Sempre gostei de números, mas nunca me constou que pudessem economizar
palavras ao falar de vidas. Ria de meus amigos que, vez ou outra, tentavam convencer-me
de que determinada combinação ou supressão de letra em
meu nome, cada uma associada a um algarismo, serviria para mudar o rumo à
vida que (de pouco adiantava dizer-lhes) eu escolhera para mim.
Ainda assim, e ainda os números, gostava da minha casa por tudo nela
estar dividido em números exatos. Decimais sempre me atormentaram, e
desde criança construía meus sonhos em medidas exatas e, mais
importante ainda, mensuráveis. Por isso esse meu colchão, tão
exato, e o meu termostato, de agradar defunto.
Meus amigos, nas raras vezes em que me visitam, observam, entre o curioso e
o espantado, a minha relação com o espaço. Percebo-lhes
a incredulidade, e espanta-me que não percebam o quanto o meu equilíbrio
depende do exato - aliás, deduzo que seu desequilíbrio tenha a
ver com suas medidas inexatas ou, pior ainda, da sua falta de consciência
das medidas que cercam a vida.
Cinquenta quilos. Exatos. Saio com sossego da balança e organizo
com entusiasmo milimétrico o caminho do meu dia. Compraz-me verificar
a quantidade de passos até à garagem, e o número de vezes
que deverei olhar pelo retrovisor ao sair da garagem. Na dúvida, disponho-me
a olhar mais vezes do que o necessário, mas é preciso que cada
olhar dure uma porção de tempo que possa quantificar com exatidão,
sem sobressaltos nem interrupções. Ainda assim, prefiro os dias
em que meus pensamentos se dirigem para dentro, e o carro também fica
dentro, e nada sai do lugar.
De noite, há um pesadelo que me persegue, e que me rouba horas de sono
- sempre as mesmas horas, mas sinto-as roubadas, ainda assim.
Há alguém à minha porta, de chave na mão. Gira
a chave de um lado para o outro, mas interrompe um último movimento no
meio. Prenúncio de catástrofe. Entra-me pela casa em passos suaves,
e aproxima-se do quarto. Meus nove metros quadrados de colchão não
são o suficiente, e esse alguém galga-me a superfície e
atinge-me com cadência sincopada, inexata e confusa. Não é
por essa pessoa, mas por mim, que meu coração pára, numa
interrupção sem sentido.
Acordo em sopa. A respiração está normal, mas o ar à
minha volta é quente e espesso. Rolo para um dos lados e encontro uma
superfície fria no espaço de lençol que não ocupava.
Resfria uma parte de mim, enquanto a outra aquece o entorno. Quem virá
roubar-me o certo?
São três da tarde e não tenho o que fazer. Sento-me diante
da janela, frente à acácia que tenho no jardim, plantada a três
metros da varanda. As flores amarelas colorem o espaço em baixo, porque
já começam a cair, e daqui a pouco estarão desfolhados
os ramos da minha árvore predileta. Gostaria de poder plantar ciclâmenes
e outras flores que quando menor me encantavam nos jardins dos livros da Agatha
Christie, mas desconfio que não se dariam bem aqui nos trópicos,
apesar dos nomes sonoros ao gosto das escarpas da Cornualha. As flores amarelas
da acácia bastam-me, e lembram-me os tempos da cidade que mudou de nome.
As grandes avenidas, e as acácias plantadas a distâncias regulares.
Única regularidade no meio das regularidades mentiras.
Há alguém à minha porta, de chave na mão. Gira
a chave de um lado para o outro, procura-lhe que as ranhuras correspondam à
orientação da fechadura, como faço quando vou ao correio
buscar a correspondência à minha caixa postal. Abre e entra.
Os barulhos na cozinha quebram a monotonia do meu dia, trazem-me um mundo de
desconforto ao qual não me habituo mais. Corro a esconder-me na minha
grande cama, a sós com o frio que me conserva a memória no lugar.
Retiro o caderno de dentro da gaveta e escrevo mais algumas linhas. Algumas
vinte linhas, para ser exato.
