"Nasci ás dezenove horas. Portanto, quero que tudo acabe no mesmo
horário."
O Liebestraum número 3, em Lá bemol, de Liszt toca
suave na vitrola do quarto.
"Fiz quase tudo que quis na minha vida", disse o rapaz para o médico,
que sentava próximo ao seu leito, em um hospital em Calcutá, na
Índia, "...me arrependi algumas vezes, outras não. Não
irei me arrepender desta decisão. Ah, não! Desta eu não
irei!" Fechou os olhos e respirou fundo, como se fosse esforço demais
deixa-los abertos. "Além disso, estou pagando!"
"O problema, meu rapaz, não é quantas rúpias terá
de me pagar. O problema é outro..."
"Qual?"
"...o arrependimento."
"Bobagem."
"È típico do egoísta....", retrucou o médico,
ajustando seus óculos. "O arrependimento nem sempre atinge aquele
que o provoca, rapaz."
"Quando eu era criança, por volta dos meus nove ou dez anos, fugi
escondido no vagão de um trem, daqui até Bombaim. Atravessei toda
a Índia. Sozinho. Tive muito medo, mas fiz assim mesmo. Passaram-se vinte
anos, e ainda lembro da jornada."
Uma nova música começa a tocar, Debussy, Clair de Lune.
"Aprendi muito, doutor. Com o passar dos anos, aprendi bem mais sobre aquela
viagem. Afinal, eu era muito jovem para entender meu povo, sua diversidade,
as religiões. Conheci budistas, hindus, protestantes, islâmicos
e até católicos. Conheci o desconhecido porque tive coragem. Coragem,
doutor. Essa é a palavra."
"È bom poder ouvir o relato de uma experiência, direto da
boca daquele que vivenciou o momento, mas o que você deseja fazer, não
lhe dará essa oportunidade, entende?"
Os dois se entreolhavam com atenção.
"Mas trata-se de coragem, doutor. Coragem, entende!?"
"LOUCURA!!! Como posso apreciar sua coragem, sua experiência, se
não ouvirei diretamente de você, o relato da jornada que deseja
fazer?"
O jovem pausou pensante. O espírito aguou-lhe os olhos. O singular efeito
de uma fraca gota de lágrima revelou sua emoção. A sua
direita, a maquina improvisada de soro. Sobre a mesa, a solução
a ser usada, as bandejas de aço inoxidável com algodões
e agulhas.
"Será mais uma experiência doutor. Mais uma decisão
que posso fazer, enquanto tenho a plena e sã consciência dos meus
desejos. Tenho pouco tempo. Mas tenho o poder de decidir por mim", falou
firme. Em seguida, respirou fundo, repondo o ar aos pulmões.
O doutor levantou e andou em círculos pelo quarto por algum tempo. Mãos
para trás, fitava o chão com profunda contemplação.
A penumbra da noite chegou rápido.
Dirigiu-se até o equipamento, e sem preâmbulo, sentou e iniciou
todos os ajustes e dosagens.
O relógio de parede lia dezoito e cinquenta.
"Coragem, doutor!", incentivava o rapaz.
Por alguns minutos, ouvia-se apenas as melodias vindas da vitrola.
"Segure esse controle. Quando você estiver pronto...", tossiu
repetidamente procurando procrastinar o inevitável, "...aperte o
botão preto para liberar a solução", Falou o doutor
instruindo o rapaz, cruzou os braços, e recuou três passos.
As primeiras gotas escorreram pela cânula virgem com rapidez, entraram
na agulha e seguiram de veia adentro. O jovem olhou apático para o doutor,
até que veio o primeiro espasmo e os olhos se arregalaram. Enquanto uma
das mãos agarrava firme a lateral do colchão a outra se entendia
trêmula buscando consolo.
Na vitrola a melodia triste do Impromptu número 1, em Dó menor,
de Schubert, trazia em sua cadência, ritmo análogo ao
da frágil vida que se exauria em gradativa lentidão, sobre a cama
do hospital.
"Desejo apenas uma resposta", o doutor se apressou na pergunta "o
que sente agora, coragem, ou arrependimento???"
Silencio.