A Garganta da Serpente
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Um sapo-banana para o Mário

(Costa Abrahão)

Sentado sobre o cordume da proa, Mário sentia no seu rosto o bafejar morno daquele vento de baía. Abria e fechava impaciente a capa de proteção do pequeno alicate de cutícula. Poderia ser um cortador de unhas desses comuns, uma tesourinha, um canivete cheio de trololó até, mas estava por demais acostumado ao sistêmico ritual de abrir e fechar a capa. Era um santo remédio para casos como esse agora.

Não trazia cachimbo como seria de se esperar, nem mastigava fumo. Não era de seu feitio fazer tipo. Nem contar mentiras, nem usar camisa gola rolê preta, nem boina, nem nada. Nem nada. Bulia com o alicate e rangia dentes, só. Um bruxismo intermitente. Como livrar-se daquele sapo-banana que carregava? Que carga mais inglória!

Um sapo-banana era coisa de estupor. Ninguém acreditava, mas sempre tinha alguém a dizer e garantir sua existência. Sapo-cururu, sapo-boi e todos esses sapos eram explicáveis, mas um sapo-banana? Pois era isso que o Mário trazia. E teria de explicar o inexplicável.

Havia saído pela madrugada de dois dias atrás. O tempo, a cara do mar, os ventos, a fase da lua, tudo isso prometia pesca farta. Disso tudo Mário lembrava-se agora que começava a divisar as luzes que iam-se acendendo no seu porto. Esse entardecer era bonito.

Jamais saíra daquela pequena baía onde nascera, morava e trabalhava, entretanto sabia que paisagem não existia como a do pequeno cais. Era a paisagem do retorno ao lar, de Maria da Glória, das crianças e agora... seria também o lar do sapo-banana. Irremediável.

Merda. Tinha que lembrar? Estava tentando livrar-se disso, porém o fato é que ele estava ali. Assim como as gaivotas que gorjeavam alegres ao redor do barco, assim como o pó-pó-pó sem fim do motor e seu cheiro de diesel, assim como o pequeno fogareiro ao lado da tábua que respondia por pia improvisada, sempre cercada de escamas, assim como a garrafa vazia de aguardente, que sempre era vazia na volta, assim como tudo o que sempre foi normal aquela praga instalara-se. Jeito não haveria de desfazer-se. Não haveria.

Travara o leme com as pedras. Desnecessário. A pequena embarcação sabia de cor o rumo da volta. Maldição. Tudo, menos aquilo. Amaldiçoado retorno.

Que vergonha, que vergonha. Filho de pescador, neto de pescador, era ilustre o Mário. Uma espécie de chefe político no pequeno arraial caiçara do sul do país. Foi ele quem conseguiu junto à diretoria da empresa de pesca as três coisas fundamentais para o vilarejo: escola, posto de saúde e telefone. A energia elétrica fora coisa de seu pai.

Com todo esse prestígio alcançara destaque. Dava palpites, era consultado. O posto telefônico ficava na sua casa e era operado pela Maria da Glória. Sua menina mais velha havia estudado no Instituto de Educação lá na cidade e era a professora do grupo escolar.

Conseguiu para a família um certo padrão de conforto. Um sem luxo assim, de sandálias de dedo, porém o melhor padrão de toda a baía e arredores.

Mantinha a fama de ser o único a sair sozinho para a lida. Valente como ele só.

Não levava ajudantes embora pela vizinhança, rapazotes barrigudinhos e amarelos oferecerem-se como aprendizes, gratuitamente. Ele dizia: um é bom, um é bom, um é bom.
Mais do que um homem embarcado não gosto. Não gosto de papo de homem, não gosto de cheiro de homem. Gosto é do meu barco assim. Eu cuido, eu pesco, eu trago, eu vendo. Antes não fosse assim, pelo menos teria agora uma testemunha para aquela coisa grotesca... Um álibi para corroborar a sua falta de culpa nesse episódio.

É verdade que a pesca havia sido boa. Tainhas, tainhotas, linguados, alguns xaréus, uma beleza, só vendo. Da pequena Ilha dos Siris trazia ainda uma preciosa carga extra. Tinha matado com rede de malha irregular - as fiscalizações periódicas faziam vista grossa, afinal era o Mário - um peso grande de camarões, e nesta época de entresafra isso valia mais que ouro. Seria uma pesca de resultado festivo. Já fazia o caminho da volta quando foi dar atenção aquilo... Tudo ia tão bem. Por que não ignorou? Por que não desviou a embarcação?

De tudo se livrou no mar. De ventos fortes, temporais. Uma vez, numa dessas virações do tempo em que o dia vira noite e o mar liso e sereno de baía encapela mais que pedra escarpada, ficou sem motor e leme. Foi jogado para fora da baía, muito além do manguezal. Olhava e previa: ê dia de morte! Adeus Maria da Glória, adeus crianças. Agarrou-se firme com Santa Bárbara, lembrou-se de Clara Nunes (depois da família e do mar era o que ele mais gostava em sua vida) : " O mar serenou quando ela pisou n'areia. Quem samba na beira do mar, é sereia." O motor desengasgou na hora. O leme voltou a dar o caminho de casa. Por isso não tinha medo de nada, que nada o assustaria. Só não contava com aquilo que agora trazia muito a contragosto.

Faltava pouco mais de milha para o porto quando tomou sua decisão. Não passaria por aquela humilhação. Sua Maria da Glória e as crianças jamais seriam menosprezados por serem família dele. Não depois de tudo o que fez. De tudo o que construiu. Deu meia-volta a apontou para a saída da baía. Tinha óleo de sobra e gelo, muito. A brisa morna, frio virou. Deu vontade de ter gola rolê, boina e cachimbo.

Rasgou as águas por mais de três dias até que novamente em sua vida um trovão cortou o céu e sobreveio a tormenta. Não teve medo do remorso, não teve medo da viração. Tinha Santa Bárbara e não tinha medo. Levou uma porrada do leme e apagou. A corrente fez o resto. No despertar viu um porto bem próximo. Mais simples que o seu porto, porém um porto. Amarrou sua nave em terra estranha de fala esquisita. Tão esquisita, que esquisita queria dizer bom, muito bom. Chegou assim sem passado, mas rico de peixe.

Tornou-se lenda. Ganhou dinheiro, ganhou cidadania. Agora não pescava mais. Tornara-se o dono do entreposto. Mais tarde grande empresário de pescados. Rico. Muito rico. Mudou para a capital.

Naquele apartamento luxuoso nada mais guardava sua história, seu passado. Quase nada. Apenas uns cd's de Clara Nunes que ele importava, um santinho de Santa Bárbara, um velho alicate com capa e,

Aquele bendito sapo-banana, do qual, afinal de contas, jamais precisou dar explicações.

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