A Garganta da Serpente
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A ordem dos mártires

(Andrios S. Moreira)

"Os poderosos podem matar uma, duas, até três rosas,
mas nunca deterão a primavera.
"
Ernesto Guevara de La Serna (1928 - 1967)

O que outrora fora um mundo caótico e desordenado, onde a injustiça perpetrava num regime forçadamente desumano, e que, agora, aquelas lembranças não passam de história (bem estudada, por sinal), de como a humanidade conseguiu alcançar a suprema pacificação e entendimento (é o que muitos chamam erroneamente de "paraíso"), em que todas as diferenças raciais ou sociais foram banidas das ideias populares. Onde cada qual sabe os seus limites, cada um exige o saber mais sobre todas as coisas (carregando em todo o seu ser, uma espécie de filosofia própria); enfim, terminamos por conquistar o que antes fora considerado "impossível" (lembro-me perfeitamente de quando meu pai recalcitrava em dizer que todas as ideias libertárias não passavam de pura utopia); se bem que, depois de toda a difícil transição, devemos abertamente esse feitio a uma ordem que trabalhava sigilosa e solitária para o bem de todos. Escrever sobre os métodos que essa ordem usou para conquistar a referida "utopia" seria um tanto injusto (cabe-me, por obséquio, dizer que ninguém foi assassinado, ninguém além das ideias totalitárias). O que vou contar é o que realmente interessará a todos. Quem foram e como conseguiram modificar um incalculável número de mentes obscuras a evoluírem e portarem suas próprias luzes.

Lembro-me que, ainda jovem, residia em um vilarejo na fronteira do Brasil com o Uruguai. Em uma cidade vizinha viviam alguns homens considerados "antiquados" pelos moradores locais. Esses homens pareciam estar realmente atrasados quanto à cultura contemporânea. Enquanto os jovens dançavam ao som de músicas eletrônica ou escutavam canções de teor irrisório quanto ao fator inteligência, esses homens preferiam (tanto em suas reuniões quanto particularmente) os velhos hinos hippies dos anos sessenta. Estes mesmos vestiam-se como aquela época; seus costumes condiziam aos ícones subculturais, obtendo apenas olhares apreensivos de seus conterrâneos.

Um fato que se comenta entre todos é que não despertavam o interesse de mulher alguma; os poucos amigos e amigas que tinham, ou eram crentes religiosos aficionados ou, simplesmente, não apoiavam seus costumes (as crianças ficavam com as carinhas duvidosas enquanto as chamas do fogão à lenha iluminavam irregularmente suas faces curiosas, quando lhes era revelada essa história). O fato é que, apesar de todas essas adversidades, os mártires encontravam tempo para se reunirem e discutir sobre os problemas humanos de sua época. Muito embora suas reuniões não costumassem ser muito seguidas, toda a vez que eles se reuniam, novas ideias libertárias iam emergindo (isso tudo longe dos olhos do resto da humanidade). Em suas pequenas assembleias, não apenas se discutiam problemas, soluções e ideias, como também realizavam experiências mentais com cada participante. Tais experiências consistiam em comunicação mental, estudos simbológicos, observações e ensaios astronômicos, além de muito conhecimento sobre a "vita post mortem". Ninguém, absolutamente ninguém tomava conhecimento de suas reuniões (como toda a ordem mística ou especulativa). Sumariamente, eles sustentavam a hipótese de que, quanto mais membros aderissem à ordem, pequenas fagulhas de caos colocariam tudo a perder. Entraram em vários acordos, ao passo que muitos eram desfeitos; formulavam diversas teorias, enquanto as velhas eram descartadas; realizavam experiências que comprovavam respostas e desmascaravam enigmas; tudo isso era feito nas assembleias dos mártires.

Alguns dias atrás, um jovem me perguntou o porquê da expressão "mártir". Minha resposta teria de ser objetiva, muito embora estivesse ciente de que não era de todo fácil explicar o que aconteceu para que a ordem fosse assim denominada. Doravante, tomarei a iniciativa de esclarecer.

