Sim, perdera o sono, não havia dúvida. O cachorro do vizinho latia,
talvez porque percebera que ele havia acendido a luz do quarto! Essa não!
Passou a mão na lapiseira e em uma folha de papel em branco, colocou
os óculos.
Lembrou-se, então, da mestria com que Maria Luiza Ramos analisava "Maíra",
de Darcy Ribeiro, em seu livro "Interfaces", que estava lendo. Dois
universos distintos, o indígena e o urbano/branco, os conflitos de Alma
e de Isaías, a mulher branca que se lança de corpo e alma à
vida entre os índios, sem volta, e o índio aculturado que perdeu
o rumo, sente o chamado das origens, mas perdera a sua alma no contato com o
mundo do racionalismo e do dogma.
Não seria esse um conflito dele também, e, em última instância,
inerente à psique de todo o seu povo? A luta íntima entre o cotidiano
mágico, místico e ritualístico, que lhe chamava das profundezas
do passado, e a dura realidade, cartesiana, em parte, opressora e polarizada,
em outra, que se apresentava ante seus olhos, mente e sentidos.
Não estava ele lutando todo o tempo nesse multifário mundo sinistro
e desordenado, com sua alma decomposta em duas, ou em três faces distintas,
que, angustiadas, gritavam, na pungente busca de se expressar?
O mundo ancestral mítico fora rompido violenta e tragicamente, dando
lugar a um novo sistema de valores, patriarcal, apoiado em rotinas econômicas,
com um poder centralizado, e uma religião severa e seca, regida por dogmas
estreitos, que ensinavam o medo e a subserviência.
Daí a sua timidez peculiar ante os desafios do destino e a sua frágil
relação com o poder, fosse ele hierárquico - profissional,
familiar, exógeno, religioso... e não era o mesmo que percebia
em muitos dos seus conterrâneos?
E aquela sua busca dionisíaca, poética, barroca, do substrato
vital, como uma correnteza sensorial que percorria o seu sangue e batia sincopada
em suas têmporas.
Os passarinhos cantavam e o novo dia prometia, como sempre, boas novas. Ele
respirava fundo e ainda escrevia.
Tentaria dormir agora. Repousaria o seu corpo e a sua alma em um sono sereno.
Sonharia com as antigas eras, voando em forma de pássaro pelos céus
lendários, tentando vislumbrar o deus Maíra, amigo da humanidade.