Marianne, no íntimo, sempre foi uma mulher de vontade férrea. Entretanto, 
a falta de problemas e a extrema proteção na infância deixaram-na 
propensa à comodidade. Frágil espiritualmente se obrigou, após 
uma série de infortúnios na vida adulta, a se transformar em uma 
autêntica guerreira. 
Fora uma criança sensível, mimada ao extremo pelo pai. A mãe, 
  um pouco mais rígida, logo percebera que a menina tirava partido das 
  lágrimas para fugir às admoestações. Porém, 
  que ela possuía uma sensibilidade exagerada possuía. 
A seus olhos infantis só era entendida pelo pai, ele mesmo um homem 
  prático, dominado pela razão, mas que conseguia ler a alma da 
  filha adorada. Ainda muito novinha, Seu Manuel a surpreendeu a tomar água 
  pelo gargalo da garrafa. Não brigou. Fez questão de lhe explicar 
  que não estava certo, por questões de higiene. Quando a criança, 
  temerosa pela consequência do seu ato, suplicou que ele nada contasse 
  à mãe passou a mão pesada e grande em seus cabelos claros:
- Não se preocupe, filha. Este assunto fica só entre nós 
  dois.
Em um ímpeto de agradecimento a pequena atirou-se em seus braços 
  e sem querer, sem maldade, deu a conhecer uma de suas fantasias:
- Sabe, papai, que às vezes eu imagino que mamãe é a mãe 
  da Lucinha?
O pai procurou disfarçar o desapontamento e indagou:
- Mas por quê, Marianne? Você não gosta da sua mãe?
- Gosto sim respondeu, já arrependida. É que a mãe da 
  Maria Lúcia é tão boazinha.
Seu Manoel olhou com carinho para a filha e explicou-lhe que o fato da sua 
  mãe ser exigente não a tornava má. Ao contrário, 
  era uma demonstração de que a mamãe importava-se muito 
  com ela. A garota concordou com a cabeça, meio envergonhada. O pai, então, 
  pediu-lhe:
- Você nunca dirá isso para ela, não é? Sua mãe 
  ficaria muito triste.
Marianne prometeu que nem mais pensaria naquele assunto, porém em sua 
  cabecinha percebeu que havia errado. E o pior de tudo: contra alguém 
  que só queria o seu melhor. Era ainda muito nova para conhecer o significado 
  da palavra injustiça.
Muito cedo, aos dois anos, recordava-se de ter visto sua mãe chorando. 
  Era de manhã e D. Eugênia usava uma jardineira azul, com suas iniciais 
  bordadas:
- Seu pai brigou comigo por sua causa!
Marianne não entendeu nada. Ficou somente olhando, entristecida. Esta 
  deve ter sido sua primeira culpa. 
Engraçada a memória das pessoas. Marianne tinha lembranças 
  prodigiosas da infância. Sua imagem mais remota fora anterior ao seu primeiro 
  ano de vida, quando ainda um bebê evacuara na cama dos pais. Sentira uma 
  satisfação imensa com aquela quentura acolhedora e, naturalmente, 
  se espantara com a voz aflita da mãe relatando o fato ao marido. 
Apesar dos percalços as duas davam-se muito bem; a filha sempre representando 
  o papel da menina educada e obediente. Vaidosa, admirava os vestidos da mãe 
  e gostava de se borrar com seus produtos de maquiagem, além de desfilar 
  trôpega pela casa com sapatos altos.
  D.Eugênia tinha um padrão rígido de honra, herdado do seu 
  pai militar e fazia questão de transmiti-lo à filha. Mentir jamais 
  - a verdade acima de tudo não merecia castigo. Da mesma forma aprender 
  a se defender no colégio visto que, por ser a mais nova da turma, virara 
  um saco de pancadas. A coisa chegara a tal ponto que sua mãe a preveniu:
- Ou você reage e devolve esses tapas ou levará a maior surra 
  da sua vida!
Ante a ameaça materna Marianne não teve dúvidas. Passou 
  rapidamente à posição da maior brigona do colégio.
Também fora advertida para não permitir que tocassem em seu corpo. 
  E sendo assim assistia suas coleguinhas do jardim de infância sentarem-se 
  no colo umas das outras, tendo como fundo uma grande cadeira que, evidentemente, 
  transbordava com o peso excessivo. As meninas caíam, rolando no chão 
  umas sobre as outras, gargalhando excitadas. Encolhida a um canto, observava 
  tudo com uma ponta de inveja. Quando convidada a participar da brincadeira recusava, 
  com a resposta ensaiada de antemão:
- Minha mãe não gosta que eu brinque de coisas feias.
