Foi na estrada do Estado em que moro que tudo começou ou penso ter começado.
Alguém pedia carona, estava escuro. Eu dei.
Era um homem aproximadamente com trinta anos e me disse que ficaria em qualquer
trecho da estrada desde que estivesse mais afastado daquele local. Carregava consigo
uma bolsa, destas de viagem, que não parecia tão leve. De qualquer
maneira questionei sobre o lugar que queria chegar a se era de outro estado. Disse-me
estar vindo do norte, simplesmente, a disse-me ainda que não sabia bem
para onde queria ir.
Quisera eu ter sentido medo com aquelas frases tão imprecisas. Quisera
eu ter sentido a aproximação do açoite.
Sua voz triangular emergia grave, seus olhos seguiam para frente enquanto que
suas mãos não desgrudavam da bolsa. Eu, por minha vez, estava muito
mais atenta ao tráfico da BR do que propriamente às curiosidades
normais que despertavam. Um despertar não grande o bastante para evocar
as palavras a deitar barulho sobre o silêncio que se fazia.
Estávamos próximos da cidade onde eu morava, estava voltando do
trabalho. Perguntei-lhe mais Lucia vez onde queria ficar a ele me respondeu: "Qualquer
esquina, qualquer lugar está bom para mim."
Deixei-o em um lugar seguro no centro da cidade e o acaso se fez. Maldito acaso
que nos faz transportar para caminhos diferentes a desconhecidos do nosso próprio
destino. Maldito acaso que se interpõe entre o presente e o instante futuro,
mudando o curso pacífico que tão dificilmente conseguimos estar.
Ao descer do carro, abanou um tchau com a mão segurada na bolsa de viagem.
Porém um passo mal dado pela avenida encurtou-lhe a viagem, chegara ao
fim. Fim da viagem. Sim, um ônibus, talvez com pressa de chegar ao seu destino,
bateu ruidoso no pobre moço. Deveria chamá-lo assim?
O homem teve de soltar a bolsa, jogá-la, atirá-la à calçada.
Eu ainda estava parada, tudo rapidamente havia acontecido, a porta abriu, ele
saiu abanando com a mão que segurava a bolsa, fechou a porta, através
.... ou melhor, andou e morreu estupidamente por um ônibus caolho.
Segundos antes ele estava no carro a pronto, foi-se, acabou-se no chão.
A bolsa pulsava caída na calçada a eu rapidamente, como por impulso
do maldito acaso, senti-me atraída por ela. Peguei a bolsa a voltei pro
carro, ninguém me viu, pois já estavam todos direcionados para o
acidente. Fiquei ali, fiquei vendo o corre-corre, a ambulância, polícia,
o motorista que chorava a os passageiros inconformados com o transtorno.
Ninguém me percebia a não tive a preocupação de entregar
a bolsa para ninguém. Não, a bolsa ficaria comigo. Saí como
se nada houvesse acontecido a minha mão não desgrudava o objeto,
digamos assim, roubado de ninguém.
Lembro-me que só ao chegar em casa tivera a curiosidade estalada no meu
pensar. Porém curiosidade importuna e inútil. Para onde iria afinal
aquele homem? Que destino pretendia? De onde, de que cidade vinha? Era um aventureiro,
um homem comum ou um criminoso? Seria um fantasma? Bem, é certo que eu
já não poderia mais ter respostas para as minhas perguntas, mesmo
porque seu destino foi a morte, a morto, já não tinha passado. Mas
já tinha passado por mim, cruzado em minha vida a mudava agora meu curso,
minha sorte, meu futuro. Antes não, mas agora sim, certamente tornava-se
um fantasma.
O susto, porém, veio mais tarde. Resolvi, por bom-senso, não abrir
a bolsa, deixei guardada no canto do armário. No outro dia não fiz
nada a já me esquecia da bolsa, minha memória estava no acidente.
Horrorizou-me o fato de eu não ter ficado horrorizada com a tragédia,
minha mente estava atenta às impressões. O moço atropelado,
disforme, ensanguentado, misturando-se com o asfalto, indefinindo-se juntamente
ao chão, não me causou terror. Seus olhos esbugalhados, a sua cabeça
a seu cabelo esfarelado, não me causaram horror. Mas aquele resto de gente
que quando não era resto pulsava como eu pulso agora, esteve sentado ao
meu lado, perto, a dois palmos de mim, tocou no meu carro, vibrou vivo junto a
mim.
Como eu morava em um apartamento, desci ate a garagem a fiquei olhando demoradamente
para o carro, para o banco onde aquele homem havia sentado. Lembrei-me dele vivo
a lembrei-me dele morto. Friamente cheguei a conclusão de que nem vivo
nem morto nada valia para mim, nada valeu.
Pensei se deveria limpar o carro. Talvez desmagnetizá-lo, soltei uma gargalhada.
Que ideia estúpida passava por mim, que coisa idiota. Senti vergonha.
Subi para o apartamento, a bolsa estava esquecida. Eu estava impressionada, estava
sim, impressionada. Dormi com a imaginação parada, minhas impressões
fluíam com o abstrato.
Os dias decorrentes, dois dias exatamente, pareceram normais. Digo, externamente
tudo parecia normal, no entanto comigo as coisas não eram bem assim. Mandei
que lavassem o carro por dentro a por fora, principalmente, e excessivamente,
no lugar onde o desconhecido havia sentado.
