A Garganta da Serpente
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O Gato

(Agonis)

Existia meigo horror em seus lábios. Paulo estava perplexo, ao abrir a porta do escritório não imaginaria que fosse encontrar no chão, em frente à sua mesa de trabalho, um gato morto. A janela não estava aberta, por nenhum lugar aquele bicho poderia ter entrado. Era completamente estranho, alias, todos o achariam.

Pegou o gato morto com um papel a entregou ao porteiro do prédio. Este também não soube explicar como aquele gato havia parado, a morrido, no escritório de Paulo. Ficou assustado, quase não teve coragem de olhar para o animal que balançava mole nas mãos de Paulo. Pegou um saco de lixo a pediu para que o pusesse ali. Paulo assim o fez e o porteiro jogou aquele gato no lixeiro, pequeno cômodo.

Apesar de nunca ter gostado de animais Paulo sentiu pena do gatinho a já havia esquecido o fato de ele ter sido encontrado em seu escritório. Mesmo porque algo mais impressionante estava por acontecer. A pena que sentira logo em seguida transformou?se numa mórbida vontade de alisar o pêlo daquele gato. Ora, nunca havia tocado em algo morto a perdera a oportunidade! Ideia absurda aquela, mas fora. Sua secretária chegou, já sabendo do ocorrido, pelo porteiro. Ficou muito perturbada, porém, como achou que Paulo também deveria estar, não fez comentários.

Acontece que o gato morto não saía da cabeça nem de Paulo nem de sua secretária. Ambos trabalharam sem conversar muito, o que não era de costume, pois sempre conversavam mais que trabalhavam. Neste dia as coisas foram diferentes. Paulo queria tocar novamente no gato, sua secretária queria ver o gato morto. Ambos pensavam a balançavam a cabeça como se para afugentar os pensamentos fortuitos que lhes ocorriam. Afinal apenas loucos pensariam naquilo! Ou não?

Hora do almoço, nem Paulo nem a secretária saíram para almoçar. Estavam os dois sem apetite. O telefone tocava a como também não era de costume a secretária demorava para atender. Ninguém falava nada. As cinco horas da tarde o lixeiro passaria recolhendo o lixo. Paulo queria tocar. A secretária queria ver.

Tocar. Por que não? Quem disse que é errado ter no desejo a vontade de tocar um bicho morto? No mínimo seria uma atitude mórbida. Mas por que não? Por que não poder fazer o que se tem vontade? Por que não se permitir, pelo menos uma vez, fazer algo que aos olhos dos outros parece bizarro, mas que dá cor nova à rotina humana? Que esta cor esteja numa fina camada de seda transparente, mas existe, está dentro, suavemente pedindo para que se satisfaça. E a satisfação está na entrega, não total, mas pequeninamente parcial do senso. Bastaria que fosse lá embaixo, onde fica o lixo, abrisse aquele saco a tocasse com carinho a superfície já gelada do animalzinho sem vida.

Eram três horas da tarde quando Paulo se levantou e desceu as escadas do prédio pela saída de emergência. Queria tocar a tocaria. Se alguém o visse ele diria que estava à

procura de uns papéis jogados despercebidos com o lixo do dia anterior. Quando descia as escadas deu de cara com o porteiro. Este surpreendeu-se, porém Paulo disse que não se sentia muito bem a que deveria pegar alguns papéis. Sabendo que o porteiro sentia uma imensa atração por sua secretaria, lhe disse que ela o chamava.

