A Garganta da Serpente
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Fantasmas?

(Andrios S. Moreira)

Caro colega, gostaria de poder continuar com nossa magnífica empreitada sobre o estudo dos modelos arquitetônicos do século passado. Realmente, a luxuosidade misturada ao "concreto bruto" construído a mais de 100 anos atrás, nos traz revelações interessantes e, por vezes, assustadoras. Porém, não poderei mais continuar no projeto, pois agora nem eu mesmo sei o que farei de minha vida. Algo de extraordinário aconteceu comigo. Algo que, aos olhos das pessoas normais, pareceria um frenesi neurótica ou algum tipo de "viagem" proporcionada por algumas doses elevadas de alucinógenos.

Por certo, tenho que minha mente está na mais sã das realidades, o que não quer dizer que o que ví não deixe de ser verdade. Longe disso, aquilo é real e lhe digo desde já - MANTENHA-SE LONGE DAQUELA CASA, não ouse atravessar as portas para dentro daquela mansão. O motivo? Por isso lhe escrevo esta carta.

Amigo, saiba que agora estou seguro, mas não estou no lugar que gostaria, pois na verdade meu desejo era de estar aí, desfrutando da calmaria de uma cidade pequena, e em sua companhia, discutindo os mais variados modelos arquitetônicos modernos. Porém estou internado em um hospital psiquiátrico aqui na metade norte do estado, não lembro o nome da cidade, já que fui submetido a uma série de exames e medicação para dormir e, por isso, vários fatores a mim revelados sobre essa clínica, estão completamente ausentes de minha memória. Segundo o médico, eu recusava-me a dormir, não queria ao menos fechar os olhos. Logo que acordei, não lembrava de como vim parar aqui, mas pouco a pouco as terríveis lembranças começaram a atormentar-me e, inevitavelmente, pus-me a escrever para tentar ao menos registrar os fatos, a fim de que essas lembranças não desapareçam, caso eu tenha uma nova perda de memória.

Calculo que, a esta hora, lendo essa carta, você deve estar preocupado para saber o que de fato aconteceu. Não se preocupe, eu lhe contarei no decorrer desta e, para confortá-lo, novamente digo que estou bastante seguro agora.

Mas as coisas foram difíceis, isso eu não posso negar. Relatarei todos os acontecimentos desde minha partida de Dom Pedrito até agora, porém não me preocuparei em descrever minuciosamente cada detalhe porque não sei quanto tempo mais tenho disponível até o médico vir. E eu odiaria Ter que deixar essa carta escrita pela metade.

Bem, como você sabe, parti de Dom Pedrito por volta das onze horas do dia 14 de dezembro de 2005, rumo a Porto Alegre, em uma noite um pouco quente. Isso realmente não era problema, pois o ônibus, é claro, estava equipado com ar condicionado.

Naquela noite, lembro-me de ter demorado a dormir, a paisagem noturna do campo banhada a luz do luar fazia-me manter os olhos cravados no céu, bem como os buracos na estrada, arruinada pela má conservação. Após uns 45 minutos, pude ver as luzes de Bagé, então lembrei de cada detalhe sobre o que combinamos a fazer em nossos estudos. Pelo que sei, fui dormir perto do trevo de acesso a Caçapava, pois não vi nem ao menos o posto da polícia rodoviária federal, que fica a alguns metros antes do trevo. Por volta das cinco e quinze da manhã, chegamos na rodoviária de Porto Alegre. No período em que esperei clarear para tomar o trem até São Leopoldo, fiquei o máximo possível junto a aglomeração de pessoas, pois sei que a violência da capital proporciona muitos desafios aos visitantes. Também sabia que a cidade da qual eu me dirigia, exigia também muito cuidado quanto a esse assunto. Quando os raios de sol já clareavam o suficiente para que as pessoas começassem a perambular pelas ruas, dirigi-me então a linha de trem. Não entrarei em mais detalhes sobre a viagem rápida naquela linha, pois como disse, não quero relatar minuciosamente, corro contra o tempo.

Chegando em São Leopoldo, tomei um táxi até a casa que me foi destinado a fazer amostras visuais. Realmente, fiquei impressionado com a arquitetura antiga da cidade, no caminho até a casa, tirei algumas fotos com a câmera digital, obtendo um bom ângulo das construções de nosso interesse. Prometo que, quando receber de volta meu material, enviarei outra carta anexando as fotos para você observar melhor. Quando chegamos a casa destinada, tive a estranha impressão de que não gostaria do lugar. O que não posso descartar é a belíssima fachada e do enorme jardim que circundava toda a propriedade. A alvenaria detalhada colaborava muito com os contornos e ângulos do teto. O único ponto negativo era o desgaste pelo tempo, pois acho que a pintura nunca foi restaurada e a grama do jardim, bem como os arbustos não haviam sido aparados fazia alguns anos.