Nenhum dos homens que participavam da ordem nasceu em berço de ouro. Eram conscientes de sua classe social, mesmo antes de atingirem a juventude. Eram obrigados a trocar horas de diversão por trabalho ainda na infância, e severamente castigados se cometessem algum erro mais grave. Na adolescência, se ocupavam com assuntos jamais relacionados às suas idades. Enquanto outros jovens debruçavam-se em festas ou diversões caras, eles retiravam livros da biblioteca pública ou gastavam uma parte de suas encolhidas verbas em periódicos científicos, ou livros escolhidos nos chamados "sebos" (uma forma mais fácil que dispunham para adquirir volumes, visto que nessas espécies de comércio vendiam obras por valores condizentes com a situação financeira dos mártires). Eram banidos da juventude contemporânea pelas suas preferências culturais, onde os garotos falavam de carros modernos e disputas fajutas; e as garotas, usavam essa mesma disputa, para ver qual se vestia melhor. Quem não estivesse nesse círculo deplorável era incomunicavelmente afastado, condenado a varar solitário até que deixasse o lugar e não mais aparecesse nas ruas, caso contrário seriam vítimas de injúrias. Todo esse tratamento fora absorvido pelos mártires. Cada um deles passou por essas provações ou algo pior, mas suas mentes já estavam muito além, e não se importavam com esse método "pária", ao contrário, extraíam o máximo proveito das cabeças pequenas que os escorraçavam. Resumindo todas as diferenças ideológicas, quem deveria ser julgado era o grupo dos jovens consumistas. De fato, posteriormente, o foram.

Naqueles primeiros anos do século XXI, em que os ocultistas diziam tratar-se do início da era de aquário, as barbaridades eram diversas. Já não se dormia tranquilo à noite, as florestas eram constantemente degradadas ao tempo que vários animais eram caçados e extintos; consideráveis litros de água potável eram poluídos; não havia mais espaço para todos; a lei de "olho por olho, dente po dente" imperava no que se diz respeito ao capitalismo. Apesar de incontáveis entidades que ajudavam a retrancar a corrida destrutiva, não eram páreos para o turbilhão de poderosos que nada mais visavam a não ser o lucro, independente de quantas vidas precisassem ceifar. Era imperativo dizer que a humanidade não mais existiria em sete décadas, e qualquer ideia de uma possível mudança nos acontecimentos, não passava de um mero sonho. Graças aos mártires, o curso dos fatos tomou um rumo mais humano. A primeira decisão permanente tomada pela ordem era que espalhariam um conhecimento mútuo entre algumas pessoas mais inclinadas à mudança. Isso seria feito sem que nenhuma delas tomasse conhecimento da ordem, no caso de essa mesma ideia em algum ponto soasse falível, a reunião apenas dos integrantes estaria garantida para que novas providências fossem tomadas. Passando sem alterações dessa primeira etapa, uma segunda seria posta em evidência: Seria dado início a uma possível revolta por parte dos trabalhadores que sustentavam o império capitalista (isso foi conquistado através de discursos encorajadores e ao sistema idealizado teoricamente por Ernesto "Che Guevara", de ajuda mútua entre os indivíduos). Sem que os poderosos soubessem, no período de duas décadas, mais da metade de suas bases já não mais os ostentavam. Não seria necessário mais que outra década para que o sistema capitalista fosse erradicado de metade dos países, sendo substituído por uma espécie de anarcossocialismo sustentado no povo, uma espécie de "ponte" ou sistema provisório de adaptação. Para isso, muito antes, esse mesmo povo teria que ser instruído a coexistir sem nenhuma diferença. No que se diz respeito a primeira etapa dos planos, a programação nos meios de comunicação teria que ser alterada. Enquanto os adultos assistiam programações enfadonhas ou mesquinhas, as reuniões dos mártires tornavam-se mais constantes. Adolescentes estavam num avançado sistema de educação sexual distorcida, e muitas garotas com idade de treze anos eram gestantes (a programação televisiva atingira padrões irreversivelmente abomináveis em se tratando desse problema). A mudança teria de ser feita, lenta e gradual, mas o quanto antes, fosse possível. Obviamente, a dificuldade em esclarecer pequenas classes trabalhadoras mais conservadoras levou mais tempo do que o planejado. Fora isso, o até então desconhecido intento estava no rumo certo.

Considerando a ideia de que, esclarecendo um certo número de pessoas para uma determinada tarefa e essas mesmas assimilarem o que foi ensinado é provável que a maioria torne-se como os seus professores, de modo que, cada vez mais, o número desses esclarecidos irá aumentar. Essa era a intenção da ordem. Um arriscado meio de finalmente arruinar a base dos poderosos, a chave máxima para a mudança.

