"Os poderosos podem matar uma, duas, até três
rosas,
mas nunca deterão a primavera."
Ernesto Guevara de La Serna (1928 - 1967)
O que outrora fora um mundo caótico e desordenado, onde a injustiça
perpetrava num regime forçadamente desumano, e que, agora, aquelas lembranças
não passam de história (bem estudada, por sinal), de como a humanidade
conseguiu alcançar a suprema pacificação e entendimento
(é o que muitos chamam erroneamente de "paraíso"),
em que todas as diferenças raciais ou sociais foram banidas das ideias
populares. Onde cada qual sabe os seus limites, cada um exige o saber mais sobre
todas as coisas (carregando em todo o seu ser, uma espécie de filosofia
própria); enfim, terminamos por conquistar o que antes fora considerado
"impossível" (lembro-me perfeitamente de quando meu pai recalcitrava
em dizer que todas as ideias libertárias não passavam de
pura utopia); se bem que, depois de toda a difícil transição,
devemos abertamente esse feitio a uma ordem que trabalhava sigilosa e solitária
para o bem de todos. Escrever sobre os métodos que essa ordem usou para
conquistar a referida "utopia" seria um tanto injusto (cabe-me, por
obséquio, dizer que ninguém foi assassinado, ninguém além
das ideias totalitárias). O que vou contar é o que realmente
interessará a todos. Quem foram e como conseguiram modificar um incalculável
número de mentes obscuras a evoluírem e portarem suas próprias
luzes.
Lembro-me que, ainda jovem, residia em um vilarejo na fronteira do Brasil com
o Uruguai. Em uma cidade vizinha viviam alguns homens considerados "antiquados"
pelos moradores locais. Esses homens pareciam estar realmente atrasados quanto
à cultura contemporânea. Enquanto os jovens dançavam ao
som de músicas eletrônica ou escutavam canções de
teor irrisório quanto ao fator inteligência, esses homens preferiam
(tanto em suas reuniões quanto particularmente) os velhos hinos hippies
dos anos sessenta. Estes mesmos vestiam-se como aquela época; seus costumes
condiziam aos ícones subculturais, obtendo apenas olhares apreensivos
de seus conterrâneos.
Um fato que se comenta entre todos é que não despertavam o interesse
de mulher alguma; os poucos amigos e amigas que tinham, ou eram crentes religiosos
aficionados ou, simplesmente, não apoiavam seus costumes (as crianças
ficavam com as carinhas duvidosas enquanto as chamas do fogão à
lenha iluminavam irregularmente suas faces curiosas, quando lhes era revelada
essa história). O fato é que, apesar de todas essas adversidades,
os mártires encontravam tempo para se reunirem e discutir sobre os problemas
humanos de sua época. Muito embora suas reuniões não costumassem
ser muito seguidas, toda a vez que eles se reuniam, novas ideias libertárias
iam emergindo (isso tudo longe dos olhos do resto da humanidade). Em suas pequenas
assembleias, não apenas se discutiam problemas, soluções
e ideias, como também realizavam experiências mentais com
cada participante. Tais experiências consistiam em comunicação
mental, estudos simbológicos, observações e ensaios astronômicos,
além de muito conhecimento sobre a "vita post mortem".
Ninguém, absolutamente ninguém tomava conhecimento de suas reuniões
(como toda a ordem mística ou especulativa). Sumariamente, eles sustentavam
a hipótese de que, quanto mais membros aderissem à ordem, pequenas
fagulhas de caos colocariam tudo a perder. Entraram em vários acordos,
ao passo que muitos eram desfeitos; formulavam diversas teorias, enquanto as
velhas eram descartadas; realizavam experiências que comprovavam respostas
e desmascaravam enigmas; tudo isso era feito nas assembleias dos mártires.
Alguns dias atrás, um jovem me perguntou o porquê da expressão
"mártir". Minha resposta teria de ser objetiva, muito embora
estivesse ciente de que não era de todo fácil explicar o que aconteceu
para que a ordem fosse assim denominada. Doravante, tomarei a iniciativa de
esclarecer.
Nenhum dos homens que participavam da ordem nasceu em berço de ouro.
Eram conscientes de sua classe social, mesmo antes de atingirem a juventude.
