A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Sr. Obnóxio, o livro

(Costa Abrahão)

- I -

Vivo assim. Sem imputar culpas ou perdas. Apenas constato. Não é que eu goste, nem que desgoste. É apenas costume antigo, a vida. Agora a aposentadoria. Se quero mudar ? Não creio. Não sei se sobreviveria a ela. Avesso a qualquer mudança. Única coisa que me tira do sério. Mudança.

Nunca mudei o caminho sequer, pelo menos desde que troquei o bonde pelo ônibus. Aliás, trocaram. Eu preferia o bonde (apesar das chuvas de março), entretanto o progresso cambia tudo. Aceito. Não mudo nem as palavras ditadas na oração matinal. Deus deve estar cansado de mim. Não... Não me abandonou, apenas deve ter de cor as palavras. Quando atende a ligação e percebe que sou eu, põe o fone sobre a caixinha musical. Abençoe minha família, protege minha casa, guarda-nos do mal, exime os meus de fardos sobrepesados, Ave-Maria, Pai Nosso, Credo, a água tira finalmente o xampu, termino de escovar os dentes,etc, amém. O amém, bem na hora em que enfio as pontas da toalha, torcidas, dentro das orelhas para tirar a cera que escorre com a água quente. Greensleaves, toca a caixinha musical Dele.

As cinco, estou no ponto. As seis e meia, desço (já da segunda condução) em frente ao botequim que abre as portas. Bomdia-média-bomtrabalho-prosenhortambém-otroco-brigado. Entro na escola (é lá que trabalho), bom dia. Ele, porteiro há muito tempo e quase surdo, não deixa de responder porque conhece bem a pergunta. Bom dia professor, boa aula. Professor... Nunca desejei ser professor, nunca fui. Engano antigo.

Adentro a biblioteca e sinto o seu cheiro pesado. É o mesmo cheiro que devo ter. Algo de mofo, algo de antigo, algo de tradicional. Cheiro dos livros. O mofo não. O mofo é só meu. A quintessência da mediocridade cotidiana minha.

Reviso a cada dia uma estante. Toda. Dos pés a prateleira mais alta, eu tiro um por um. Espano. Flanelo e devolvo. Em seis meses volto a primeira estante, de forma que, ao final do ano letivo, os livros passaram por duas limpezas completas. Quando volto de férias começo tudo de novo. Mas não dessa vez. Não haverá recomeço.


- II -

Seis e meia da tarde. As crianças foram, os professores foram, as coordenadoras foram, o diretor foi. Último dia letivo. Revoada. O vigia fecha o pesado portão de ferro pintado de azul e amarelo e volta ao seu posto. Apenas outra luz em toda a escola: Os derradeiros minutos de trabalho.

Sobre a pequena escada de madeira, o Ajudante de Biblioteca Escolar Municipal, Grau 3, retira para a caixa de plástico os últimos volumes do topo. Lê-se no rosto um cansaço em cada ruga. Em suas cãs. Leva e trás as mãos magras e com os sinais senis tão precoces. Cinquenta, por aí, mas aparenta uns setenta. Tem que terminar o trabalho antes das férias. O diretor assim determinou. Todos eles determinam a tantos anos. Sempre cumpriu tudo. Nem uma marca em sua ficha funcional. Atraso, insurgência, falta de asseio, nada, nada. Desce com a caixa de plástico.

Senta. Deposita a caixa sobre suas pernas. Uniforme cáqui. No bolso a identificação: ABEM3. Paredes cáqui. Por um instante pensa que se alguém entrar naquele momento não o distinguirá na sala. O chão cáqui em placas vulcapiso, o esmalte das estantes de ferro. Cáqui.

Uma vez, antes de guardar um livro, folheou um pouco. Raro acontecer isto. Sempre dizia que livro é para entregar, receber a devolução, por na estante, tirar, limpar, repor. Aquele ele folheou. Descobriu-se quase Flicts. Quase. Por este detalhe não o era: Quase. Era cáqui. Irremediavelmente cáqui.

Pôs a caixa na mesa, cáqui como tudo. Acarinhou. Tinha amor pelos livros. Mais do que pela família, mais do que por tudo. Não ligava para a literatura. Amava os objetos. Estes sim. Sua vida.

Os últimos livros, os últimos mesmo. Espana. Flanela. Alisa as lombadas, procura asperezas e poeiras. Não há. Ele mesmo não é áspero e tira suas poeiras regularmente. Certamente não teriam estes defeitos os objetos de seu trabalho.

Ao repor o último na caixa que subiria com ele a estante, uma lágrima poderia ser reparada. Subiu a escada, escalou prateleira. Arrumou os livros em seus lugares. Por algum motivo, estanque, permaneceu no alto da escada. Seu olhar traçou uma panorâmica da sala. Deve ter tido uma bela vista lá de cima.


- III -

E essa agora. Eu choro. O que sinto nesta última hora ? Tudo aqui em cima parece ser meu e eu sou de tudo. Como posso afastar-me ? Ano por ano, dia por dia aqui nesta biblioteca. Nunca me preparei para este momento. Que dor.

Ali. Olha ali ! A estante dos infantis. Os pequenos guris com os nomes dos livros escritos nos cadernos. A professora mandou, eles pedem e eu acho. Sempre achei todos. Mesmo as aquisições mais recentes. Um lugar pra cada coisa e cada coisa em seu lugar. Lá a dos infanto-juvenis, e as de ciências, matemática, enciclopédias.

Agora me tiram o lugar. Em casa, a família. Filhos já crescidos, casando. Nunca foi lá o meu lugar. Já estava aqui antes de casar, antes de ter filhos, antes que aqui existisse, antes de mim...

Crispa-se em tremendo arrepio.

Amanhã, nada para fazer. Não porque seja férias. Porque nada mesmo haverá mais. Nem banho, nem orações, nem dentes escovados, nem ponta de toalha na orelha...

Sente a pele enrijecer.

Nem escola, nem bondes, nem ônibus, nem média, nem porteiro surdo...

Percebe que perde o contato das mãos e pés com a escada, mas também não procura pelos pés e mãos, apenas encosta seu couro duro mansamente na lateral do arco do topo da escada.

Eu queria, se Deus não estivesse agora ouvindo Greensleaves, saber o que passa em Sua cabeça. Ah se o Homem me visse agora... Oxalá tome conta dos meus...

Foi seu último pensamento, assim como o concebemos. Tombou do alto da escada por absoluta ausência de forma humana. Sem mãos e pés, seu formato retangular não sustinha o equilíbrio. Caiu no chão pesadamente, porque era pesado como a possibilidade de separação. Caiu aberto ao pé da escada, com suas páginas a mostra para quem quisesse lê-lo.

Sentia-se seguro agora. Ficaria na biblioteca para sempre. Sabia que o vigia, lá de seu posto, também velava por ele.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br