A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

A Carona

(Agonis)

Foi na estrada do Estado em que moro que tudo começou ou penso ter começado. Alguém pedia carona, estava escuro. Eu dei.

Era um homem aproximadamente com trinta anos e me disse que ficaria em qualquer trecho da estrada desde que estivesse mais afastado daquele local. Carregava consigo uma bolsa, destas de viagem, que não parecia tão leve. De qualquer maneira questionei sobre o lugar que queria chegar a se era de outro estado. Disse-me estar vindo do norte, simplesmente, a disse-me ainda que não sabia bem para onde queria ir.

Quisera eu ter sentido medo com aquelas frases tão imprecisas. Quisera eu ter sentido a aproximação do açoite.

Sua voz triangular emergia grave, seus olhos seguiam para frente enquanto que suas mãos não desgrudavam da bolsa. Eu, por minha vez, estava muito mais atenta ao tráfico da BR do que propriamente às curiosidades normais que despertavam. Um despertar não grande o bastante para evocar as palavras a deitar barulho sobre o silêncio que se fazia.

Estávamos próximos da cidade onde eu morava, estava voltando do trabalho. Perguntei-lhe mais Lucia vez onde queria ficar a ele me respondeu: "Qualquer esquina, qualquer lugar está bom para mim."

Deixei-o em um lugar seguro no centro da cidade e o acaso se fez. Maldito acaso que nos faz transportar para caminhos diferentes a desconhecidos do nosso próprio destino. Maldito acaso que se interpõe entre o presente e o instante futuro, mudando o curso pacífico que tão dificilmente conseguimos estar.

Ao descer do carro, abanou um tchau com a mão segurada na bolsa de viagem. Porém um passo mal dado pela avenida encurtou-lhe a viagem, chegara ao fim. Fim da viagem. Sim, um ônibus, talvez com pressa de chegar ao seu destino, bateu ruidoso no pobre moço. Deveria chamá-lo assim?

O homem teve de soltar a bolsa, jogá-la, atirá-la à calçada. Eu ainda estava parada, tudo rapidamente havia acontecido, a porta abriu, ele saiu abanando com a mão que segurava a bolsa, fechou a porta, através .... ou melhor, andou e morreu estupidamente por um ônibus caolho.

Segundos antes ele estava no carro a pronto, foi-se, acabou-se no chão. A bolsa pulsava caída na calçada a eu rapidamente, como por impulso do maldito acaso, senti-me atraída por ela. Peguei a bolsa a voltei pro carro, ninguém me viu, pois já estavam todos direcionados para o acidente. Fiquei ali, fiquei vendo o corre-corre, a ambulância, polícia, o motorista que chorava a os passageiros inconformados com o transtorno.

Ninguém me percebia a não tive a preocupação de entregar a bolsa para ninguém. Não, a bolsa ficaria comigo. Saí como se nada houvesse acontecido a minha mão não desgrudava o objeto, digamos assim, roubado de ninguém.

Lembro-me que só ao chegar em casa tivera a curiosidade estalada no meu pensar. Porém curiosidade importuna e inútil. Para onde iria afinal aquele homem? Que destino pretendia? De onde, de que cidade vinha? Era um aventureiro, um homem comum ou um criminoso? Seria um fantasma? Bem, é certo que eu já não poderia mais ter respostas para as minhas perguntas, mesmo porque seu destino foi a morte, a morto, já não tinha passado. Mas já tinha passado por mim, cruzado em minha vida a mudava agora meu curso, minha sorte, meu futuro. Antes não, mas agora sim, certamente tornava-se um fantasma.

O susto, porém, veio mais tarde. Resolvi, por bom-senso, não abrir a bolsa, deixei guardada no canto do armário. No outro dia não fiz nada a já me esquecia da bolsa, minha memória estava no acidente.

Horrorizou-me o fato de eu não ter ficado horrorizada com a tragédia, minha mente estava atenta às impressões. O moço atropelado, disforme, ensanguentado, misturando-se com o asfalto, indefinindo-se juntamente ao chão, não me causou terror. Seus olhos esbugalhados, a sua cabeça a seu cabelo esfarelado, não me causaram horror. Mas aquele resto de gente que quando não era resto pulsava como eu pulso agora, esteve sentado ao meu lado, perto, a dois palmos de mim, tocou no meu carro, vibrou vivo junto a mim.

Como eu morava em um apartamento, desci ate a garagem a fiquei olhando demoradamente para o carro, para o banco onde aquele homem havia sentado. Lembrei-me dele vivo a lembrei-me dele morto. Friamente cheguei a conclusão de que nem vivo nem morto nada valia para mim, nada valeu.

Pensei se deveria limpar o carro. Talvez desmagnetizá-lo, soltei uma gargalhada. Que ideia estúpida passava por mim, que coisa idiota. Senti vergonha. Subi para o apartamento, a bolsa estava esquecida. Eu estava impressionada, estava sim, impressionada. Dormi com a imaginação parada, minhas impressões fluíam com o abstrato.

Os dias decorrentes, dois dias exatamente, pareceram normais. Digo, externamente tudo parecia normal, no entanto comigo as coisas não eram bem assim. Mandei que lavassem o carro por dentro a por fora, principalmente, e excessivamente, no lugar onde o desconhecido havia sentado.

