A Garganta da Serpente
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Salve, agraciada!

(Claudio Brites)

Muito cedo. O céu guardava os tons noturnos, o aroma no ar era o das estrelas e o clima ainda era de luar. O sol muito claro despontava no horizonte preguiçoso. O sacerdote abriu a porta da frente da velha igrejinha da cidade. A velha senhora, que há algum tempo esperava o ranger das dobradiças, parou o terço começado em casa e entrou. Sua benção. Deus te abençoe. Dirigiu-se ao altar de São Miguel, parou e olhou para o Príncipe Celestial que segurava a espada da justiça enquanto tinha o próprio Lúcifer subjugado sob seus pés. Tanto poder tanta glória, só ali poderia encontrar a misericórdia e a paz.

Não sabia se ajoelhava-se hoje, o corpo doía muito. A fraqueza tomava conta de seus músculos e ossos. Que saudade dos tempos de energia que labutava do momento em que o sol ameaçava levantar até de noitezinha. Como podia estar assim agora? Porque Deus deixara que ela ficasse assim velha, doente, triste e abandonada?

Ajoelhou-se. Balbuciou alguns aves e outros améns, disse ao pai que está no céu que fosse feita a vontade dele. Respirou fundo, encarou São Miguel e logo abaixou a cabeça. Não sabia o que falar hoje. Pedir mais o quê? Deus já não a escutava há muito. Ela, uma mulher de fé, que nunca largava o rosário, mesmo quando não estava rezando, tinha uma vida totalmente abandonada da graça divina. Felizes os que sofrem? Sandice! Felizes os que são felizes, isso sim!

Perdão senhor, misericórdia!

Na sua casa nada mais ia bem. Seus filhos, cinco, todos a abandonaram. Casou e foi embora. Casou e foi embora. Viajou pra cidade e nunca mais deu noticias. Nunca pára em casa e quando vem só é mesmo pra dormir e comer. Brigou com ela por causa de homem. Todos a abandonaram, há muito não ouve: Eu te amo mãe! Como vai a senhora?

Parece triste? É muito pior.

Asilo? Nem pensar! Minha casa! Minha!

Senhor, salva-me!

Só Deus poderia lhe salvar, mudar tudo isso, trazer seus filhinhos de volta, curar sua alma e também seu corpo que rangia com o reumatismo e sofria com os problemas do coração. Coração fraco. Triste e fraco. A senhora não pode passar nervoso! Disse o Doutor. Ora, só nervoso que passo! Coração, tempo desses explode de dor e desgosto!

O padre agora varria a nave da igreja. A anciã tentou mais uma vez olhar para o Príncipe das Milícias Celestes, encarou seus olhos azuis, seu rosto brando. Salve, Salve, Salve! Amém! E conseguiu então falar:

- Sinhô , salva cum sua graça misericordiosa, alumia minha vida. Trais meus fio de volta. Eu nu'guento mais tanto disgosto, tanta solidão. Mó de que o Senhô num fala cumigo? Pu'que não me atende? Espia meus pecado, tem piedade e me escuta que eu não sei mais o que fazê.

As palavras saíram de uma vez. Abaixou a cabeça com um amém. Beijou o rosário. Quase derramou uma lágrima. O corpo tremia com a debilidade que se agravava, respiração difícil, coração fraco, fraco.

Levantou os olhos, olhou para o capeta caído, pensou, falou:

- Sinhô do céu, sei que pode tudo, fala cumigo, num guento mais chorá. Fala cumigo, responde mias prece, num sei mais o que fazê, os que amo me abandonaram, só me resta o Sinhô. Me dá uma graça. São Miguel que pisô o demônio, rogai por nós!

Baixou a cabeça. Silêncio. A vassoura e o padre já haviam parado. Ela deixava umas lágrimas escorrerem, balbuciava mais credos e hosanas. A fé queria ir embora, não deixava.

Entre um pai da glória e uma mãe de misericórdia sentiu-se mais aliviada, sem saber o porquê, chorou, apertou o terço junto ao peito. Seu coração, abatido, bobeou calmo. Calmo como todo seu corpo em seguida. Pareceu então que uma anestesia tomou conta de seu espírito, a tristeza pareceu afugentada. É a oração! Sentiu algo que nunca sentira antes, algo quente a envolvia. Calor. Paz. Alegria. Coisa de Deus.

A velha levantou novamente a cabeça. Uma luz pulsava da imagem do Arcanjo. Lágrimas. A imagem parecia viva, parecia não, estava viva! Toda ela, do Arcanjo ao Demônio. Os olhos de Miguel brilhavam enquanto a olhava. Aquele corpo pequeno de imagem, vivo, sorrindo. Uma voz leve como brisa de primavera saía de sua boca. Não temas. Temor. O senhor te ouviu. Falta de ar. És agraciada porque ele te ama. Alegria.

Ele fará da sua vida testemunho vivo. O coração acelerou, seria verdade o que o Arcanjo falava? Nunca sentira aquilo antes, o coração parecia que ia explodir de felicidade, lágrimas escorriam por seu rosto enquanto apertava as contas do rosário junto ao peito, tão nervosa. O coração batia forte. O anjo abaixou a espada e abriu os braços calorosamente. Ele te ouviu. O coração da idosa apertou. Receberás o que pedes. Apertou. Deus diz que viverás novamente na felicidade. Apertou. Na graça! Parou. O corpo idoso com terço na mão caiu junto com o genuflexório, inerte.

O anjo viu a cena com desentendidos e arregalados olhos azuis. Encarou o demônio que, com cara de espanto, mais do que nunca, concluía que não entendia mesmo dos planos do Divino. Então ouviram passos sacerdotais que vinham alarmados pelo barulho da queda. Miguel olhou mais uma vez para a pobre, respirou fundo e, levantando a espada, estatuou-se novamente, confuso.

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