Há alguém à porta, mas esta porta não tem fechadura,
e a mão não tem chave. Bate e não respondo. Quem dera entrasse.
A casa em silêncio outra vez. A cozinha limpa, os relógios com
seu tic-tac ritmado. Minha amiga especialista em feng-shui me advertiu e funcionou
- os que estavam parados foram consertados. Não quero energias estagnadas
perto de mim. Devo estar enlouquecendo, pensei no dia em que me convenceu. E
mais no dia seguinte, quando dei por mim a fazer contas ao nome da minha rua,
para ver se coincidia com o número da minha porta. Preciso de ajuda:
não sei a que algarismo corresponde a letra J. De Joaquim, primeiro nome
do nome da minha rua. Parece começo de poema... "o primeiro nome
do nome da minha rua". Amanhã telefonarei a Verônica.
Há alguém à porta. Despertei ou sonho ainda? A chave não
gira na mão. A mão bate, insiste com uma intenção
tão clara e rítmica que me obriga a levantar para abrir. Verônica
chegou cedo, acho que ainda nem a chamei. Vem sorrindo com suas tabelas logarítmicas,
suas codificações que se pretendem numéricas e exatas e
dão-me vontade de rir. Diz-me que o J é uma letra poderosa, mas
que não tem nenhuma importância a relação entre as
letras e o número da porta. Discordo. Como não tem relação?
De qualquer forma, isso já não me importa. Há uma curiosa
simetria entre as orelhas de Verônica. Gostaria de imobilizá-la,
mas ela dificilmente fica quieta, para poder-lhe estudar as medidas do rosto.
Tendo a achar que são exatas, mas não gostaria de precipitar-me.
Preciso medi-la um dia.
E as mãos. Já um dia li uma carta sobre as mãos de uma
mulher. Não fui eu quem a escreveu, nem sei para quem seria, mas as mãos
eram indefiníveis e dificilmente seriam as mãos que se apalpam
e que os sentidos percebem. São mãos como as de Verônica,
com 33 anos exatos, comemorados hoje conforme me informa. Pergunta-me de meu
mapa astral - a hora exata do meu nascimento? O que quererá fazer ela
com a hora exata de meu nascimento? Com o meu nascimento? Seria melhor comemorarmos
seu aniversário e esquecermos do meu nascimento, e da sua hora exata.
Já é tarde e Verônica embarca no ônibus que pára
diante da minha janela, do lado de lá do muro que separa a acácia
e a minha vida do turbilhão lá fora. Verônica ri-se e pergunta-me
que posso saber eu de turbilhões, se eles são inexatos e nos surpreendem
quando não estamos à sua espera. Agora sinto-lhe a falta, mas
a presença de seu cheiro e a substância volátil das suas
mãos conduzem-me à minha grande cama. Minha grande cama vazia.
Trato de ocupá-la com meu corpo na transversal, mas ainda sobra muita
cama. Muita cama. Nesses nove metros quadrados exatos, ainda bem que me tem
o frio.
Acordo e de novo é dia de sair de casa. Meus hábitos de eremita
ainda não me permitem a ausência do mundo. Decido ir a pé
até onde tenho que ir; será provavelmente mais saudável,
estou a ouvir as palavras de Verônica ao meu ouvido, só não
gosto do provavelmente, como não gostei do ponto-e-vírgula tão
inexato ali atrás. Assim que revise o que escrevi, terei de transformá-lo
num ponto. No máximo numa vírgula.
Decido é que é mais saudável, embora mais incômodo,
porque a volta me custará o dobro da ida, e a distância parecerá
infinita. Mas talvez encontre Verônica e o encontro transforme meu dia
e minha caminhada em matéria de nuvens. Talvez. Que é isso de
"talvez"? Talvez o que? Ou encontro ou não encontro. Para todos
os efeitos, pouco importa que eu decida encontrá-la ou não. Verônica
é incapaz de corresponder às minhas disposições
mais corretas.
Já se foi a ida, estou no meio da volta. Nada de Verônica.
Antes que a veja, sinto-lhe as mãos. Não sei por que me deu para
pensar-lhe tanto nas mãos. Nem é que sonhe com elas em mim, através
de mim, sobre mim, deslizando em mim.