Sou obrigado a falar que por tempo algum usaram artimanhas da política como arma. Todo o aprendizado era passado através de eventos comunitários ou associações com fins não-lucrativos. Muitos assentiam à ideia, outros não a compreendiam, outros ainda a rejeitavam, mas a maioria era daqueles que assimilava e aderia a luta. Outro fato necessário a esclarecer foi a aceitação razoável de alguns homens, cujo poder aquisitivo era maior do que a classe trabalhadora (alguns deles também merecem destaque decisivo na transição, pois eram usados como espiões, no intento de observar a movimentação dos poderosos.

Era estimavelmente prazeroso ver que a mesma juventude que repulsava os membros da ordem perdia lentamente seus poderes morais sem que percebessem. Gastavam horas do seu tempo andando de um lado para outro no centro da cidade, observando e dialogando banalidades enquanto aqueles a quem expulsaram destruíam sua arrogância sigilosamente. O brilho no olhar dos que estavam a favor da ordem (sem que soubessem da existência da mesma) era intenso quando ficavam observando as "mentes pequenas" distraídos enquanto ignoravam o fato de que estavam sendo aniquilados moralmente. Eu, como partidário da mudança, compartilhei desta vista.

Muito embora fosse difícil a totalidade da extinção dos regimes conservadores, a ordem soube manter o apoio daqueles que estavam no intento. A inteligência desses mesmos homens era tamanha que a mudança continuava prosseguindo sem que houvessem mortes, sem que pessoas fossem prejudicadas e, acima de tudo, sem que os poderosos soubessem.

Ao final de vinte e quatro anos, todos os países da Améria Latina, África e Ásia estavam esclarecidos com a ideia da mudança. O ponto mais árduo, no entanto, eram justamente aqueles que, à custa dos explorados (como se deve saber, os mesmo que já haviam aderido à ideia) tornaram-se as potências capitalistas do planeta. Mais duas décadas cederam até que esses países finalmente se livrassem do conservadorismo.

O mundo respira puramente, foram extintas todas as doenças que assolavam a humanidade. Como nunca haviam sonhado antes, o sistema monetário fora totalmente erradicado. Enganam-se aqueles que ainda dizem não estar certo à Utopia, pois as pessoas que delas participam estão devidamente esclarecidas. Cada um dos indivíduos é o portador de sua própria luz. A Era de Aquário, finalmente, estava estabelecida e, como foi planejado, a única ideia realmente imposta. A energia fora transformada. Não mais se explorava petróleo. Não se cortavam árvores a menos que outras tantas fossem plantadas; não se poluía o ar com substâncias degradantes, pois tudo era do feitio natural. Tudo isso graças aos mártires.

Agora, alguém me pergunta: "onde estão aqueles que foram responsáveis pelo estado utópico tão sonhado pelos esclarecidos". Eu, definitivamente, não sei. Há vários anos não os vejo. Alguns dizem que assumiram outra identidade para que não fossem representados como líderes (sim, eles repudiavam essa antiquada ideia), o que acho mais provável. Outros comentam que se refugiaram em meio às florestas sul-americanas, para enfim descansar de décadas de combate pela mudança. A ponderação mais comentada é que desfaleceram pelo peso da idade, mas ninguém sabe onde e quando foram sepultados. O fato é que, sumiram, não mais apareceram em público e não se sabe mais notícias. O que faço agora, também em idade avançada é apenas contar histórias e responder perguntas que os mais jovens me fazem (a mesma curiosidade é tangenciada por um mar de questões). Querem saber tudo o que não puderam ver, pois ainda não tinham nascido. Essa curiosidade eu comparo a mesma dos filhos daqueles que lutaram pelo fim da ditadura, querendo extrair o que pudessem dos seus pais ao final dos anos oitenta). Respondo-as com alegria, pois é sempre motivador que a história da mudança e da ordem dos mártires continue viva. Há, porém, um problema que não pude resolver. Um dos curiosos jovens, sentado à beira do fogão à lenha, perguntou-me como eu sabia sobre a existência da ordem, já que essa mesma era tão sigilosa que só seus membros sabiam de sua autoria. Encolhi os lábios, remexi a lenha incandescente no fogão, divaguei e não soube responder...

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