A Garganta da Serpente
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A Promessa

(Carlos Rímolo)

Esta pequena e intrigante história se iniciou lá pelos idos dos anos 70 antes de eu vir ao mundo. A minha mãe, segundo os médicos, ia ter um parto de alto risco. Católica fervorosa, ela rezava dia e noite pedindo a Deus e a nossa Senhora que tudo saísse bem.

Com as suas orações vieram as promessas. Uma era que, se o bebê nascesse com saúde e fosse um menino, ele seria um padre. Meu pai, muito angustiado com a saúde debilitada de minha mãe por conta dessa situação, concordou de imediato.

Num belo dia de primavera, contrariando os prognósticos médicos, eu nasci com boa saúde para alegria de meus pais. A ajuda divina certamente viera e dera uma mãozinha.

-Veja Joaquim, o que a fé pode fazer! Dizia ela feliz e aos prantos. Eis o presente do Senhor: um lindo e saudável menino!

-É, minha Laura, um milagre, um verdadeiro milagre! Responde meu pai com o rosto também tomado pelas lágrimas.

-E ele vai ser um padre, meu Joaquim, um padre! Foi a promessa que fiz! Já até avisei ao reverendo Pedro lá da paróquia!

-Que assim seja! Concordou meu velho feliz. Que assim seja! Completa.

Duas casas à esquerda da nossa, após um terreno baldio, num pequeno sobrado, nascia no mesmo dia uma menina que seria chamada de Mariquinha e que, pelas vias do destino, entraria em nossa história. Na verdade, na minha história.

Fui batizado com muita pompa. Havia uma grande gama de convidados e disseram que a igreja estava lindamente ornamentada e que tinha até coral.

O tempo passou rapidamente. Eu já tinha 08 anos, estudava no colégio do bairro e, era coroinha na igreja. Meus pais viviam eufóricos A minha aparição no altar era o máximo para eles. Era o início da concretização de um sonho e de uma antiga promessa.

As minhas aulas de catecismo eram bem intensas e cansativas e, o padre Pedro muito enérgico e cobrador. Isso às vezes fazia com que eu as faltasse algumas vezes. Por sorte, meus pais nunca sabiam devido ao costume de irem às missas só aos domingos.

No colégio fiquei muito amigo de uma linda loirinha que se sentava à direita de minha carteira. Seu nome era Mariquinha. Seus belos olhos azuis e meiguice me cativaram de tal forma que, passamos a andar juntos para tudo que é lado. Uma espécie de namoro de criança, embora a minha timidez não tenha me permitido arriscar nenhum beijo, somente algumas palavras doces e as manjadas mãos dadas.

Para minha grata surpresa, fui saber em seguida que, essa bela e intrigante garotinha, minha vizinha, nascera no mesmo dia meu. Foi bacana saber disso.

Com essa aproximação cada vez mais forte e presente, ela passou a me acompanhar espartanamente nessas minhas idas à igreja, tanto nas missas como nas enfadonhas aulas de catecismo. Só que mais tarde descobri, por intuição e observação, que eu era a principal e única razão dessa sua peregrinação em direção àquele palco religioso. Sentia que cada vez mais ela queria estar ao meu lado, não importava o lugar ou a situação. Curioso é que acontecia o mesmo comigo. Embora ainda muito jovens, crianças ainda, havia entre nós um processo de interação muito presente. Parecia que um completava o outro.

Mas esta maçante e árdua ida ao sacerdócio continuava, para alegria dos meus pais e martírio para mim. Comecei a ler a Bíblia Sagrada e conhecer os evangelhos. A minha família estava feliz com meu desempenho, ainda mais que eu começava a aprender o latim.

Mariquinha, que sempre estava ao meu lado, procurava sempre me auxiliar nas dúvidas e nas correções. Quando não importunada por mim, pouco falava, mas seus olhos despejavam ternura e me transmitia serenidade e equilíbrio. Dava-me forças para continuar. Sua presença era suficiente para seguir em frente e ultrapassar os obstáculos.

