Eu nunca pensei que fosse acontecer comigo, alias nunca pensei que esse tipo
de coisa acontecesse. Sempre me achei equilibrada a talvez tenha sido por isso
que os dia se prolongaram... Deixo esta carta para que saibam o verdadeiro motivo,
a verdadeira história. Muitos podem não acreditar, mas os fatos
são estes:
Heleno a eu estávamos casados há dez anos. Foi no dia do nosso
aniversário de casamento que eu acho que tudo começou realmente.
Não tivemos filhos por decisão nossa e pensávamos em um
dia, quando estivéssemos mais velhos, adotar uma criança. Já
estava em época de adotarmos, mas não tocávamos no assunto.
Possivelmente o destino não quis complicar mais minha vida, o destino
de nossas cabeças. Pois se hoje eu tivesse um filho, adotivo ou não,
não poderia fugir ou não teria feito o que fiz...
Bem, neste dia em que completamos dez anos de casados, saímos para comemorar
e quando chegamos em casa, depois das 3 da madrugada, encontrei dois presentes
em cima da cama, um para mim, outro para ele. No meu havia um colar de pérolas
? nunca meus olhos brilharam tanto ? no dele havia uma pistola automática.
Me assustei, a principio, mas logo me lembrei que Heleno havia recém
terminado seu curso de tiro, depois eu tive aquela curiosidade de tocá-la.
Guardamos os dois presentes no pequeno cofre dentro do armário. No dia
seguinte, quando Heleno saiu para trabalhar, minha vontade foi a de tocar mais
uma vez meu colar, colocá?lo com meu melhor vestido, estando nua também.
Abri o cofre a retirei a caixinha que guardava o colar, no entanto deparei?me
com aquela arma, ali, silenciosa... Passou pela minha cabeça se um dia
ela iria ferir alguém, imaginei algum ladrão ou coisa assim, deixei
de lado o colar e peguei a arma na mão. Ela parecia tão suave,
tão sensual... Acabei me esquecendo do colar e guardei tudo de volta
no cofre.
Heleno nunca havia me feito mal algum, eu o amava, ainda o amo. Não
posso e nunca o considerarei como uma vítima, não consigo vê?lo
assim, para mim ele apenas... e eu sei que me perdoará, que já
me perdoou. Culpa? Não me sinto culpada.
Os dias foram passando e eu até já havia me esquecido do colar
a da arma que, carinhosamente, eu apelidei de Luluzinha. Agora ela está
comigo, não posso deixá?la, não aguentaria viver sabendo
que não está na minha bolsa, e, afinal, se foi ela que começou
tudo, talvez ela ponha fim a tudo também. Como eu dizia, os dias me fizeram
esquecer a existência de Luluzinha e do colar, mesmo quando eu via aqueles
filmes policiais eu não me lembrava que tinha uma arma em casa ou quando
via propagandas na televisão contra o porte de armas, etc. Foi quando
fomos convidados para uma festa dada por um deputado. Eu aproveitei para usar
meu colar a novamente me deparei com a arma. Desta vez não tive tempo
de esquentá?la na mão até esquecer de tudo.
Quero aproveitar esta carta para poder dizer também que nunca usei drogas,
na verdade nunca pensei nesse assunto, nem mesmo como preocupação
social, provavelmente porque não tenho filhos. Também não
costumo beber, a não ser socialmente, é claro. Nem sequer cigarro
eu fumo. Devo acrescentar também que minha vida sempre fora normal, me
criei numa família de classe média com pais carinhosos. Nunca
apanhei a nunca tirei notas baixas, meus irmãos sempre foram meus melhores
amigos. Comecei a trabalhar só depois que me formei em administração,
no entanto, após meu casamento, parei de trabalhar. Sempre vivi rodeada
de pessoas boas, nunca sofri nenhum tipo de trauma na rua ou em qualquer outro
lugar. Nunca fui a psicólogo ou à psiquiatra. Resumindo: não
tive motivos, desses que se consideram motivos, para fazer o que fiz.
Todos os dias a minha vontade era de tocar em Luluzinha, e a tocava. Tornou?se
uma rotina abrir o cofre, retirar a arma... às vezes a lustrava, mas
eu gostava mesmo era de pegá?la com as duas mãos. Não fazia
nenhuma pose, apenas me sentava na cama pegando?a com carinho, como se fosse
uma pele. Nessas horas meu pensamento esvoaçava?se, ia o mais longe possível,
isto é, eu não pensava em nada. Mais tarde, inevitavelmente, comecei
a imaginar coisas.
Minha vida com Heleno era fantástica, quase não brigávamos.
Ele não gostava muito de minha mãe, mas isso não era motivo
para que eu me aborrecesse com ele, pelo contrário, achava engraçado.
Nunca fiquei sabendo de uma traição sua nem nunca tive um caso
ou pensara em ter. Nossa rotina sempre me agradou, ele chegava cansado em casa,
eu preparava uma janta, assistíamos a um filme que ele sempre pegava
na locadora, a depois íamos dormir. Problemas sexuais? Todo casal passa
com o tempo a fazer menos sexo, nossa vida era assim também. Acho que
transávamos umas quatro ou cinco vezes por semana. Éramos, além
de tudo, grandes amigos, conversávamos a respeito de quase tudo.
As coisas que passei a imaginar quando tocava Luluzinha eram banais a por serem
banais acabei não percebendo que fui tendo a vontade de apertar o gatilho.
Nunca apontei a arma para qualquer lugar, afinal nunca fui louca ao ponto de
ficar brincando sozinha! Mas tinha vontade de acertar a parede, de atirar na
parede, de ver a bala saindo da pistola. Com o tempo passei a imaginar a parede
sangrando, tinha vontade de rir da minha própria imaginação,
pois paredes não sangram. No entanto, pessoas...
Com relação ao resto, tudo ia bem. Minha vida seguia seu curso
normal. Não tinha raiva de ninguém e tinha meus gatos siameses
e persas, deles sim, eu sentirei saudades, do Heleno também.
Foi na noite de 20 de junho, ontem, que aconteceu. A casa está limpa,
com exceção do quarto. Já vendi meu colar, por um preço
bem abaixo, mas dá para eu me sustentar por um tempo junto com o dinheiro
que eu a Heleno tínhamos guardados, sei que isso não interessa
a ninguém, mas é só pra que saibam que estou fugindo. Fujo
porque ninguém entenderia, nem mesmo eu entendo direito, porém
não me arrependo do que fiz, nunca me arrependerei. A lei não
permitiria que eu continuasse solta, não quero ser presa, quero continuar
livre. Como viverei? Só Deus saberá. Mentalmente, me sinto flutuar,
continuo equilibrada... é possível que
não volte a fazer novamente, nunca se sabe. Eu, por enquanto, garanto.
Portanto ninguém se preocupe.
Ontem, quando fomos dormir, me deitei inquieta. Levantei?me de madrugada a
abri o cofre. Foi um impulso, eu não estava sonâmbula. Eu estava
completamente consciente de tudo. Peguei a arma na mão a atirei, duas,
três, quatro vezes no corpo de Heleno. Acho que ele nem chegou a sentir,
o sangue esparramou?se pelos lençóis a respingou na parede. A
parede sangrou. A arma está comigo. O telefone não pára
de tocar, acho que é o chefe do Heleno. Daqui a alguns minutos estarei
fora da cidade. O que aconteceu, aconteceu. Não busquem motivos, eles
não existem.
Ass.: Joana