Durante dois dias as imagens embrulhavam-se na minha memória. Eu via no
carro o vivo e o morto, entrepostos, sobrepostos, dispostos, às vezes juntos,
às vezes lado a lado a em qualquer rua via o homem atravessando, no meu
carro o sangue do homem escorrendo, seu corpo grudado no asfalto. Mesclavam-se,
as imagens e o ambiente.
O fantasma estava na minha cabeça, rodeando, procurando espaço,
mais espaço, mais vazio preenchido pelas lembranças daquela noite
trágica. Ninguém notava que isto me acontecia a eu, percebendo isso,
muitas vezes corria para o banheiro do serviço a ria, ria das risadas refletirem-se
no espelho fazendo rir os azulejos, a pia, a torneira. Cheguei a imaginar aquele
homem rindo, ele ria comigo, ele se divertia também, na minha cabeça
ele estava vivo a morto a estava rindo.
Instintivamente, após estes dois dias, lembrei-me da bolsa. Fui ate o armário,
mas não cheguei a abri-lo. Meu bom-senso não permitia fuçar
nas coisas dos outros, seria uma falta de respeito.
Fiquei sabendo por outros do acidente do cara, mas quando se aprofundavam demais
na história eu tapava os ouvidos, ou melhor dizendo, me retirava, afinal
já sabia de tudo. Não queria estragar minhas próprias imagens.
Mais dois dias a eu tive que viajar novamente a trabalho. Passaria pela mesma
estrada que me levara ao acaso a já me arrependia de ter lavado o carro.
Fui a voltei pela mesma estrada, desta vez, no mesmo dia, voltando ao pôr-do-sol.
Na volta notei viaturas da polícia exatamente no local onde eu havia parado
para dar carona ao estranho. Nada fiz. Imaginei-o ali, sentado no banco, rindo.
Enquanto ria seu corpo grudava-se ao banco, seus olhos esbugalhavam-se, de sua
boca pingava sangue a suas mãos esvoaçavam no ar tocando o teto.
Eu gargalhava à medida que o imaginava, sem me horrorizar a sem traumatizar
a cabeça.
A primeira impressão, aquela que me horrorizou pelo fato de eu ter sido
a última pessoa a vê-lo, falá-lo, a depois ele no meu carro,
a em seguida fora do meu carro a em seguida morto! Esta primeira impressão
logo foi esquecida. Coloquei neste horror a brincadeira da vida, isto é,
se a vida brincava e o acaso sorria, por que não eu? Ah, o maldito acaso...
era a minha vez de ter o poder. Era eu o acaso que precipitou o destino daquele
sujeito. Sim! ...
Ao chegar em casa, minha curiosidade engrandecia e minhas mãos coçavam
lembrando-se da bolsa. Liguei, antes, pro meu chefe para informá-lo da
viagem, sua tv estava com o volume tão alto que me deu vontade de assistir
também. Como que levada pelo juízo perfeito resolvi assistir tv
em vez de fuçar nas coisas que não eram minhas.
A foto do coitado atropelado apareceu na tv a levantei-me do sofá. Por
que diabos ele aparecia na tv depois de morto? É certo que sobre o acidente
foi-se falado, saiu nos jornais a tudo, mas um acidente não é noticia
pra vários dias, a não ser que morra muita gente. Seria alguém
importante? Deveras sim, mas a reportagem acabou sem que eu soubesse de nada.
Melhor, assim eu não me confundiria com seu passado. Resolvi mexer em sua
bolsa. Abri o armário, tirei a bolsa do lugar, coloquei a bolsa sobre a
cama. Era um pouco pesada a fazia um barulhinho estranho. Um sonzinho de coisas
se batendo.
A imagem das mãos, daquelas duas mãos segurando tão firmemente
a bolsa, me veio à cabeça. Coloquei de volta no armário.
Nestas alturas eu já não me era. Olhei-me no espelho e ri, gargalhei
baixinho, às vezes por dentro, pra que ninguém ouvisse. Foi, então,
que percebi a loucura em mim. Estava louca, pensava. Mas se estivesse eu não
teria consciência ou teria metade dela. Só porque brincava com as
imagens a ria quando tinha vontade não significava que estava louca! Além
do mais ninguém me achava estranha. Eu não me era, isso é
verdade, mas porque as pessoas tem o direito de mudar, de descobrir-se nelas mesmas.
Conclui que a loucura não estava em mim. Eu estava lúcida a tranquila
a tinha ao meu lado as imagens do desconhecido a suas cócegas.
Dormi em paz. Ao amanhecer comprei o jornal na esperança de saber sobre
aquele a quem eu dera carona. Acordei curiosa sem-que-nem-pra-que uma curiosidade
que mais parecia um moleque com estilingue na mão. De repente estava ali,
o acidentado nas páginas policiais. Era ele a outra foto, a de um buraco,
no meio da mata, ao lado da estrada, no exato lugar onde o acaso se fez... policiais
em volta.
As risadas sumiram, me abandonaram. Deixei cair o jornal, passei pelo banheiro,
voltei a me vi no espelho, tive medo, fui ate o armário a tirei a bolsa
de dentro. Não tive coragem de abri-la. Era mesmo o que eu imaginava?!
Mas a verdade não doeu tanto assim. Era! Ossos! Ossos de gente! Ossos de
gente morta! Ossos a crânios a ossos e... gargalhadas, várias, várias,
várias gargalhadas... muitos ossos batendo-se uns aos outros... ossos de
gente que se foi e a imagem do homem, a imagem morta e a imagem viva, as duas
juntas, formando uma, a imagem na minha cabeça, séria, a eu sorrindo
a os ossos caindo no chão...