Eram obrigados a trocar horas de diversão por trabalho ainda na infância,
e severamente castigados se cometessem algum erro mais grave. Na adolescência,
se ocupavam com assuntos jamais relacionados às suas idades. Enquanto
outros jovens debruçavam-se em festas ou diversões caras, eles
retiravam livros da biblioteca pública ou gastavam uma parte de suas
encolhidas verbas em periódicos científicos, ou livros escolhidos
nos chamados "sebos" (uma forma mais fácil que dispunham para
adquirir volumes, visto que nessas espécies de comércio vendiam
obras por valores condizentes com a situação financeira dos mártires).
Eram banidos da juventude contemporânea pelas suas preferências
culturais, onde os garotos falavam de carros modernos e disputas fajutas; e
as garotas, usavam essa mesma disputa, para ver qual se vestia melhor. Quem
não estivesse nesse círculo deplorável era incomunicavelmente
afastado, condenado a varar solitário até que deixasse o lugar
e não mais aparecesse nas ruas, caso contrário seriam vítimas
de injúrias. Todo esse tratamento fora absorvido pelos mártires.
Cada um deles passou por essas provações ou algo pior, mas suas
mentes já estavam muito além, e não se importavam com esse
método "pária", ao contrário, extraíam
o máximo proveito das cabeças pequenas que os escorraçavam.
Resumindo todas as diferenças ideológicas, quem deveria ser julgado
era o grupo dos jovens consumistas. De fato, posteriormente, o foram.
Naqueles primeiros anos do século XXI, em que os ocultistas diziam tratar-se
do início da era de aquário, as barbaridades eram diversas. Já
não se dormia tranquilo à noite, as florestas eram constantemente
degradadas ao tempo que vários animais eram caçados e extintos;
consideráveis litros de água potável eram poluídos;
não havia mais espaço para todos; a lei de "olho por olho,
dente po dente" imperava no que se diz respeito ao capitalismo. Apesar
de incontáveis entidades que ajudavam a retrancar a corrida destrutiva,
não eram páreos para o turbilhão de poderosos que nada
mais visavam a não ser o lucro, independente de quantas vidas precisassem
ceifar. Era imperativo dizer que a humanidade não mais existiria em sete
décadas, e qualquer ideia de uma possível mudança
nos acontecimentos, não passava de um mero sonho. Graças aos mártires,
o curso dos fatos tomou um rumo mais humano. A primeira decisão permanente
tomada pela ordem era que espalhariam um conhecimento mútuo entre algumas
pessoas mais inclinadas à mudança. Isso seria feito sem que nenhuma
delas tomasse conhecimento da ordem, no caso de essa mesma ideia em algum
ponto soasse falível, a reunião apenas dos integrantes estaria
garantida para que novas providências fossem tomadas. Passando sem alterações
dessa primeira etapa, uma segunda seria posta em evidência: Seria dado
início a uma possível revolta por parte dos trabalhadores que
sustentavam o império capitalista (isso foi conquistado através
de discursos encorajadores e ao sistema idealizado teoricamente por Ernesto
"Che Guevara", de ajuda mútua entre os indivíduos).
Sem que os poderosos soubessem, no período de duas décadas, mais
da metade de suas bases já não mais os ostentavam. Não
seria necessário mais que outra década para que o sistema capitalista
fosse erradicado de metade dos países, sendo substituído por uma
espécie de anarcossocialismo sustentado no povo, uma espécie de
"ponte" ou sistema provisório de adaptação. Para
isso, muito antes, esse mesmo povo teria que ser instruído a coexistir
sem nenhuma diferença. No que se diz respeito a primeira etapa dos planos,
a programação nos meios de comunicação teria que
ser alterada. Enquanto os adultos assistiam programações enfadonhas
ou mesquinhas, as reuniões dos mártires tornavam-se mais constantes.
Adolescentes estavam num avançado sistema de educação sexual
distorcida, e muitas garotas com idade de treze anos eram gestantes (a programação
televisiva atingira padrões irreversivelmente abomináveis em se
tratando desse problema). A mudança teria de ser feita, lenta e gradual,
mas o quanto antes, fosse possível. Obviamente, a dificuldade em esclarecer
pequenas classes trabalhadoras mais conservadoras levou mais tempo do que o
planejado. Fora isso, o até então desconhecido intento estava
no rumo certo.
Considerando a ideia de que, esclarecendo um certo número de pessoas
para uma determinada tarefa e essas mesmas assimilarem o que foi ensinado é
provável que a maioria torne-se como os seus professores, de modo que,
cada vez mais, o número desses esclarecidos irá aumentar. Essa
era a intenção da ordem. Um arriscado meio de finalmente arruinar
a base dos poderosos, a chave máxima para a mudança.