As outras davam de ombros e continuavam a se divertir.
Uma vez no cinema, aos seis anos de idade, sentiu a mão de um homem 
  a lhe acariciar de leve a coxa:
- Mamãe, o moço tá pegando na minha perna. 
Não gritou nem falou baixinho. Somente comunicou o fato, a seu ver, 
  esquisito.
Foi um escândalo. D. Eugênia, indignada, gritando contra o tarado 
  que escapuliu com uma velocidade incrível. Marianne, sem entender a extensão 
  do delito ficou mais assustada que ele. Anos mais tarde, adulta, recordava o 
  fato com uma certa excitação.
Seu corpo começou a sofrer as modificações da puberdade 
  aos doze anos. Seus peitinhos, bem pequenos e com os mamilos salientes, marcavam 
  a roupa e a mãe deu-lhe um soutien, que passou a usar orgulhosa. Os quadris 
  se alargaram enquanto a cintura afinava, prenunciando o corpo em forma de violão. 
  O que mais a assustava, contudo, eram as modificações na genitália 
  e o aparecimento dos pelos pubianos. Falou disso à mãe que lhe 
  assegurou que o fato ocorria de forma idêntica com todas as mocinhas. 
  Recomendou-lhe, em especial, não ficar observando-se em demasia pois 
  Papai do Céu não gostava.
Pobre Marianne, desgostou demais a Deus. Curiosa, de espelhinho em punho, examinava 
  fascinada os órgãos genitais em seus mínimos detalhes. 
Seu pai também notou que a menina que o acompanhava, diariamente, à 
  padaria entoando canções infantis transformava-se em uma mulher. 
  Enciumado, proibiu-a de namorar. Ela riu. Achava engraçada sua preocupação. 
  Na verdade, ele era seu único namorado. 
Aos quinze anos mantinha um pequeno diário onde fazia anotações 
  sobre si mesma e suas amigas. Caiu na besteira de ali descrever sua primeira 
  masturbação. Fora com seu ursinho de pelúcia, esfregando 
  frenética o focinho aveludado contra o clitóris recém descoberto. 
  Começou a receber indiretas de D.Eugênia que, obviamente, invadira 
  a sua privacidade. Seu pai, mais uma vez correu em sua defesa:
- Deixa a moça em paz, reclamava com a mulher.
Envergonhada, picou o diário em pedacinhos que jogou no lixo. Aprendeu 
  naquele momento que a verdade nem sempre podia ser dita ou escrita.
A masturbação a atraía demais, principalmente a sensação 
  do orgasmo que ela não sabia definir e não tinha com quem comentar. 
  Claro que o urso de pelúcia foi substituído pelo travesseiro de 
  paina, muito mais confortável. Depois, sem saber como, percebeu que podia 
  atingir o clímax das emoções esfregando os dedos ao longo 
  da vagina. Fazia-o inúmeras vezes, deitada na cama ou na banheira. 
Marianne achava tudo isso muito feio e morria de vergonha por Deus estar assistindo 
  esse triste espetáculo. Mas não adiantava, queria gozar cada vez 
  mais. Até que encontrou, aos dezoito anos, um namorado (o primeiro) que 
  lhe proporcionou grandes orgasmos. Pena que fosse extremamente ciumento. Perdia 
  o controle com facilidade e descontava nos braços da jovem, que viviam 
  arroxeados.
Desde a história do diário, Marianne aprendera que era preciso 
  mentir ou, pelo menos, omitir algumas coisas da sua vida. Mentiu quanto às 
  bolinações dos namorados seguintes e, principalmente, quanto ao 
  que ela lhes fazia em troca.
Com o passar dos anos mentiu muito mais. Foi amante de homens casados. Abortou 
  três vezes em sua própria casa, às escondidas, aguentando 
  a dor e temendo a hemorragia provocada pelo medicamento caríssimo que 
  o amante encomendara. 
Tornou-se uma mentirosa contumaz. Mentia até para si mesma, interpretando 
  o papel da filha pura e responsável. 
Os pais, a essa altura velhinhos, foram encontrar-se com Deus. D. Eugênia, 
  em primeiro lugar. Cinco anos depois Seu Manoel abandonava a vida, lutando até 
  o último instante para ficar ao lado da filha amada. A ela dirigiu seu 
  último suspiro.