Não. Descobri-lhes pequenas rugas e traços quando não
a via, e depois tornaram-se reais, as rugas, os traços e as mãos,
quando a dona de tudo isso chegou. Como foi? Não sei. E embora me doesse
a inexatidão, prendeu-se, agarrou-se a mim como uma peste esse desejo
de as descobrir na ausência e fazer-lhes a conferência depois ao
chegar. Mas hoje, nem mãos me esperam na fechadura da porta. Só
o aço frio, que me aquece, e prenuncia o frio de dentro, que me envolve
e acalma ao entrar. Vou direto à minha grande cama, e olho radiante o
termostato. Nove graus.
As minhas pernas têm inchado nos últimos anos. Lembro-me de quando
lhes surpreendia a curva ao espelho, olhando-as por trás. Não
as achava bonitas necessariamente, mas havia uma conformidade entre elas e o
espelho. Agora o espelho rejeita-as, engrossa-as, quere-as cheias e curvas.
As grotescas varizes dos pesadelos de quando era criança na praia e via
os velhos escondidos debaixo dos guarda-sóis, poupando-se as varizes
ao mal que lhes fazia o sol, parece que se tornam realidade azulada por trás
da minha pele translúcida. Verônica encontra-me nessa posição
esdrúxula, observando varizes que ela diz inexistentes. E ri-se, a Verônica.
Será que ela não vê por baixo da pele? Como se formam esses
tentáculos ameaçadores? Como crescem sem ordem nem nexo? Como
incham e querem rebentar, espalhando seu conteúdo que parece azul mas
é roxo pelas paredes, pelo chão, pela minha grande cama que aí
não me será mais salvação?
Trouxe-me um livro de numerologia. Parece entusiasmada pelo meu interesse,
mas eu hoje sei que quero ver-lhe mais que as mãos. Com essa história
de pernas, fiquei pensando nas suas, mas será demais querer que mas mostre,
assim, sem mais. E as pernas, Verônica? Haverão de perturbar-me
como as mãos, quando não estiveres aqui? Posso vê-las por
baixo das calças? Verônica?
Acordo ensopado. A mesma chave, a mesma mão, o mesmo movimento interrompido.
A mesma invasão e a respiração pesada. Acordo em sopa porque
reconheço a mão, mas não sei de quem é. Preciso
deixar-me de histórias de mãos de Verônica. Mas assim que
penso nelas elas deslizam até às pernas, e descobrem uma linha
mais sensível daquela que eu imagino ter sido a minha. Há uma
transluz em torno delas, mas o pior são as mãos que deslizam por
elas. Criam espaços de cor, de sombra, que tento em vão compreender
dentro de algum padrão que me dê segurança e compreensão.
Mas umas e outras, as pernas e as mãos, são de Verônica,
e ela não quer dar-me segurança. Compreensão... hei de
perguntar-lhe.
Verônica: tu me queres seguro? Mas é claro que nunca lhe perguntarei
tamanha estupidez! Se me quiser, eu não a quererei mais. Se não
me quiser, estaremos um perdido para o outro. Não gosto de dúvidas,
mas não quero perder a sensação exata das mãos,
nem a perturbação de seu encontro com as pernas.
Convidá-la-ei a um banho de mar. Se houvesse mar por perto. Um banho
de piscina será o máximo que conseguirei, mas é certo que
recuse. Lembro-me de tê-la ouvido, no dia em que a conheci, discursando
contra o tratamento químico da água das piscinas.
Mesmo dia em que instalei meu novo termostato. Deu-me vontade de rir a expressão
bestializada do instalador, estendendo-me a declaração de estar
de pleno juízo e consciente de que viver a nove graus centígrados
corresponde a temperatura de frigorífico, não de dormitório.
Por isso, decidi torrar ao sol da piscina municipal, para melhor apreciar meu
frigorífico particular. Das situações dos últimos
tempos, imaginar-me um pernil foi das mais hilárias. Por causa dessa
hilariedade, que se ouvia à distância marítima desses metros
quadrados aquáticos civilizados, Verônica prestou atenção
em mim, por achar que me ria dela e do seu discurso.
