- I -
Vivo assim. Sem imputar culpas ou perdas. Apenas constato. Não é
que eu goste, nem que desgoste. É apenas costume antigo, a vida. Agora
a aposentadoria. Se quero mudar ? Não creio. Não sei se sobreviveria
a ela. Avesso a qualquer mudança. Única coisa que me tira do sério.
Mudança.
Nunca mudei o caminho sequer, pelo menos desde que troquei o bonde pelo ônibus.
Aliás, trocaram. Eu preferia o bonde (apesar das chuvas de março),
entretanto o progresso cambia tudo. Aceito. Não mudo nem as palavras
ditadas na oração matinal. Deus deve estar cansado de mim. Não...
Não me abandonou, apenas deve ter de cor as palavras. Quando atende a
ligação e percebe que sou eu, põe o fone sobre a caixinha
musical. Abençoe minha família, protege minha casa, guarda-nos
do mal, exime os meus de fardos sobrepesados, Ave-Maria, Pai Nosso, Credo, a
água tira finalmente o xampu, termino de escovar os dentes,etc, amém.
O amém, bem na hora em que enfio as pontas da toalha, torcidas, dentro
das orelhas para tirar a cera que escorre com a água quente. Greensleaves,
toca a caixinha musical Dele.
As cinco, estou no ponto. As seis e meia, desço (já da segunda
condução) em frente ao botequim que abre as portas. Bomdia-média-bomtrabalho-prosenhortambém-otroco-brigado.
Entro na escola (é lá que trabalho), bom dia. Ele, porteiro há
muito tempo e quase surdo, não deixa de responder porque conhece bem
a pergunta. Bom dia professor, boa aula. Professor... Nunca desejei ser professor,
nunca fui. Engano antigo.
Adentro a biblioteca e sinto o seu cheiro pesado. É o mesmo cheiro que
devo ter. Algo de mofo, algo de antigo, algo de tradicional. Cheiro dos livros.
O mofo não. O mofo é só meu. A quintessência da mediocridade
cotidiana minha.
Reviso a cada dia uma estante. Toda. Dos pés a prateleira mais alta,
eu tiro um por um. Espano. Flanelo e devolvo. Em seis meses volto a primeira
estante, de forma que, ao final do ano letivo, os livros passaram por duas limpezas
completas. Quando volto de férias começo tudo de novo. Mas não
dessa vez. Não haverá recomeço.
- II -
Seis e meia da tarde. As crianças foram, os professores foram, as coordenadoras
foram, o diretor foi. Último dia letivo. Revoada. O vigia fecha o pesado
portão de ferro pintado de azul e amarelo e volta ao seu posto. Apenas
outra luz em toda a escola: Os derradeiros minutos de trabalho.
Sobre a pequena escada de madeira, o Ajudante de Biblioteca Escolar Municipal,
Grau 3, retira para a caixa de plástico os últimos volumes do
topo. Lê-se no rosto um cansaço em cada ruga. Em suas cãs.
Leva e trás as mãos magras e com os sinais senis tão precoces.
Cinquenta, por aí, mas aparenta uns setenta. Tem que terminar o
trabalho antes das férias. O diretor assim determinou. Todos eles determinam
a tantos anos. Sempre cumpriu tudo. Nem uma marca em sua ficha funcional. Atraso,
insurgência, falta de asseio, nada, nada. Desce com a caixa de plástico.
Senta. Deposita a caixa sobre suas pernas. Uniforme cáqui. No bolso
a identificação: ABEM3. Paredes cáqui. Por um instante
pensa que se alguém entrar naquele momento não o distinguirá
na sala. O chão cáqui em placas vulcapiso, o esmalte das estantes
de ferro. Cáqui.
Uma vez, antes de guardar um livro, folheou um pouco. Raro acontecer isto.
Sempre dizia que livro é para entregar, receber a devolução,
por na estante, tirar, limpar, repor. Aquele ele folheou. Descobriu-se quase
Flicts. Quase. Por este detalhe não o era: Quase. Era cáqui. Irremediavelmente
cáqui.
Pôs a caixa na mesa, cáqui como tudo. Acarinhou. Tinha amor pelos
livros. Mais do que pela família, mais do que por tudo. Não ligava
para a literatura. Amava os objetos. Estes sim. Sua vida.
Os últimos livros, os últimos mesmo. Espana. Flanela. Alisa as
lombadas, procura asperezas e poeiras. Não há. Ele mesmo não
é áspero e tira suas poeiras regularmente. Certamente não
teriam estes defeitos os objetos de seu trabalho.
Ao repor o último na caixa que subiria com ele a estante, uma lágrima
poderia ser reparada. Subiu a escada, escalou prateleira. Arrumou os livros
em seus lugares. Por algum motivo, estanque, permaneceu no alto da escada. Seu
olhar traçou uma panorâmica da sala. Deve ter tido uma bela vista
lá de cima.
- III -
E essa agora. Eu choro. O que sinto nesta última hora ? Tudo aqui em
cima parece ser meu e eu sou de tudo. Como posso afastar-me ? Ano por ano, dia
por dia aqui nesta biblioteca. Nunca me preparei para este momento. Que dor.
Ali. Olha ali ! A estante dos infantis. Os pequenos guris com os nomes dos
livros escritos nos cadernos. A professora mandou, eles pedem e eu acho. Sempre
achei todos. Mesmo as aquisições mais recentes. Um lugar pra cada
coisa e cada coisa em seu lugar. Lá a dos infanto-juvenis, e as de ciências,
matemática, enciclopédias.
Agora me tiram o lugar. Em casa, a família. Filhos já crescidos,
casando. Nunca foi lá o meu lugar. Já estava aqui antes de casar,
antes de ter filhos, antes que aqui existisse, antes de mim...