Sou obrigado a falar que por tempo algum usaram artimanhas da política
como arma. Todo o aprendizado era passado através de eventos comunitários
ou associações com fins não-lucrativos. Muitos assentiam
à ideia, outros não a compreendiam, outros ainda a rejeitavam,
mas a maioria era daqueles que assimilava e aderia a luta. Outro fato necessário
a esclarecer foi a aceitação razoável de alguns homens,
cujo poder aquisitivo era maior do que a classe trabalhadora (alguns deles também
merecem destaque decisivo na transição, pois eram usados como
espiões, no intento de observar a movimentação dos poderosos.
Era estimavelmente prazeroso ver que a mesma juventude que repulsava os membros
da ordem perdia lentamente seus poderes morais sem que percebessem. Gastavam
horas do seu tempo andando de um lado para outro no centro da cidade, observando
e dialogando banalidades enquanto aqueles a quem expulsaram destruíam
sua arrogância sigilosamente. O brilho no olhar dos que estavam a favor
da ordem (sem que soubessem da existência da mesma) era intenso quando
ficavam observando as "mentes pequenas" distraídos enquanto
ignoravam o fato de que estavam sendo aniquilados moralmente. Eu, como partidário
da mudança, compartilhei desta vista.
Muito embora fosse difícil a totalidade da extinção dos
regimes conservadores, a ordem soube manter o apoio daqueles que estavam no
intento. A inteligência desses mesmos homens era tamanha que a mudança
continuava prosseguindo sem que houvessem mortes, sem que pessoas fossem prejudicadas
e, acima de tudo, sem que os poderosos soubessem.
Ao final de vinte e quatro anos, todos os países da Améria Latina,
África e Ásia estavam esclarecidos com a ideia da mudança.
O ponto mais árduo, no entanto, eram justamente aqueles que, à
custa dos explorados (como se deve saber, os mesmo que já haviam aderido
à ideia) tornaram-se as potências capitalistas do planeta.
Mais duas décadas cederam até que esses países finalmente
se livrassem do conservadorismo.
O mundo respira puramente, foram extintas todas as doenças que assolavam
a humanidade. Como nunca haviam sonhado antes, o sistema monetário fora
totalmente erradicado. Enganam-se aqueles que ainda dizem não estar certo
à Utopia, pois as pessoas que delas participam estão devidamente
esclarecidas. Cada um dos indivíduos é o portador de sua própria
luz. A Era de Aquário, finalmente, estava estabelecida e, como foi planejado,
a única ideia realmente imposta. A energia fora transformada.
Não mais se explorava petróleo. Não se cortavam árvores
a menos que outras tantas fossem plantadas; não se poluía o ar
com substâncias degradantes, pois tudo era do feitio natural. Tudo isso
graças aos mártires.
Agora, alguém me pergunta: "onde estão aqueles que foram
responsáveis pelo estado utópico tão sonhado pelos esclarecidos".
Eu, definitivamente, não sei. Há vários anos não
os vejo. Alguns dizem que assumiram outra identidade para que não fossem
representados como líderes (sim, eles repudiavam essa antiquada ideia),
o que acho mais provável. Outros comentam que se refugiaram em meio às
florestas sul-americanas, para enfim descansar de décadas de combate
pela mudança. A ponderação mais comentada é que
desfaleceram pelo peso da idade, mas ninguém sabe onde e quando foram
sepultados. O fato é que, sumiram, não mais apareceram em público
e não se sabe mais notícias. O que faço agora, também
em idade avançada é apenas contar histórias e responder
perguntas que os mais jovens me fazem (a mesma curiosidade é tangenciada
por um mar de questões). Querem saber tudo o que não puderam ver,
pois ainda não tinham nascido. Essa curiosidade eu comparo a mesma dos
filhos daqueles que lutaram pelo fim da ditadura, querendo extrair o que pudessem
dos seus pais ao final dos anos oitenta). Respondo-as com alegria, pois é
sempre motivador que a história da mudança e da ordem dos mártires
continue viva. Há, porém, um problema que não pude resolver.
Um dos curiosos jovens, sentado à beira do fogão à lenha,
perguntou-me como eu sabia sobre a existência da ordem, já que
essa mesma era tão sigilosa que só seus membros sabiam de sua
autoria. Encolhi os lábios, remexi a lenha incandescente no fogão,
divaguei e não soube responder...