Sabe quantos quilos de cloro por ano? Sabe o quanto o cloro irrita as mucosas
do seu corpo, sobretudo aquelas mais escondidas? Sabe o quanto o cloro se dilui
na atmosfera e polui o nosso ambiente? Sabe o quanto...? Sabe o quanto...? Sabe
o quanto...? Essa fixação do quanto, do quanto, do quanto, do
quanto abriu uma fenda no pensamento e minha alegria histérica se desvaneceu.
Quem era essa criatura que queria medir, e saber de tudo o quanto?
E assim me manteve Verônica durante meses, sem lhe saber o nome, mas
sabendo da sua vontade de saber o quanto. Bastava-me. Quase não a via,
não conhecia quem a conhecesse, mas sabia que a encontraria mais uma
vez, e outra, e outra. À piscina não voltei, porque descobri que
estar a nove graus era suficiente, sem precisar torturar-me com calor a mais
para satisfazer-me depois.
Antes as pernas não se movimentavam, mas agora adquiriram vida. Eram
as mãos que deslizavam, agora as pernas abrem-se de leve ao menor movimento.
As mãos deslizam e as pernas respondem. Alongam-se quando os dedos se
alongam. Dobram-se, estiram-se, abrem-se como lábios. A luz diminui mas
eu procuro um interruptor, uma cortina, qualquer coisa que eu possa acionar
para continuar vendo. Ela ri-se e diz-me depois. Depois. Um inexato depois,
um depois sussurrado que me acorda e me faz olhar para a parede que mais detesto
de todas as que me rodeiam, porque é o fim dos meus nove metros quadrados
de macieza.
Verônica interessa-se por alimentação. Já percebi
a sua necessidade rítmica dos interesses pelas coisas. O curioso é
que em vez de descartar uma ao encantar-se com outra, vai colecionando-as e
relacionando-as umas às outras, numa leve sensação de enciclopédia
sem verbetes.
Da alimentação, então. Nada de doce até às
três, nada de café no horário do meridiano do coração
(isso, informei-me, é coisa dos médicos chineses, que gostam de
andar descalços e tomar o pulso dos outros certificando-se de que como
previsto a humanidade sofre do baço).
Mas eu gosto dessa precisão. Aliás, parece-me receituário
clínico, com a sua precisão matemática de a que horas,
quantos mililitros, durante quantos exatos e reconfortantes dias. Às
vezes a cura não vem ou, pior, assemelha-se tanto à própria
doença que creio perder-me. Ainda assim a precisão me reconforta
e parte de mim se cura, ainda que a outra pareça não dar por isso.
Mas a questão da alimentação fez com que Verônica
se horrorizasse com o que como, onde como, como como, com quem como (desnecessária
essa última, porque a solidão é minha mais frequente
companheira; é, pensando bem talvez seja por isso mesmo...). E o barulho
da cozinha modificou-se sensivelmente. Os choques das panelas são suaves,
a ordem faz parte do processo, e tudo ficou mais claro desde que Verônica
assumiu o controle. Sei que durará pouco tempo (preveni-me para não
estar desprevenido, claro), mas satisfaço-me no dia a dia, um após
o outro. Não tenho pressa para começar as coisas, e não
tenho pressa de lhes ver o fim; deve ser por isso que as pessoas passam por
mim e às vezes nem as sinto nem me sentem.
Verônica gosta dos meus quadros. Os azuis que sobem pelas paredes especialmente.
Dedica várias horas por dia a estudar a longa pilha inclinada encostada
à parede da sala. Diz-me que não entende, mas não quer
explicação. E as mãos passeiam pelas telas, e pela primeira
vez não me ressinto de que outros dedos acariciem os contornos dos meus
pesadelos. O único problema é que decidiu reorganizar as minhas
paredes e trocar meus quadros de lugar. Tento refugiar-me nos meus metros gozosos
de colchão, mas a sensação de mudança persegue-me
e há dias em que penso com ansiedade a que horas irá a seus cursos.