Fui recebido no lugar por Rodrigues, que dizia ser o herdeiro daquela casa. Segundo ele, seu pai era o mordomo do verdadeiro dono, proprietário de uma das primeiras fábricas que a cidade concebera. Esse homem tinha um imenso capital financeiro, porém seus compromissos não o permitiam ao menos que arranjasse uma esposa para acompanhá-lo. Sempre andava a procura de algo para fazer e muitas vezes permanecia longe de casa, deixando apenas seu mordomo, o pai de Rodrigues, responsável pela mansão. A este cabia a tarefa de comandar a leva de empregados, tais como domésticos, jardineiros e reparadores, mas ao final do dia, todos saiam da propriedade, pois eram contratados pelas oito horas diárias, com a exceção do pai de Rodrigues, que ficava como caseiro. O dono da propriedade, com o passar do tempo, foi morrendo aos poucos, vítima de uma doença desconhecida. A única coisa que os médicos diziam é que ele perdia energia corporal constantemente de uma forma estranha e preocupante. O pai de Rodrigues, por sua vez, começou uma breve relação com uma das domésticas da casa, que viria a ser sua mãe. Algum tempo depois da morte do Patrão, seu pai recebeu, como único merecedor, a imensa mansão de herança, pelos excelentes serviços prestados durante anos. O restante, ao que parece, foi repartido entre alguns sobrinhos. Mas, como por golpe do destino, a mãe de Rodrigues veio a falecer dois anos depois do antigo dono, vítima da mesma doença espectral desconhecida.

Porém o mais revelador vem agora, Rodrigues falou-me que não ficaríamos naquela casa depois do pôr do sol, pois lá aconteciam alguns fenômenos sobrenaturais que ele assegurou-me de que não gostaria de presenciar. Embora eu tenha ficado com receio, confesso que também ficara com curiosidade sobre esses "fenômenos". Ao entrar em mais detalhes sobre esses acontecimentos, Rodrigues afirmou-me que a tempos a casa vem sido atormentada por fantasmas, e que sentia-se indecoroso dizer isso, pois poderia apostar aquela casa, se alguém conseguisse passar uma noite inteira lá dentro sem sair correndo porta a fora, com o coração saindo pela boca. Era de se estranhar a atitude daquele rapaz, pois ele poderia ganhar uma boa quantia em dinheiro, caso vendesse aquele imóvel. Como se adivinhasse, balançou a cabeça e disse que já havia pensado na oportunidade de vendê-la, porém saberia que teria enormes problemas com os tais fenômenos e que não tardaria para que os compradores reclamassem a suspensão do contrato de venda e a devolução da casa. Eu, como bom incrédulo, duvidei de tal história e pedi para conhecer o interior daquela velha mansão.

Na portada dupla, continham vários desenhos quase incompreensíveis. Salvo algumas poucas peças que pude discernir como sendo uma embarcação em alto mar. Mesmo sem entender muita coisa, a beleza daquela imagem talhada na grossa madeira dava um aspecto medieval, calculei que o antigo dono deveria ser descendente de alguma família europeia. Na imensa sala de recepção, pude ver os enormes tapetes de cor vinho que cobriam o piso todo. As magníficas poltronas grossamente almofadadas e a grande lareira, também adornada com várias imagens talhadas na chaminé, e as grandes janelas que cobriam quase toda a volta da enorme sala. Destaco também as imensas cortinas de um vermelho escuro apagado pelo tempo. O luxuoso lustre que pendia soberano no teto e um magnífico relógio de pêndulo, que há muito havia parado de fornecer as horas certas, visto a quantidade de teias de aranhas. As paredes eram revestidas de madeira até a metade, sendo a parte superior revestida de um bonito forro, do qual não pude saber na hora de que era feito. Não preciso falar da encantadora perfeição quanto aos adornos artísticos da arquitetura, que demonstrava uma inigualável criatividade por parte dos profissionais que nos antecederam. Bem a esquerda do cômodo, ficava a escadaria que levava ao andar superior e, embaixo dessa, uma porta dupla que levava a outra peça, pelo que pude ver, a cozinha. Era uma pena que não organizavam aquele ambiente, pois o grosso pó deixado pelo passar dos anos era o que incomodava. Quando Rodrigues me levou para passar por debaixo da escada, em direção a cozinha, ouvi alguns barulhos no andar superior. Não sei se Rodrigues ouviu e não quis me dizer ou não escutou mesmo, mas naquela hora pensei que poderiam ser ratos.

