Depois de colocar três pedras de gelo no copo, fiz menção
de preparar um outro. Quieta em seu canto escuro, ela acenou recusando a bebida.
Preferia ficar sentada ali, calada, pernas cruzadas e pensativa, fumando seu
cigarro cuja brasa ganhava vida a cada tragada.
Derramei o uísque que se acomodou tranquilo entre os cubos e depois
fui até a escrivaninha.
Colocado sobre o móvel, o copo deixou as gotas que escorriam pela parede
de vidro formarem uma pequena poça sobre o verniz. Fiquei a olhar para
a máquina de escrever, vazia, pensando no que fazer. Ao lado da velha
Ollivetti, havia algumas folhas em branco, de onde extraí uma e coloquei
atrás do rolo da máquina.
Girei-o e o papel apresentou-se a mim, virgem esperando pelo defloramento, mas
sem me excitar. Faltava aquele tesão quando os dedos, no momento certo,
se transformam nos portadores do desejo.
Ela pigarreou. Percebi que me olhava, ao mesmo tempo que acendia outro cigarro.
Balancei a cabeça negativamente. Seu vício chegava a me irritar,
o que pouco a incomodava.
Inquieta, mexeu-se na poltrona, mas não se levantou. Na esteira de uma
baforada vieram algumas palavras:
- Vai tentar de novo?
Não respondi. Iria tentar mais uma vez, sim. Iria escalar o rochedo de
Acapulco e me jogar lá de cima. Iria bater com força na água,
emergir e perguntar: "- Pra quê?"
A coragem irresponsável é a pior delas. Salta-se sobre o teclado,
cai-se sobre ele e os respingos são folhas e folhas amassadas jogadas
no cesto de papeis.
Depois de apagar o cigarro no cinzeiro de coluna e mudando de ideia
quanto à bebida, ela levantou-se e foi preparar seu próprio uísque.
O tilintar do gelo no copo não conseguiu tirar-me da apatia.
Sentada novamente na penumbra, ela passava a imagem de um espírito a
me vigiar, sempre cobrando:
- Vai tentar de novo? - insistiu.
Suspirei, com o acompanhamento de um gole:
- Ah, como a invejo. Outro gole maior e completei: - Isso também acontece
com você?
- Ah, sim. Uma, dez, mil vezes. Já perdi o número de vezes em
que fiquei como você está agora. Olhava o teclado e as letras pareciam
desordenadas, sem significado. Acontece.
- Mas você sempre achava o caminho. Seus livros estão aí
para atestar isso.
Ela riu gostoso:
- Você é um tolo. Penei para que meus livros enchessem as estantes.
Cada um deles foi um parto. Procurei soluções onde não
havia soluções; tive de criá-las. Procurei temas onde eles
já estavam desgastados; foi preciso recriá-los. E se fosse medir
meu trabalho a partir do consumo de uísque, riu, provavelmente teria
morrido de cirrose antes.
Girei a cadeira e procurei localizar seus olhos na penumbra. Ela os escondia
muito bem; talvez não gostasse de ser confrontada.
- Você é tão conflituosa quanto seus personagens.
- Ah, isso eu sou mesmo. Nós brigamos o tempo todo. Gosto de explorar
suas fraquezas; não lhes abro o caminho da redenção assim
tão facilmente. Eles é que precisam achar força para se
encontrar.
- E acabam mostrando-lhe o caminho.
- Exatamente, meu caro. Eles trabalham para mim, não o contrário.
E era uma verdade. O personagem tem sempre que sair na frente do autor e abrir
caminhos não explorados. Contudo, devem estar sempre ao alcance da vista,
ou o autor é que correria sem rumo. Ela parecia saber o distanciamento
certo, nem mais nem menos, sempre pronta a explorar o que eles lhes mostrassem.
Levantando-se, foi até a janela espiar o sol poente. Saída das
sombras, seu vestido verde parecia criar vida. Brilhava e fazia-a brilhar.
- O verde lhe cai bem, - disse-lhe à guisa de um cumprimento.
- Gostei de trabalhar com essa cor, - respondeu bebericando o scotch.
- O conflito do verde, eu me lembro, resultou numa solução belíssima.
A alegria da vida sobrepondo-se ao compromisso com a morte. Comme il faut.
Ela não disse nada. Não precisava. Ambos sabíamos que,
mesmo naquela solução aparentemente feliz, encerrava-se um mundo
de incompatibilidades. A sina de seus personagens era, e sempre foi, essa.
Por algum tempo, ficou olhando para o grande círculo vermelho descendo
para lá do fim do mundo. Suas palavras seguintes foram de ordem menos
filosóficas:
- Já pensou em usar um computador?
Ri, numa resposta lacônica e ao mesmo tempo idiota:
- Com textos já preparados eletronicamente...
- Por questões práticas, mesmo. Veja só: até o papa
se utiliza da Internet para pedir perdão para as cagadas que a Igreja
fez.
Desta vez, ri livre:
- Você tem classe para falar palavrões. Aliás, ninguém
fala "merde" melhor do que você.
- Sou uma puta erudita, já esqueceu? - E riu, completando: - Ah, "seu"
Durval... se você visse no que deu a sua filha...
Fiquei calado, sorrindo, balançando a cabeça mostrando um não
contraditório, pois me agradava sua forma de botar os sentimentos para
fora. Voltei a encarar a velha máquina:
- Não sei como entrar nos conflitos alheios se não consigo resolver
os meus.
Ela se tornou séria:
- É mesmo? E quem te disse que você precisa se livrar dos seus
para encontrar os dos outros? Nunca te passou pela cabeça que o que você
chama de "seu conflito" pode ser o mesmo de seus personagens? Ainda
que vocês devam crescer separados, estão, ao mesmo tempo, juntos,
entende? - Parou de falar para uma bebericada, mas voltou com toda a carga:
- Juntem as cabeças. Façam um brain storming. Fujam do
melodramático. Critiquem e critiquem-se. Uns ajudando aos outros. E você,
com certeza, acabará achando o caminho para depuração de
seus textos.
- Mas eu penso por eles.
De repente, a percebi nervosa. Sabia que, quando necessário, impunha-se.
Mas não era uma imposição de cima para baixo; era na horizontal,
olho no olho. Tinha uma espada nas mãos, mas permitia que seu oponente
também portasse outra.
- Não me faça ouvir isso de novo. Você pensa com eles.
Verdade das verdades, admiti. De uma certa maneira, estava unido a eles. Se
houvesse harmonia - fosse o caso e ela apareceria sem remorsos de minha parte
- não poderia soar falsa, mas haveria uma seta indicando o caminho de um conflito inerente a todos nós,
autor e personagens. Contraditório ou não, há a possibilidade
da harmonia conflituosa.
Se houvesse harmonia, não seria minha morte. Para ela, talvez. Sempre
fora uma rebelde com muitas causas, alimentando-se das incompatibilidades que
criava. Mas seria o epílogo não desejado para seus dramas. Não
haveria espaço para a paz eterna, mesmo para alguém fadado à
eternidade.
Meus dedos bateram algumas letras num começo de qualquer coisa. Logo
parei e fiquei com os cotovelos apoiados na escrivaninha, segurando o queixo.
A presença verde e onírica dela se espargia pela sala. Um espírito
que sintetizava todas as cores numa só flutuava pelo ambiente, passando
por cima de tensões, mas comungando com elas. Revirando desamores, mas
neles procurando energia.
Deixei o papel esperando. Uma olhadela cúmplice para ele e depois fui
até a janela para ver o pôr-do-sol.