O que invariavelmente acontece, sempre antes das 16h30, e assim que sai percebo
que as mãos ficaram, mas para elas colchões, frigorífico,
paredes, pesadelos abrem espaço e permito que se deitem a meu lado.
Há alguém à minha porta, de chave na mão. Gira
a chave de um lado para o outro, mas interrompe um último movimento no
meio. Prenúncio de catástrofe. Entra-me pela casa em passos suaves,
e aproxima-se do quarto. Meus nove metros quadrados de colchão não
são o suficiente, e esse alguém galga-me a superfície e
atinge-me com cadência sincopada, inexata e confusa.
Adormeci e acordo em convulsão, suando apesar dos meus nove graus. É
noite, e ela não veio. Levanto-me de um pulo com o pensamento "ela".
Como? Ela? Onde deixei o nome? Por onde entrou a familiaridade, que portão
deixei destrancado?
A cozinha está às escuras e de novo me assusto com o vermelho
do quadro que reina sobre o fogão. Inadequado - esse vermelho é
do hall de entrada, onde teria Verônica a ideia. A acácia
já perdeu suas folhas, e seus galhos secos destacam as estrelas por trás
deles, projetando umas sombras no quadro que o distorcem e transformam meu pesadelo
vermelho numa pantomima de teatro de sombras mudo. Passam das três com
certeza. E dou-me conta de que procuro Verônica na escuridão da
sala, por trás do espelho do banheiro (não poderia ela haver deixado
uma parte de si para sempre refletida?), dentro do armário das vassouras.
Percorro meus quadros com as mãos, buscando as marcas do tato.
Há alguém à minha porta. Preciso dar-lhe uma chave, mas
que não entre sorrateira. Não bate, não chama, mas quando
abro a porta lá estão suas mãos sob a campainha, num gesto
de dúvida e espera. Deito-me e imagino-a deitada.
Acordo com o pensamento funesto de todo dia 12. Dia de supermercado. Arrepio-me
só de pensar, porque lá estarão as filas, os caixas pretendendo
uma simpatia pasteurizada, ou não pretendendo coisa nenhuma a não
ser torturar-me com esperas porque o sistema cai e nunca me explicam de onde.
Verônica ri-se da minha lista, por ordem de entrada começando pelo
corredor à direita, gôndola da direita, primeira prateleira de
cima e daí para baixo e em frente, parando diante do que preciso e ignorando
o resto. Novidades em termos de supermercado, para mim, não existem porque
nem lhes reconheço a existência. Divulgadores de produtos novos,
de linguiça a sabão de louça com poder desincrustante
fogem de mim assim que veem. Passo por várias prateleiras sem sequer
as olhar, porque as minhas compras que já eram regradas tornaram-se espartanas
graças a tudo o que não posso não gosto não devo
não quero comer. A minha alimentação pode haver melhorado,
mas sobretudo melhorou o tempo que gasto dentro desse estabelecimento. Oito
horas e as portas abrem-se. Gosto de ser o primeiro, apesar do cheiro nauseabundo
que me atinge lá do fundo, do açougue.
Já estou no sétimo corredor, e o sabão em pó mudou
de lugar. Deveria estar nesta prateleira, nesta gôndola. Não sei
agora o que fazer, talvez não compre sabão. Porque não
uma plaquinha indicando? Por que não um aviso, um comunicado, um simples
pedido de desculpas pelo transtorno estamos em obras para melhor atendê-lo?
Gosto de mim em dias como esses. Volto para casa de mãos vazias, sentindo-me
mais pleno e realizado do que minutos antes. Passei todas as compras pelo caixa
e depois disse-me arrependido e vim-me embora. A estupefação do
caixa, com seu sorriso plástico pendurado no anúncio de pasta
de dentes produzirá em mim uma boa gargalhada ao chegar a casa. Uma única,
e ao chegar a casa, para que possa ecoar nas minhas paredes e povoar depois
os meus pesadelos, dando-lhes uma sonoridade catastrófica que me fará
acordar mais cedo.
Não se gargalha em pesadelos.