A cozinha também ostentava móveis de imenso luxo, uma mesa enorme para no mínimo 10 pessoas, também feita da melhor madeira que poderia encontrar-se naqueles velhos tempos, isso valia também para os balcões, a vidraçaria e as bases do forro. Nesse cômodo também havia uma imensa janela onde podia-se visualizar o grande jardim. Rodrigues me falava onde ficavam guardados as peças de vidro e mostrou-me uma dispensa ao lado da pia, mas meus olhos só davam atenção aos magníficos adornos e o remate artístico do lugar. Aqui, peguei novamente minha máquina digital e tirei a primeira foto no interior da residência, pois a cada canto que olhava, minha admiração aumentava, e meu desejo era de fotografar cada detalhe, porém minha máquina, embora digital, não é das mais modernas, e eu deveria economizar memória para os outros cômodos. Depois de mais uma olhadela geral na cozinha, voltamos para a sala de estar e subimos pela escadaria.

Enquanto subíamos, pude notar que até o suporte para mãos que ficava no lado direito da escada (o lado esquerdo era fixo na parede), continha adornos perfeitamente moldados e esculpidos nas bordas. Rodrigues percebeu minha admiração e falou-me que não havia registros do arquiteto e do engenheiro responsáveis pela criação daquela construção artística. Segundo seu pai, o patrão nunca havia revelado a ninguém o nome dos dois, mesmo para aqueles que, assim como eu, ficaram maravilhados com a belíssima performance, insistiam em perguntar. Rodrigues não soube explicar o porque, mas achava que aquilo deveria ser algum tipo de "altivez" do velho e que, em sua arrogância, não queria que ninguém construísse uma casa que se comparasse com a dele. Sim, essa era uma boa ideia, naquele momento, parecia perfeitamente plausível.

Já no andar superior, chegamos direto num corredor que percorria de um estremo ao outro das laterais da residência, fazendo uma curvatura arqueada para a frente, de forma que não podia-se enxergar as paredes do final de ambos os lados. Ao longo desse corredor, várias portas levavam a outros cômodos, e ali também tirei uma foto apenas do lado direito, pois a vista, daquele local, era a mesma, indiferente para a direção que se olhasse. No teto, havia um bojo luminário de 2 em 2 metros, e esse ficava a mais ou menos 2 metros e meio do piso. Essa curva na verdade, obedecia ao formato imperfeitamente circular da parte de trás da casa, pois algumas peças adicionais faziam as variações.

Nas várias portas que ficavam ao longo do corredor, várias levavam aos aposentos ou peças inferiores e, quando chegamos no aposento do antigo dono da casa, tirei outra foto de duma visão geral, pois segundo Rodrigues, ali estava tudo do mesmo jeito desde a morte do velho. Como as fotos que tirei eram de qualidade máxima (para preservar cada riqueza de detalhe), algumas poucas fotos mais foram tiradas e fiquei sem espaço. Logo após, disse a Rodrigues minha intenção de sair da casa, pois estava impossibilitado de tirar mais fotos. Nesse intervalo, enquanto descíamos a escadaria, sei que ainda me é difícil acreditar, mas pude ouvir ruídos e vozes perfeitamente audíveis nos aposentos que acabamos de visitar e, embora ininteligíveis, era possível discernir um vocabulário, em uma língua desconhecida. Isso fez-me gelar os ossos, pois naquela maldita hora eu vi que meu "eu" incrédulo deixou de existir.

O mais apavorante porém foi aquelas vozes, vozes totalmente anormais, desconcertantes, estranhíssimas até para um caso sobrenatural como aquele. Pareciam um som de água borbulhante, mas ao mesmo tempo como ouvir um papel sendo amassado. Isso somado a percepção de que, naqueles sons mórbidos, era possível discernir uma espécie de "diálogo" entre alguma coisa de outro mundo, de outra dimensão talvez. Naquele momento, meu caro amigo, pude entender que fantasmas realmente existem, e os que habitam aquela casa com certeza estão lá com muito mais objetivos do que simplesmente "assombrar". No entanto, entre aquele turbilhão de vozes perturbadoras, pude entender apenas uma palavra, uma palavra que por hora não consigo lembrar de onde eu a li ou ouvi, mas que me é familiar. Narlto, Narnat, Nirl... Não consigo me lembrar, por mais força que faça.

