A Garganta da Serpente
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Lova e o Coronel

(Achel Tinoco)

Encontraram-no, do mesmo jeito, franzino, que não impressionava pelo tamanho, mas pela fama de valente beirando todo o Rio das Contas, principalmente de espancar a devotada esposa, dia sim, dia não, e de tomar a pulso propriedades de pequenos colonos que se avizinhavam às suas terras. Quase meio-dia quando chegaram Silva e Lova, para consertar o telhado da casa-grande que apresentara algumas pingueiras nas últimas chuvas de São José.

Silva, o filho postiço do coronel, era um rapaz moreno-jambo, grande, gordo, cabelos encarapinhados e o pescoço enterrado nos ombros. O coronel trouxera-o para casa como um produto qualquer da feira de Rio Novo - vilarejo levado à condição de cidade recentemente, a três léguas da fazenda.

- É um enjeitado da vida - disse à mulher quando chegaram, naquele entardecer de sábado.

- Ele vai morar aqui? - perguntou-lhe a esposa, com uma voz áspera de desconfiança. Encontrara no menino o olhar pétreo do marido.

- Isso não é da sua conta, apenas cuide dele.

Ela não ousou pensar em mais nada. Silva foi criado sem o amor da madrasta. Orgulhava-se apenas do coronel e o seguia como um cão de caça segue seu dono, obedecendo às suas ordens e atento aos ensinamentos:

- Um homem não foge da luta, rapaz, precisa atingir seu objetivo a qualquer preço, mesmo que se tenha de passar por cima de tudo e de todos, entendeu bem? - apregoava o coronel.

- Sim, senhor! Tá certo.

- Não foi à toa que eu cheguei até aqui. Muita gente pode dizer que os meus métodos são grosseiros, mas o certo é que consegui vencer. Hoje tenho tudo isso aí que você está vendo - apontou para o horizonte verde das matas, até onde a vista alcançava, tomando assento na cadeira de balanço encostada a uma das vigas de sustentação do telhado a quatro águas, absorto em pensamentos conflitantes que também precisavam ser sustentados -, agora vêm esses morubixabas do inferno querendo me expulsar...

O bastardo observava-o com a mesma reverência que lhe fora imposta por ele a pancadas desde a infância:

- Oxen! Que é isso, painho? - disse ele, tosco como um lastro de pau-ferro. Malmente era capaz de assinar o próprio nome. Apenas Silva, sem sobrenome, rascunhava.

- Já lhe disse pra não me chamar de "painho" - repreendeu-o com um cocorote na cabeça.

Lova, que apenas conhecia esta alcunha - para ele, o mesmo de acunhar madeira -, costeou-se até a varanda onde estavam os patrões conversando, para informar-lhes de que o serviço estava concluído. O humilde rapaz, aos 20 anos, tinha a maturidade de uma criança, e servia de chacota aos companheiros. Estupidamente, costumavam cercá-lo nos finais de tarde das sextas-feiras, após o pagamento, para vê-lo queim ar as fileiras de verrugas que lhe povoavam o joelho e os pés. Alguns até apostavam uma pinga como ele não iria se queimar novamente.

- Tá doendo, Lova? - um desalmado perguntava-lhe tão logo ele puxava da fogueira o espeto de ferro em brasa e aplicava sobre as feridas.

- Não - respondia baixinho, sem convicção, mas gemendo de dor, para satisfazer a alegria sádica da plateia admirada, que assim exaltava sua condição de macho capaz de suportar qualquer provação.

O almoço já estava sendo servido pela empregada, o coronel resolveu chamá-lo para sentar-se à mesa:

- Primeiro vá lavar as mãos, na cozinha - ordenou.

O rapaz assim o fez e em seguida voltou para sentar-se, mas não se esqueceu de tirar o facão da bainha e colocá-lo num canto da sala; depois, humildemente, tirou o chapéu da cabeça e o dependurou atrás de si no encosto da cadeira, ao lado de Silva. Esperou com educação que o dono da casa se servisse para então colocar o feijão, a farinha e, por último, a carne no seu prato. Mexeu tudo com uma colher de sopa e começou a comer com voracidade, com um olho no doce de caju que seria servido como sobremesa. Quase empanzinado, babando com o refresco da jaca-de-pobre, já acabando a refeição, tirou o olho do doce e o pôs no coronel, que lhe perguntou:

- Então, Lova, como está o almoço?

- Muito bom, seu coroné, só fartô mesmo umas pimentinha - disse, inocentemente.

Mas Álvaro não entendeu assim: e limpou a boca na toalha da mesa, e cerrou os punhos, e chamou a empregada com rudeza:

- Luzia, vá ao quintal, colha um litro de pimenta malagueta, bem madura, e traga aqui ligeiro.

- Não, seu coroné, não carece não, já tô sartisfeito - disse Lova, ainda mais encolhido pelo medo.

- Você vai aprender a não ser mal-agradecido, seu bocó!

A mulher do coronel, penalizada com aquela situação, tentou demovê-lo da ideia absurda:

- Deixa isso pra lá Ferreira, o rapaz não teve a intenção...

- Não pedi sua opinião! - ele a interrompeu aos gritos. - Não se meta em assunto de homem.

A mulher calou-se.

O judiado arigó comeu pimenta à tarde inteira diante de um coronel furioso e do filho, com um sorriso de satisfação nos lábios. Quando Lova conseguiu desvencilhar-se dos dois, correu para casa, apanhou um punhado de açúcar e foi-se jogar no rio.

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