A Garganta da Serpente
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Céu azul manchado de sangue

(Barbara Amar)

Desde mocinha sinto-me atraída pela ideia do suicídio. Acho-a deveras romântica e atraente. Muitos, certamente, não entenderão meu pensar mas associo o suicídio ao ato de amar. Já imaginaram morrer por amor, ou amando? Gosto disso...

Minha imagem preferida sou eu mesma aos 18 anos, ingênua e romântica, apaixonadíssima por um cara mais velho, bonito, boa situação financeira, etc (o velho clichê) e que me ama desesperadamente. É o namorado ideal, que toda mãe pediu para sua filha. Gentil, manda-me flores, bombons, faz questão de ajudar-me nos estudos preparatórios para o vestibular. Tudo corre às mil maravilhas. Somos muito felizes e vamos nos casar.

Sou virgem. Ele me quer assim. Conheci o sexo por suas mãos. Foi meu primeiro namorado e sinto que se agradou por minha pureza e inexperiência. Tem sido um ótimo professor - não só ensina, como toma as lições com muito rigor. Eu, por meu lado, gostei tanto da matéria que cada vez me dedico com maior empenho. Assim, posso dizer que me diplomei com mérito em felação (não só faço como recebo), coito anal e masturbação. Este último item, exigiu da minha parte um esforço redobrado. Não só deveria realizá-lo no professor como também diariamente, inúmeras vezes, em mim mesma. Evidente que a primeira aula foi ministrada por ele, mas como sou boa aluna aprendi direitinho.

No dia da oficialização do noivado não haverá festa. A meu pedido teremos uma reunião íntima envolvendo apenas nós dois e meus pais, visto que sua família mora em outro estado. Minha mãe não compreende esse meu desejo e insiste para que eu chame algumas amigas - afinal é uma festa de noivado. Recuso taxativa.

Marcamos para as seis horas - hora do ângelus - e ele é pontual. Eu o espero, lânguida, à janela, com um vestido novo, rodado, com um grande decote às costas. Meu cabelo é muito curto, tipo Joãozinho, com as costeletas penteadas para a frente. Cabelo de garoto em um rosto de menina, com corpo de mulher.

Finalmente vejo-o aproximando-se pela calçada. Estou tão feliz! Esperei tanto por esse momento...

Desde que notei que havia reciprocidade em meus sentimentos, enfim, que era amada do jeito e com a intensidade que eu mesma amava arquitetei cuidadosamente o plano que passarei à execução. Quero surpreendê-lo com um presente especial - MINHA VIDA. Daí que me escondo no vão da janela à sua espera. Está mais próximo. Meu coração acelera. Mais perto. Mais! Mais! Sinto o coração na boca. Sou toda amor e emoção. Finalmente! Antes que adentre no edifício, rápida, subo à janela e com forte impulso me jogo à seus pés!

Que maior prova de amor poderia almejar? É minha vida que estou lhe dando de presente!

- Aceita, meu querido! Recebe sua menina virgem que esperou a vida inteira por você. Que sempre teve tudo de bom e de melhor em seu cotidiano, mas que só foi realmente feliz quando lhe conheceu. E assim, como expressão máxima dessa felicidade jaz, agora, morta para você. Só para você!

Morro fitando o azul do céu. Estamos no verão e o sol ainda não se pôs. Meu vestido, amarrotado, cobre pudicamente meu corpo puro...seu...só seu! O sangue rapidamente coagulado emoldura minha cabeça, cabeleira rubra a enfeitar um rosto angelical. Não sorrio, não tive tempo. Mas a expressão do meu rosto é tão suave, tranquila, que você vê que não sofri. Meu gesto, por muitos considerado tresloucado, foi a expressão máxima que encontrei para lhe demonstrar meu amor e minha felicidade.

Procure entender. Por que morrer de doença? Por que morrer acidentada? Assassinada? Não é melhor morrer de felicidade? Apaixonada?

No bilhete derradeiro que lhe deixei está tudo explicado. A princípio, pode ser que você não alcance meu pensamento. Talvez lamente, até chore. Ou então que fique bravo por não ter me deflorado. Mas com o tempo entenderá. Eu sei...

(23/01/02)

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