Mas o pior estava por vir. Logo que saí dos portões da residência, pedi a Rodrigues que me indicasse o caminho onde eu pudesse acessar um computador para revelar as fotos e ele mesmo ofereceu-se para me levar. Por fim chegamos num daqueles "Cyber Cafés". Uma vez lá, fui para uma pequena sala reservada onde poderia, por fim, ver o resultado das fotos. Foi alí meu caro amigo, ali, olhando aquelas terríveis fotos, que pude perceber o tamanho do perigo que corri e que outras pessoas correrão, caso entrem naquela casa maldita. Lembra da cozinha que eu lhe descrevi? Lembra da foto geral que tirei do lugar? Sim, estaria perfeitamente normal, caso algumas coisas extremamente apavorantes não tivessem sido também reveladas naquelas fotos. Sim caro amigo, é difícil para mim acreditar, quem dera a você. Mas a verdade tem de ser dita. Não são fantasmas que assombram aquele lugar velho colega, não, longe disso, porque se fosse, talvez eu não ficasse tão alucinado depois de perceber o perigo eminente. É muito pior que isso, talvez eles estejam planejando alguma coisa aterradora contra nós. Sim, eles são alienígenas, extraterrestres dos mais obscuros cantos do universo que são, aos nossos olhos, invisíveis andando pelos aposentos daquele lugar, mas, perceptíveis na visão de uma máquina fotográfica digital. Sinto repugnância em descreve-los, mas vou tentar fazer isso sem ter outro colapso...

Eles não têm pele como nós, ou melhor, tem, mas não como nós. Eles a usam como uma espécie de veste, porque dá para enxergar perfeitamente fendas, como cortes anatômicos horrivelmente costurados com pedaços da própria pele. Um destaque para o peito, onde há uma fenda com a presença de dentes, como uma boca e vários tentáculos que saem dela, como línguas e lá dentro, pode-se enxergar nitidamente 3 pares de olhos, olhos que nos observavam perversamente enquanto caminhávamos atônitos ante o perigo próximo. Sua cabeça, embora um pouco maior, tinha presença de olhos, porém esses sem os globos oculares, como uma mera representação, estranhamente deformados. O mesmo vale para a boca, que é esticada de um lado a outro daquela face infernal. As mão contém apenas 4 dedos, e esses são tão compridos e finos que assemelham-se também a tentáculos. As pernas são parecidas com a de um animal licantropo, porém os pés têm apenas 3 dedos, que começam logo abaixo do joelho e percorrem o restante da perna até o chão. São as criaturas mais aterradoras que já vi. Dei graças aos céus por não ter levado comigo a velha máquina polaroid de meu pai, pois talvez lá dentro, o choque teria sido maior. Entenda amigo que essas criaturas tem uma espécie de forma humanóide, porém incrivelmente deforme. Eram eles que conversavam enquanto nós estávamos caminhando, eles, eram deles aquelas terríveis vozes. Tenho que parar de pensar neles, mas é impossível. Por hora, vou terminar de lhe contar como vim parar aqui.

Rodrigues e o balconista do Cyber café estranharam a minha demora e qual não foi a surpresa deles quando entraram, pois me viram com a cabeça caída para trás, com os olhos virados, a máquina desligada do computador, pendia em minhas mãos. Um ataque epiléptico eles devem ter concluído, pois não me conheciam. Depois disso, vim acordar aqui, de onde escrevo essa carta. Peço-te meu caro colega, que não reveles isso a ninguém por hora, pois devo sair daqui o quanto antes. E lembre-se, caso algum outro colega ou até mesmo você queira visitar aquela malévola residência, NÃO VÁ! FIQUE LONGE DAQUELA CASA, SE POSSÍVEL FIQUE LONGE DAQUELA CIDADE!

...

NIARLATOTEP!! SIM EU LEMBREI! NIARLATOTEP! Deve ser assim que se escreve, eu não sei, mas é exatamente essa palavra que eles murmuraram em seu macabro diálogo, enquanto nós saíamos.

Espero que não fique preocupado quanto a mim meu amigo, quero que fales aí que sofri um acidente leve e que estou bem, e logo estarei devolta. Se algum parente quiser visitar-me, NÃO PERMITA! Eu sei que, se continuar agindo como se não soubesse de nada, eles vão me deixar sair daqui em pouco tempo. Daí veremos o que podemos fazer a respeito disso.

Rezo pela segurança de todos nós. Até mais...

Augusto D....

Ps: Niarlatotep.. essa palavra não me é estranha

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