Estava quase chegando. Estava perto a iria tocar. Abriu vários sacos de lixo sem encontrar o gato morto. Será que enganou-se? Será que o gato não estava ali? Não, tinha que estar, tinha que estar. De repente viu que um saco de lixo estava jogado bem no canto daquele pequeno cômodo. Pegou-o carinhosamente. Com as mãos nuas pegou o gato pelo rabo, era um gato cinza-listrado, a seus olhos estavam abertos, olhos verdes que cintilavam naquela meia-escuridão. Paulo acariciou o gato com vontade, tentava achar vida e a única vida que sabia ali era o atrito de suas mãos com o pêlo frio do bicho de olhos arregalados. Paulo sentia-se quase uma música, ele era uma música orquestrada lentamente e não sentia o mau-cheiro do cômodo. Sentia tudo o que passava em sua cabeça. Sentia prazer por ter satisfeito uma vontade, banal vontade de apenas tocar aquela coisa mole e morta. De seus lábios um suave sorriso, sorriso que parecia sair das profundezas de um inferno silencioso. Não saberia dizer quantos minutos eternos ficou ali, saboreando sua insensatez. Subiu as mesmas escadas da saída de emergência com o mesmo sorriso nos lábios. De certa forma sentia-se inocente novamente, quase virgem, quase anjo.

Ao entrar no escritório, Paulo deparou-se com a secretária em prantos. Ela lhe contou que estava confusa, pois algo de muito ruim passava em sua mente.

- O que é? Pode me contar. Lembre-se de que antes de ser seu chefe sou teu amigo.

- Eu sei, mas o que vou te contar talvez o senhor não entenda. Nem eu mesma entendo. Quer dizer, eu não sei se as pessoas normais como eu sentem o que sinto agora.

- E o que é? Pode me falar. Não tenha medo.

- Não, não sei se conto. Ah, deixa pra lá. Eu nem sei porque choro agora. Foi só um ataque. Uma vontade... quer dizer, é melhor deixar pra lá mesmo.

- Escuta, eu não sei o que está se passando contigo. Mas, seja lá o que for, o que tenho pra lhe dizer é simples, já que você falou em vontade... bem, todos nós temos vontades, ou melhor, muitas vezes temos vontades que não parecem normais, vontades estranhas surgidas não sei de onde e as quais eu considero natural, completamente natural que tenhamos vontade, por mais podre ou desprovida de vida. Isso é absolutamente normal, como é normal também que satisfaçamos estas vontades. Alias, ninguém precisa ficar sabendo. Você não precisa me contar o que é, mas permita-se sentir sua vontade sem constrangimento. Esqueça as convenções a simplesmente deixe estar.

Clara ouviu tudo com atenção a nem se deu conta de que Paulo estava ligeiramente cheirando mal. Refletiu no que seu chefe havia lhe dito, concluindo que não poderia estar louca simplesmente pelo fato de, instintivamente, ter se atraído por uma coisa morta. Ela só queria ver, isso não era proibido.

Minutos antes das cinco, pediu para o chefe deixá-la sair por algum instante. Desceu pela saída de emergência como se estivesse correndo numa maratona interminável, quanto mais chegava no lugar onde sabia estar o animal morto mais ficava tonta. Tinha em si um sorriso de euforia, como se estivesse esquecida de todo o mundo. O mundo era ela, as escadas a sua vontade. Alguns minutos mais tarde Clara subia apavorada, estava a em pânico. As escadas que antes lhe ofereciam prazer agora eram nuvens de chumbo e dor, o sorriso tomara forma de cratera negra, suas mãos trêmulas tocavam a parede como sae tocasse o vácuo. Não havia grito.

Paulo percebera o pavor em Clara, mas nada disse e nada fez quando esta pegou suas coisas a partiu. Ainda em estado eufórico ele mesmo fechou o escritório mais cedo e foi para casa. Abriu uma garrafa de vinho a dormiu em paz. No outro dia abriu o jornal. Na página policial viu a foto do porteiro morto na lixeira do prédio, no fundo da foto o gato estraçalhado. O porteiro fora assassinado com um fio de metal, encontrado pelos lixeiros ao lado de um gato cinza listrado, morto, estilhaçado. Ficou paralisado com o jornal na mão. O telefone tocou muitas vezes até a secretária eletrônica atender. Clara falava com voz infernal:

- O delírio tomou conta de mim. Satisfazer minhas vontades foi meu maior prazer, meu maior pavor... meu maior crime. O delírio definitivamente tomou conta de mim.

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