Encontraram-no, do mesmo jeito, franzino, que não impressionava pelo
tamanho, mas pela fama de valente beirando todo o Rio das Contas, principalmente
de espancar a devotada esposa, dia sim, dia não, e de tomar a pulso propriedades
de pequenos colonos que se avizinhavam às suas terras. Quase meio-dia
quando chegaram Silva e Lova, para consertar o telhado da casa-grande que apresentara
algumas pingueiras nas últimas chuvas de São José.
Silva, o filho postiço do coronel, era um rapaz moreno-jambo, grande,
gordo, cabelos encarapinhados e o pescoço enterrado nos ombros. O coronel
trouxera-o para casa como um produto qualquer da feira de Rio Novo - vilarejo
levado à condição de cidade recentemente, a três
léguas da fazenda.
- É um enjeitado da vida - disse à mulher quando chegaram, naquele
entardecer de sábado.
- Ele vai morar aqui? - perguntou-lhe a esposa, com uma voz áspera de
desconfiança. Encontrara no menino o olhar pétreo do marido.
- Isso não é da sua conta, apenas cuide dele.
Ela não ousou pensar em mais nada. Silva foi criado sem o amor da madrasta.
Orgulhava-se apenas do coronel e o seguia como um cão de caça
segue seu dono, obedecendo às suas ordens e atento aos ensinamentos:
- Um homem não foge da luta, rapaz, precisa atingir seu objetivo a qualquer
preço, mesmo que se tenha de passar por cima de tudo e de todos, entendeu
bem? - apregoava o coronel.
- Sim, senhor! Tá certo.
- Não foi à toa que eu cheguei até aqui. Muita gente pode
dizer que os meus métodos são grosseiros, mas o certo é
que consegui vencer. Hoje tenho tudo isso aí que você está
vendo - apontou para o horizonte verde das matas, até onde a vista alcançava,
tomando assento na cadeira de balanço encostada a uma das vigas de sustentação
do telhado a quatro águas, absorto em pensamentos conflitantes que também
precisavam ser sustentados -, agora vêm esses morubixabas do inferno querendo
me expulsar...
O bastardo observava-o com a mesma reverência que lhe fora imposta por
ele a pancadas desde a infância:
- Oxen! Que é isso, painho? - disse ele, tosco como um lastro de pau-ferro.
Malmente era capaz de assinar o próprio nome. Apenas Silva, sem sobrenome,
rascunhava.
- Já lhe disse pra não me chamar de "painho" - repreendeu-o
com um cocorote na cabeça.
Lova, que apenas conhecia esta alcunha - para ele, o mesmo de acunhar
madeira -, costeou-se até a varanda onde estavam os patrões conversando,
para informar-lhes de que o serviço estava concluído. O humilde
rapaz, aos 20 anos, tinha a maturidade de uma criança, e servia de chacota
aos companheiros. Estupidamente, costumavam cercá-lo nos finais de tarde
das sextas-feiras, após o pagamento, para vê-lo queim ar as fileiras
de verrugas que lhe povoavam o joelho e os pés. Alguns até apostavam
uma pinga como ele não iria se queimar novamente.
- Tá doendo, Lova? - um desalmado perguntava-lhe tão logo
ele puxava da fogueira o espeto de ferro em brasa e aplicava sobre as feridas.
- Não - respondia baixinho, sem convicção, mas gemendo
de dor, para satisfazer a alegria sádica da plateia admirada,
que assim exaltava sua condição de macho capaz de suportar qualquer
provação.
O almoço já estava sendo servido pela empregada, o coronel resolveu
chamá-lo para sentar-se à mesa:
- Primeiro vá lavar as mãos, na cozinha - ordenou.
O rapaz assim o fez e em seguida voltou para sentar-se, mas não se esqueceu
de tirar o facão da bainha e colocá-lo num canto da sala; depois,
humildemente, tirou o chapéu da cabeça e o dependurou atrás
de si no encosto da cadeira, ao lado de Silva. Esperou com educação
que o dono da casa se servisse para então colocar o feijão, a
farinha e, por último, a carne no seu prato. Mexeu tudo com uma colher
de sopa e começou a comer com voracidade, com um olho no doce de caju
que seria servido como sobremesa. Quase empanzinado, babando com o refresco
da jaca-de-pobre, já acabando a refeição, tirou o olho
do doce e o pôs no coronel, que lhe perguntou:
- Então, Lova, como está o almoço?
- Muito bom, seu coroné, só fartô mesmo umas pimentinha
- disse, inocentemente.
Mas Álvaro não entendeu assim: e limpou a boca na toalha da mesa,
e cerrou os punhos, e chamou a empregada com rudeza:
- Luzia, vá ao quintal, colha um litro de pimenta malagueta, bem madura,
e traga aqui ligeiro.
- Não, seu coroné, não carece não, já tô
sartisfeito - disse Lova, ainda mais encolhido pelo medo.
- Você vai aprender a não ser mal-agradecido, seu bocó!
A mulher do coronel, penalizada com aquela situação, tentou demovê-lo
da ideia absurda:
- Deixa isso pra lá Ferreira, o rapaz não teve a intenção...
- Não pedi sua opinião! - ele a interrompeu aos gritos. - Não
se meta em assunto de homem.
A mulher calou-se.
O judiado arigó comeu pimenta à tarde inteira diante de um coronel
furioso e do filho, com um sorriso de satisfação nos lábios.
Quando Lova conseguiu desvencilhar-se dos dois, correu para casa, apanhou um
punhado de açúcar e foi-se jogar no rio.