Durante dois dias as imagens embrulhavam-se na minha memória. Eu via no carro o vivo e o morto, entrepostos, sobrepostos, dispostos, às vezes juntos, às vezes lado a lado a em qualquer rua via o homem atravessando, no meu carro o sangue do homem escorrendo, seu corpo grudado no asfalto. Mesclavam-se, as imagens e o ambiente.

O fantasma estava na minha cabeça, rodeando, procurando espaço, mais espaço, mais vazio preenchido pelas lembranças daquela noite trágica. Ninguém notava que isto me acontecia a eu, percebendo isso, muitas vezes corria para o banheiro do serviço a ria, ria das risadas refletirem-se no espelho fazendo rir os azulejos, a pia, a torneira. Cheguei a imaginar aquele homem rindo, ele ria comigo, ele se divertia também, na minha cabeça ele estava vivo a morto a estava rindo.

Instintivamente, após estes dois dias, lembrei-me da bolsa. Fui ate o armário, mas não cheguei a abri-lo. Meu bom-senso não permitia fuçar nas coisas dos outros, seria uma falta de respeito.

Fiquei sabendo por outros do acidente do cara, mas quando se aprofundavam demais na história eu tapava os ouvidos, ou melhor dizendo, me retirava, afinal já sabia de tudo. Não queria estragar minhas próprias imagens.

Mais dois dias a eu tive que viajar novamente a trabalho. Passaria pela mesma estrada que me levara ao acaso a já me arrependia de ter lavado o carro. Fui a voltei pela mesma estrada, desta vez, no mesmo dia, voltando ao pôr-do-sol. Na volta notei viaturas da polícia exatamente no local onde eu havia parado para dar carona ao estranho. Nada fiz. Imaginei-o ali, sentado no banco, rindo. Enquanto ria seu corpo grudava-se ao banco, seus olhos esbugalhavam-se, de sua boca pingava sangue a suas mãos esvoaçavam no ar tocando o teto. Eu gargalhava à medida que o imaginava, sem me horrorizar a sem traumatizar a cabeça.

A primeira impressão, aquela que me horrorizou pelo fato de eu ter sido a última pessoa a vê-lo, falá-lo, a depois ele no meu carro, a em seguida fora do meu carro a em seguida morto! Esta primeira impressão logo foi esquecida. Coloquei neste horror a brincadeira da vida, isto é, se a vida brincava e o acaso sorria, por que não eu? Ah, o maldito acaso... era a minha vez de ter o poder. Era eu o acaso que precipitou o destino daquele sujeito. Sim! ...

Ao chegar em casa, minha curiosidade engrandecia e minhas mãos coçavam lembrando-se da bolsa. Liguei, antes, pro meu chefe para informá-lo da viagem, sua tv estava com o volume tão alto que me deu vontade de assistir também. Como que levada pelo juízo perfeito resolvi assistir tv em vez de fuçar nas coisas que não eram minhas.

A foto do coitado atropelado apareceu na tv a levantei-me do sofá. Por que diabos ele aparecia na tv depois de morto? É certo que sobre o acidente foi-se falado, saiu nos jornais a tudo, mas um acidente não é noticia pra vários dias, a não ser que morra muita gente. Seria alguém importante? Deveras sim, mas a reportagem acabou sem que eu soubesse de nada. Melhor, assim eu não me confundiria com seu passado. Resolvi mexer em sua bolsa. Abri o armário, tirei a bolsa do lugar, coloquei a bolsa sobre a cama. Era um pouco pesada a fazia um barulhinho estranho. Um sonzinho de coisas se batendo.

A imagem das mãos, daquelas duas mãos segurando tão firmemente a bolsa, me veio à cabeça. Coloquei de volta no armário.

Nestas alturas eu já não me era. Olhei-me no espelho e ri, gargalhei baixinho, às vezes por dentro, pra que ninguém ouvisse. Foi, então, que percebi a loucura em mim. Estava louca, pensava. Mas se estivesse eu não teria consciência ou teria metade dela. Só porque brincava com as imagens a ria quando tinha vontade não significava que estava louca! Além do mais ninguém me achava estranha. Eu não me era, isso é verdade, mas porque as pessoas tem o direito de mudar, de descobrir-se nelas mesmas. Conclui que a loucura não estava em mim. Eu estava lúcida a tranquila a tinha ao meu lado as imagens do desconhecido a suas cócegas.

Dormi em paz. Ao amanhecer comprei o jornal na esperança de saber sobre aquele a quem eu dera carona. Acordei curiosa sem-que-nem-pra-que uma curiosidade que mais parecia um moleque com estilingue na mão. De repente estava ali, o acidentado nas páginas policiais. Era ele a outra foto, a de um buraco, no meio da mata, ao lado da estrada, no exato lugar onde o acaso se fez... policiais em volta.

As risadas sumiram, me abandonaram. Deixei cair o jornal, passei pelo banheiro, voltei a me vi no espelho, tive medo, fui ate o armário a tirei a bolsa de dentro. Não tive coragem de abri-la. Era mesmo o que eu imaginava?! Mas a verdade não doeu tanto assim. Era! Ossos! Ossos de gente! Ossos de gente morta! Ossos a crânios a ossos e... gargalhadas, várias, várias, várias gargalhadas... muitos ossos batendo-se uns aos outros... ossos de gente que se foi e a imagem do homem, a imagem morta e a imagem viva, as duas juntas, formando uma, a imagem na minha cabeça, séria, a eu sorrindo a os ossos caindo no chão...

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br