Ela fugia. Fugia de si mesma. Os seus cabelos esvoaçavam de encontro
ao vento. Os seus pés afundavam na areia úmida, a cada passo.
Corria sem rumo. Tropeçava e rolava entre as espumas e sentia o gosto
salgado da água, seus cabelos já ensopados, e a dor da pele que
raspava na areia crespa e grossa.
Em nada pensava, ou melhor, seus pensamentos corriam com tal rapidez que não
se fixavam em nada. Tantas cenas desconexas, perdidas no tempo de uma vida conturbada
e veloz. A sua roupa colada ao corpo mostrava as suas formas sensuais e belas,
que se atiravam através das linhas do seu vestido, aos olhares sedentos
de quantos passavam por ela.
Deixou que a sua urina se misturasse à água salobra, com seu forte
aroma marinho. Sentia um gozo indistinto e difuso, que arrepiava a pele do seu
corpo, desde o couro cabeludo até as suas exuberantes pernas queimadas
pelo sol. Cenas eróticas se mesclavam com outras em sua mente.
Agora, buscava apoio nas suas coxas firmes e se sentava na beira da praia, e
sentia prazer enquanto as pequenas ondas acariciavam o seu sexo, e o penetravam
com a maciez de um amante amadurecido.
As cenas voltavam e se superpunham umas sobre as outras. A faca, dura e seca,
que penetrava na carne. Quantas vezes? Muitas, não se lembrava ao certo.
O grito, a surpresa. Depois o gemido, depois o som rouco do respirar ofegante,
que fraquejava, pouco a pouco, e, depois, o silêncio.
E o sangue escorrendo, embebendo o lençol, o colchão, pingando
no assoalho, e formando uma poça que crescia, crescia cada vez mais,
até ocupar quase todo o quarto. E a perplexidade, minutos ou horas com
os olhos fixos em um ponto vago no espaço longínquo. A boca seca,
os músculos tensos, a faca na mão, ensanguentada.
Depois, correu ao banheiro, vomitou e evacuou tudo o que continham suas entranhas.
Começou, então, a tremer e a suar, descontroladamente. Via aquele
corpo, o seu amante. Via as cápsulas jogadas no tapete, o pequeno saco
de cocaína, vazio.
E lembrava-se, então, de como estavam loucos, de como fizeram sexo durante
muito tempo, com muito prazer e muita dor. E de como, de novo, ele a violentara,
como um louco, e, de novo, a espancara, com violentos socos no seu rosto e no
seu corpo, e com chutes no seu ventre, nas suas costas, na sua virilha. E, depois,
dormira como um demônio apaziguado.
E de como ela ficara sentindo lancinantes dores por todo o seu corpo. E um profundo
cansaço na sua alma. Aquele cansaço, deprimente e angustiante,
de quem já não acredita em mais nada. Em uma vida que perdera
todo o sentido, um trabalho enfadonho e sem perspectiva. Sozinha, com a sua
filha e o seu filho, as suas crianças que tanto sentiam a falta do pai,
que lhes abandonara há três anos, e que procuravam se contentar
com o pouco que a sua mãe conseguia realizar, com o seu minguado salário.
E, de como ela se apegara aquele homem, como a sua única tábua
de salvação... E, de como, também, aquele amor foi perdendo
o seu sentido, a cada golpe, a cada esquecimento, a cada momento de desprezo
e de frustração.
E, de como, hoje, sem saber como, fora tomada por um ódio insuportável,
como se fosse explodir. E, de como cada célula do seu corpo gritou com
horror e revolta, e a sua mente vibrou como um sino tocado por um martelo incandescente,
surgido das profundezas do inferno.
E, de como seus olhos se incendiaram, a sua face tremeu como se sacudida por
uma febre fatal. E, então, tudo desabou sobre ela de uma só vez
. A sua vida marcada por tanta humilhação, desonra, surras, abandono,
desprezo, mentiras, calúnia, abusos, rotina, amargor, dor. Quanta dor!
Sentiu, naquele tenebroso momento, que só havia um meio de escapar daquela
dor que lhe rasgava a alma em milhões de minúsculos pedaços,
e que a deixava inteiramente alucinada!
Com gestos mecânicos, abriu, a custo, a bolsa surrada, e de lá
do fundo trouxe a faca retilínea, afiada e pontiaguda.