A Garganta da Serpente
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Sem gelo, por favor

(Célia Demézio)

Éramos quatro doidões, sabia que algo dentro de mim me sacolejava a alma. Minha boca super seca, e podia sentir a tensão subindo pela minha espinha. Uma espécie de viagem para o inferno. Só posso me lembrar das casas deixadas pra trás, um vento correndo em meu rosto, a máquina a 200 por hora. Maurão acendeu o cachimbo de crack, enquanto um negão de bermuda, que falava um monte Caralho! Onde foi parar?!, ao meu lado catava pedrinha por pedrinha em baixo do banco traseiro. Passei a mão no nariz, e senti aquele líquido frio descer até a ponta do meu lábio superior. Aquelas pedras me anestesiaram emocionalmente e eu só podia estar vendo era um filme super 8, pois tudo me parecia P&B. O bom e velho Joe Cocker dos anos 70 ao vivo na maior altura, no toca-fita do Palium vermelho zerinho do Maurão. Aquela rouquidão misturada a ácido lisérgico arrepiou os cabelos dos nossos dedões dos pés. Logo depois o negão abriu a porta do carro, e aproveitei para esticar as pernas. Naquele instante o tempo girava em círculos para nós todos. Daqui a alguns instantes já estávamos em frente ao Glacial Bar Night, uma boate que se pode dizer na hora "chiquérrima". Entramos com as mãos nos bolsos, olhos avermelhados, rostos e luzes pareciam os enfeites da casa. Lili, a chilena, que tinha olhos de gato, roupa indiana e tatuagem de florzinha no tornozelo, saiu do carro do Maurão, gritando naquele sotaque portunhol que legal! Entrou pulando, logo paquerando o barman, e me veio aquela pontinha de aquela pontinha de ciúmes latejando dentro do peito, mas mudei a direção do olhar, e agora estava simplesmente vendo um casal tomar choop. Se eu girasse mais um pouco a cabeça, iria vomitar o churrasquinho que a gente tinha comido no boteco Tubarão, lá mesmo no carpete verde do Glacial Bar. Quando dei conta Maurão estava pegando o garçom chefe pelo colarinho gritando na cara dele Eu sou um idiota, repita! Fala! Tô pagando! É dinheiro que vocês querem caralho! Pois eu tenho dinheiro! O garçom fingindo não estar incomodado com a situação, mas ao mesmo tempo cagando de medo de morrer estrangulado, respondeu prontamente Eu sou um idiota. Maurão largou o idiota, e ficou batendo no balcão gritando que podia tudo. O garçom chefe ajeitou sua gravata borboleta e sorriu amarelo, dando um sinal a um outro garçom, subordinado a ele, para que ele se mexesse o mais rápido possível e nos desse uma mesa. Maurão tinha muita grana e uma carência muito maior. Seu irmão era campeão de judô, enquanto ele queimava, cheirava, bebia e até enfiava no cu o dinheiro da Academia Olimpíadas de Los Angeles. Lili, chilena, bebia um monte, viajava, ria um monte também. Eu até que gostei da nigth birinight. Não me lembro o que comemos, bebemos e nem do que falamos naquele bar de classe média médiazinha, mas sempre gostei de parques de diversões.

Só me lembro do vento em minha cara, e nós no carro novamente, do Joe Cocker e uma latinha de cerveja quente na minha mão. O resto do aldol com vodka deu seu recado, olhava as montanhas que tinham ficado no lugar dos edifícios, e pareciam que elas faziam um certo movimento, um ziguezague linear e gostoso. Ouvi vozes, o céu escuro, as milhares de estrelas e o som de coral de grilos, sinfônico e solitário. Os grilos seriam excelentes músicos, inovadores, tranquilos, e não precisariam da fama para se sentir realizados. Viva os Grilos! Mas, nós, comemos a plantinha a bilhões de anos atrás, construímos a sociedade, de paz, de guerra, de amor, de cartões magnéticos, e outras coisas mais que virão nos próximos 10 mil anos, com toda certeza.

Uma enfermeira bateu na minha cara, e senti aos poucos que estava viva, pois as luzes artificiais me surgiram como spots, e naquele brilho frio pude ouvir vozes conhecidas, na verdade estava acordada, só um pouco viajandona com o cheiro de éter. Ouvi o Maurão falando com aquele tom melancólico de quem está de bode depois de detonar vários produtos prejudiciais à saúde. Isso que era foda, ele no final das contas era apenas uma bichona, recalcado e chorão. Lili estava ao meu lado, com os cabelos soltos. Seus olhos tinham água, e com seu portunhol chileno me disse Pô! Pense que voce irse para lo sueño eterno, caralo! Dísete major miedo na gente!

Eu não consegui falar nada. Aquela sonda enfiada na minha mão me deixava deprimida. A alegria de viver dura pouco, e amarramos nossas frustrações em nosso pescoço, até que resolvemos gravar um After Advice e dizer aos nossos amigos, não bebam, não fumem, não cheirem, não amem...

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