A Garganta da Serpente
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O Escritor de Obituários

(Charles M. Phelan)

A casa 1113 da Rua Morton parecia abandonada, não fosse pelo jornal que era arremessado pelo jornaleiro, ao pé da porta, todas as manhãs. Ali ficava, intacto, todo o dia. Era recolhido somente durante a noite. A aparência macabra da 1113 dava-se pelo aspecto de abandono que possuía. Durante anos, as estações haviam castigado o exterior da casa. A chuva o sol e a neve encarregaram-se de descascar a maior parte da pintura, e desbotar, para um cinza-sombrio e sem vida, o que havia restado. Capim brotava de cada fissura da passarela de entrada, quase obstruindo o caminho até a porta. A lâmpada externa, que deveria iluminar este caminho, pendurava-se pelo fio também desbotado com o tempo. Dali ouvia-se o Clang, Clang, Clang da haste de metal que segurava a lâmpada, batendo contra a parede. A noite na rua Morton, era diferente de qualquer rua. Ouvia-se o ranger da dobradiça da porta uivar como uma sinfonia de mortos. Era o mais horrendo dos gemidos. Uma suplica que ainda hoje ressoa nos meus ouvidos. Era precisamente nesse momento que a porta abria lentamente permitindo que a mão enluvada alcançasse o jornal e o recolhesse. Além do jornal, as provisões também chegavam por entrega. E do mesmo modo eram recolhidas.

Observei essa rotina dos 7 aos 17 anos. Ninguém entrava. Somente o vulto corcunda saía, deslocando-se a passos de tartaruga pela calçada até o correio. Todas as noites a mesma rotina.

Fiz da rotina dele, a minha. Não em ir até o correio, mas em observar o velho corcunda vagando na noite. Aproveitei minha solidão para poder acompanhar a vida deste homem sem amigos e sem família. Deste homem sem face. Digo isso por nunca ter visto sequer a cor de seu cabelo. A escuridão da noite impossibilitava meu olhar investigativo. Tentei em algumas ocasiões me posicionar de modo que me fosse favorável à visão do homem, mas não consegui ver o que procurava. Usava uma capa preta que começava dos joelhos, e terminava na altura da face com seu colarinho levantado. O zíper puxado até o último trilho, repousava acima do dorso do nariz. Um gorro preto descia até a altura das sobrancelhas, deixando apenas os olhos descobertos. Dos olhos nada pude detectar. A escuridão reluzia apenas o brilho natural deles. Pareciam duas contas pretas.

A imagem noturna me encantava. Instigava minha curiosidade. O homem da noite. Um homem sem medo do escuro. Um homem sem medo da solidão. Parecia ter escolhido aquele horário deliberadamente. Talvez desejasse evitar contato com estranhos. Parecia um vilão e ao mesmo tempo um super herói. Tinha se tornado minha única companhia por anos.

A meia-noite eu acordava e corria para janela do meu quarto para vê-lo ir ao correio e colocar o envelope por baixo da porta. Esperava sempre seu retorno. Após alguns meses observando da janela do meu quarto, minha presença fora detectada. Com isso, a rotina do velho também mudara. Éramos os únicos acordados. Eu e ele. Dois solitários da madrugada. Senti que não lhe incomodava. Quem sabe, por mais singular que seja esta situação, era eu, o único amigo daquele ser misterioso. O ranço da solidão podia ser compartilhado por dois solitários. Eu da janela, e ele da rua.

Após seu retorno do correio, o jornal era devolvido á calçada com a mesma discrição que usara para busca-lo. Primeiro, o rugir da dobradiça; depois a mão, com a delicadeza de um perito em bombas, colocava o jornal próximo ao batente da entrada. Interpretei aquela atitude como uma forma de fazer contato comigo, já que até então jamais havia retornado jornal algum á calçada.

Fui impulsionado por uma curiosidade sufocante. Queria buscar o jornal. Pela primeira vez me vi infringindo a lei, mas não resisti. Fui até a entrada da passarela que levava á porta. Ponderei por alguns segundos a minha decisão. Convenci-me de que era tarde demais para recuar. De onde eu estava, podia ver o jornal embrulhado em um saco plástico. A distancia parecia curta o suficiente para um disparo rápido. Porém, minhas pernas estavam pesando o dobro do que normalmente pesavam. Meu coração martelava rápido e forte por trás do meu peito. Olhei para as janelas, e pensei que eu era quem poderia estar sendo observado desta vez. Segurei o fôlego e disparei em direção ao jornal. Peguei-o pela ponta do plástico e retornei na mesma velocidade para casa. Subi para meu quarto, dei uma última olhada pela janela e rasguei o saco.

O jornal encontrava-se completamente intacto, salvo pela sessão dos obituários. Uma marca de caneta destacava, com um circulo, um lembrete da morte de uma pessoa. Recolhi os jornais todas as noites, por meses. Todos com as mesmas características, mas sempre destacando pessoas diferentes.

Havia me doutrinado aquela rotina de observar o velho corcunda caminhar nas noites. Subitamente tudo parou. Três dias se passaram, e nada dele sair ou sequer buscar os jornais. E eles foram se acumulando no batente. Achei estranho. Chamei a policia para investigar o que acontecera. A primeira viatura parou na entrada da garagem. Fui até lá. Ao me aproximar da passarela senti um odor estranho que pesava no ar. Um fedor distinto de todos que já havia sentido. Os dois policiais dirigiram-se até o batente da frente, e com os nós dos dedos bateram na porta. Após alguns segundos de espera, decidiram arromba-la. Apressei o passo até a entrada da sala. Lá estava meu amigo estirado no chão. Morto. O cheiro...ohhh...o cheiro. Jamais esquecerei o cheiro. Na sala, folhas e folhas cobriam a parede de cima á baixo. Todas continham apenas um parágrafo manuscrito. Tratava-se de obituários. Todos. Sobre a escrivaninha, um envelope aberto com uma folha dentro e um cheque nominal. Na frente do envelope, em letras grandes, lia-se: REDAÇÃO DO SUNDAY TIMES - DEPARTAMENTO DE OBITUÁRIOS.

Peguei algumas das folhas sem que os policiais percebessem, me despedi, e retornei com passos largos para casa. Espalhei as folhas no chão e comparei com as dos jornais que havia juntado nos meses que se passaram. "Aha!" falei inconscientemente. Os obituários, que haviam sido circulados nos jornais, eram os mesmos que haviam sido escritos nas folhas.

Uma semana após a morte do meu amigo, o Sunday Times publicou em nota oficial, a lista com todos os nomes fictícios que haviam sido publicados nos obituários.

Durante aquela semana, fui dominado por uma depressão profunda. A solidão havia retornado. Mais forte desta vez. Cheguei a passar horas observando da janela, mas a rua Morton nunca fora tão deprimente. O escritor de obituários muito me marcou. Mesmo no mundo de sua solidão, foi uma companhia leal e importante naqueles anos, onde o espírito de um jovem se forma para o mal ou para o bem. Minha hora havia chegado, e fiz o que era mais apropriado para o momento - escrevi o obituário, daquele tanta companhia me havia feito ao longo dos anos.

Há cinquenta e dois anos perdi meu amigo, mas sua imagem noturna nunca me abandonou. Oh! Meia- noite... preciso ir ao correio...

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