Marianne também quis morrer. Não se alimentava direito, faltava 
  ao trabalho e passou a andar em más companhias. Tinha especial predileção 
  pelos homens complicados, que nada lhe davam de bom. Ao contrário, enchiam-na 
  de porrada e se locupletavam às suas custas. Um deles a presenteou com 
  o famoso golpe "Boa noite Cinderela", roubando o anel de brilhantes 
  que pertencera à sua mãe. Marianne, envergonhada, não teve 
  coragem de se queixar à polícia pois nem seu nome sabia direito. 
  Andou na linha por alguns tempos, no entanto acabou caindo nas lábias 
  de outro mau elemento. Este, sutil e atencioso, a convenceu, com a desculpa 
  de estarem fazendo um bom negócio, a lhe passar boa parte dos seus bens, 
  fruto do trabalho honesto de Seu Manoel. Lógico que o tratante a abandonou 
  na primeira oportunidade, sem qualquer explicação. 
Marianne foi ao fundo do poço. Chegou a pensar seriamente em acabar 
com a vida. Porém, de súbito, uma energia enorme brotou naquele 
  corpo depauperado pela amargura e pela infelicidade obrigando-a a se levantar. 
  Lembrou-se que seu pai sempre acreditara em sua força interior e que 
  apostara nela como gente. Não era mais uma criança, mas sim uma 
  senhora de 56 anos, vendo-se forçada a crescer em uma idade em que a 
  maioria das pessoas estava morrendo. Assim o fez. Mudou-se para o interior vendendo 
  a casa onde morava, herança paterna. Recorreu à vizinhança 
  prestativa e com eles aprendeu a mexer na terra, plantando alimentos para seu 
  próprio uso. Vivia modestamente, sem grandes contatos com o exterior. 
Para se distrair começou a escrever contos e poesias. Botou tudo para 
  fora. As mixórdias, os maus passos, toda a baixaria a que fora submetida. 
  Escrevia bem a danada (seu pai sempre lhe dissera que deveria ser escritora); 
  sabia como enfeitar as passagens tristes. Era uma autêntica contadora 
  de histórias. Mostrou seu trabalho aos vizinhos, pessoas simples, que 
  embora não fossem chegados às letras apreciaram seus escritos. 
  Tomou coragem e procurou suas velhas amigas em uma ida à cidade. Estas, 
  que nunca suspeitaram desse seu talento, ficaram agradavelmente surpresas e 
  passaram seus textos adiante. Por fim, quando menos se esperava aconteceu. Ela 
  estava nas paradas de sucesso. Ah, se seus pais a vissem... 
Passou a ser procurada pelas editoras. Todos se interessavam por aquela senhora 
  que vivia reclusa mas que exibia uma bagagem literária estranha e ousada, 
  evidenciando uma incrível experiência no viver. Ninguém 
  acreditava que aquelas histórias picantes e sensuais fossem criadas por 
  uma sexagenária. Alguns poucos reconheciam em suas tristes poesias a 
  atmosfera insuportável e, por vezes, irremediável do vazio, a 
  que pode chegar a condição humana. Era o seu retrato. Marianne 
  desnudara-se por completo reproduzindo sua trajetória de vida. 
Apesar do sucesso, continuou afastada recebendo esporadicamente as visitas 
  das amigas e, sobretudo, guardando seu dinheirinho, ao qual dava agora o devido 
  valor. 
Apreciava aquela vida, gostava da vizinhança e, mais do que nunca, havia 
  alcançado a paz.
  Os homens? Procurava ignorá-los dada sua falta de sorte e incrível 
  ingenuidade para com o sexo oposto. No fundo, acreditava que seu mal era a sensibilidade 
  excessiva que a fragilizava aos galanteios e às belas palavras.
Sublimava seus sentimentos escrevendo e dedicando-se ao prazer solitário, 
  única forma de aplacar o desejo ainda bem vivo na terceira idade. 
E assim continuou vivendo, sugando todas as duras experiências passadas 
  e introjetando-as como se dessa forma pudesse criar anticorpos anti-mau-caratismo, 
  antifilho da putismo, e tantos outros. Cresceu a duras penas com o sofrimento 
  e aprendeu a se fazer forte dentro da sua própria fraqueza.
Por vezes, permitia-se divagar. Via ao seu lado um companheiro firme e carinhoso, 
  um homem digno como fora seu pai. Todavia, não passavam de sonhos. Nada 
  mais.
(01/11/02)