteiro
debaixo do lençol, de bruços e com o rosto colado na parede.
Recita mentalmente o poema? Não posso saber. Imóvel, dá
a impressão de ter imediatamente adormecido. O lápis fica esquecido
no parapeito. 01h56min.
Coisa alguma nesta cidade fica.
Dia 18 de março de 1996 domingo de blecaute mais ou menos 20h00min
Espero que os meninos parem logo com o barulho nas escadas. Perturba o meu
pensamento num dia diferente como este. Meu primeiro blecaute noturno. Até
então tive dois. No período matinal. Nada demais.
Agora sim, tudo desce num novo prisma.
As estrelas parecem mais próximas, ouço a rua, a voz limpa nas
pessoas, o farol agora potente dos automóveis, velas e lanternas, vultos
e impressões -muito mais impressões que qualquer outra coisa.
Isto me atrai. Apuro meus diversos olhos no mistério que se me apresenta.
Vejo coisas, ouço ruídos, espreito, investigo, duvido, engano-me,
receio, excito-me, não sei... Será um gato o que cai pesadamente
sobre os sacos de lixo do beco? Foi um velho quem tossiu no corredor do 7º
andar, oculto na penumbra? Terá sido gente a tagarelar e rir alto no
interior do apartamento 501? Acho que vi um rato debaixo da planta do térreo.
Imagino que foi um pai de família quem cochichou para o filho não
ter medo do escuro. Alguém girou uma maçaneta. Um cão latiu
por trás do portão da construtora da esquina leste. Foi ou não
foi uma motocicleta que rosnou mais adiante, a uns dois quarteirões?
Onde anda o porteiro Josafá?
E este silêncio outro! Honesto, tufão. Engole mesmo ao som.
Não muito, no horizonte, um aviso de eletricidade como incêndio
brando. Outra hora disto aqui, envolto de incerteza.
Ironicamente, é este um dos meus momentos mais nítidos -menos
pelos garotos, irritantes, que agora atravessam os corredores numa gritaria
vulgar e incoerente com o resto da noite.
Dia 04 de setembro de 2006 segunda-feira 09h54min sonho acordado (se é
que posso) enquanto lavam meus olhos
A cidade está embaçada e coberta de pequenos fios d'água.
A rua toda são gotículas, deslize molhado em passantes muros edificações.
De repente sabão, e tudo se mistura a bolhas e espuma branca. Refresco
a vista e nesse conforto me embalo numa digressãozinha à toa.
Se o mundo fosse torto? Torto mesmo. Coisa sem jeito que desse jeito, como se
tivesse sido amarrotado por umas mil mãos nervosas. Em forma de nervura,
vergalhão retorcido, raiz. Carros rodopiando com os pneus pensos e os
motoristas estrábicos de membros retorcidos. Um arranha-céu igualzinho
a uma peça de vestuário espremida e deixada assim. Toda a constituição
geográfica do mundo desorganizada, feita confusão física.
E eu idem, um prédio enroscado com o térreo voltado pra trás
e o último andar voltado pra cima. Os vidros dos olhos ondulados, refletindo
e enxergando como naquelas casas de espelhos dos parques de diversão.
Senhoras cabeçudas, moleques dedudos, anciãos extraordinariamente
corcundas, bundas lá pelas tantas, peitos tronchos, testas imensas, rostos
sem olhos; paredes molengas, toldos compridíssimos, andares engolidos,
postes de meio metro de altura, rua no nível do terceiro andar, carros
flutuantes ou enterrados no solo asfáltico, placas triangulares, semáforos
desengonçados.
Mas na verdade as coisas e a gente seriam mesmo tortas, eu as vendo de outro
modo tortas por causa dos vidros. Só de outro modo que não aquele
delas mesmas, desconjuntado...
Um jato de água me acorda. Desço dois andares para olhos já
enxutos todavia não tenho mais o domínio da situação.
Perdi-lhe. Volto ao andar de antes mas os homens da limpeza já se organizam
para o andar de cima. Persigo-lhes e espero que comecem. Molham meus olhos,
ensaboam, enxáguam, escalam. Inútil. Foi-se o fio da meada. Desço
a vista ao 1º andar. A rua fica mais próxima, quase nítida.
Detalhes do panorama são captados. Retidão e normalidade. Tudo
no seu lugar, sem dobradura ou desalinho que não sejam os de sempre.
Singro até o 23º, tête-à-tête com as outras construções.
Olho o sol perseguido de nuvens. Olho a cidade por cima. Tudo no lugar, costumaz,
desgastado, o mesmo.
Volto do sonho com boa parte dos olhos lavados, tirados o pó e a merda
de pássaro. Mas foi o processo que me enfeitiçou, trouxe um mundo
novo em folha, rasurado e cheio de erros.
Lindo mundo cheio de erros.