Embora um reles menino ainda, eu já não via a minha vida sem ela. Meus pais nada percebiam por estarem obcecados com a minha suposta vocação sacerdotal. Uma venda negra e teimosa cobria seus olhos e, os cegavam não lhes permitindo ver o óbvio.

O tempo novamente se adiantou, correu. Eu já estava com meus dezoito anos completos quando fui chamado à igreja para a prometida iniciação. Fui com meus pais e a minha Mariquinha, agora uma linda moça, para surpresa deles.

-O que essa jovem veio fazer aqui, Joaquim? Perguntou minha mãe teimando em não querer entender a presença dela sorridente ao meu lado.

-Ora Laura, ela é apenas a nossa vizinha e amiga de longa data de nosso filho! Responde meu pai conciliador, sem também querer compreender.

-Mas eles estão de mãos dadas, meu velho! Rebate ela apreensiva.

Após aqueles minutos de tensão, com um falso pigarro o padre Pedro resolve entrar em cena e, com a sua voz rouca e pausada, dá números finais à questão. Com os braços estendidos se cruzando à frente do corpo, mãos juntas e, um terço entrelaçado entre os dedos, ele olha atentamente para meus pais e se pronuncia:

-"Meus filhos! Não temos como mudar o destino que foi traçado por nosso Pai! Estes jovens aqui presentes se gostam e não podem se separar por conta de uma promessa de outrem, mesmo sendo de seus pais! A fidelidade e o amor a Cristo não pode ser repartido, ele tem que ser completo e único! Portanto, neste caso, o sacerdócio está fora de cogitações! Mas quem sabe, do fruto desse amor que ora aflora, não nasça naturalmente o prometido religioso que tanto desejam? Deixem que o Senhor decida seus caminhos e que eles sigam em paz!".

Após este pequeno sermão, dei um ligeiro olhar para meus pais e retirei-me dali lenta e silenciosamente, feliz, de mãos dadas com a minha Mariquinha, deixando-os ali, ajoelhados e cabisbaixos, fazendo as suas orações.

-Sabe, Mariquinha? Estou muito feliz por nós, mas triste pelos meus pais! Eles queriam que eu fosse um padre e lutaram a vida toda por isso!

-Meu querido, todos ouvimos e entendemos as sábias palavras do padre Pedro, portanto eles hão de compreender que o destino é o desígnio da vida!

-Sabe de uma coisa amor, que tal esquecer tudo isso e irmos tomar aquele saboroso sorvete de framboesa no bar do "seu Manoel?".


E assim, lá fomos nós saltitantes e felizes pelas estreitas ruas de nossa amada cidadezinha, de mãos dadas e cantarolando qualquer coisa, dando continuidade à nossa vida de liberdade, cumplicidade, amor e paz. Casamos-nos no dia 13 de junho de 1991, dia de Santo Antonio. Lembro-me bem de nossa pequena festa e de nossa felicidade nesse dia. Dois anos depois, veio ao mundo o nosso amado Hugo, nosso filho, como resultado desse grande e lindo amor,

Eu, hoje, com meus 38 anos completos e, ao lado da minha amada Ma riquinha, tive a maior emoção de nossas vidas quando ouvimos algo do nosso Hugo, nosso único filho:

-Pai, mãe, quero seguir a carreira do sacerdócio, quero ser um padre!

Foi uma choradeira só. Embora nosso filho soubesse da antiga promessa da avó, sentimos a forma espontânea e natural de sua declaração. Em seguida abraçou-nos comovido e, se juntou a nós naquele momento de completa felicidade. A promessa, mesmo tardia, enfim seria cumprida para alegria de todos, notadamente de meus pais que, nas alturas dos céus, devem estar abençoando esse gesto de grandeza, amor e fé de nosso filho, seu neto.

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