A Garganta da Serpente
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O Náufrago

(Charles M. Phelan)

A Lady Queen naufragou em 1810 a 150 milhas da Ilha da Morte. Desde então centenas de forasteiros vieram à procura do único sobrevivente, Marshall Corck. Os aventureiros eram atraídos pela lenda dos gemidos agonizantes daqueles que pereceram. Na Ilha da Morte nada se fala sobre o assunto. De Marshall Corck permanece o silêncio.

Tobby O'Sullivan era um escritor iniciante de 23 anos a procura de aventura. Tinha um apetite voraz para desvirginar o estranho e o obscuro. O misterioso e o desconhecido. Viera a procura do relato que mudaria sua vida. Deixou Dublin a procura da história perfeita. Foi lá que sua jornada teve inicio.

Viajou clandestinamente num navio pirata. Após algumas semanas nos mares revoltos ancorou em seu destino - A Ilha da Morte, no Caribe.

Para Tobby, o sonho começaria ali. Era o final de 1860. Cinquenta anos havia se passado, mas o mistério do pirata resistia ao gasto natural do tempo. Nunca ninguém escrevera sobre o velho Marshall. Seria o primeiro. Só precisaria encontrá-lo.

Perambulou por toda a Ilha a procura de informação, mas foi abruptamente desencorajado. A cada pergunta encontrava o silêncio como resposta. Quando muito apontavam para a montanha.

Tolice! Encontrarei sozinho se preciso for, pensou ao receber seu último NÃO.

Marchou resoluto de mata adentro. Algumas horas haviam se passado. O cansaço começava a desnorteá-lo. O sol centrava exatamente na posição do meio-dia. No cantil, menos de um quarto de água. Beber agora ou deixar esquentar? Questionou a cada parada. Examinou os arredores a procura de alguma trilha ou folhas pisoteadas. Nada que mostrasse sinal de vida, exceto um chiado inquietante que corria por baixo das folhas secas. Olhava sobre os ombros com frequência.

O abafado criava um orvalho a luz do dia que revestia toda a vegetação. Era como se estivessem soando. Cogumelos gigantes espalhavam-se por todos os lados. Intactos, lindos e perigosos. Tobby havia lido que eram uma espécie venenosa e que seria prudente manter a distancia. As horas caminhando haviam começado a fazer efeito.O ar em seus pulmões ficava cada vez mais tênue. O sol transluzia por entre as folhas e esquentava impiedosamente. Formava uma espécie de sauna tropical sem porta para saída. O calor e a umidade sufocavam.

As pernas perdiam o vigor e dobravam com facilidade fazendo com que Tobby procurasse apoio nas árvores. Os insetos zuniam mais alto. Formavam uma nuvem como abutres em torno de Tobby. Tentava se abanar, mas parecia provocar a fúria das pestes que lhe grudavam a pele. Puxava o ar que podia para dentro de seus pulmões com a boca voltada para cima. A garganta seca começava a inchar. Ao olhar para cima a noção espacial de vertical e horizontal ficara comprometida. Tudo começou a girar, girar. Os olhos foram pesando. As pernas cederam, desequilibraram, e por fim - a queda.

Algumas horas haviam se passado quando abriu os olhos. Apalpou o rosto como se procurasse reconhecer a si mesmo. Estava demasiadamente inchado. Havia recebido uma rajada de picadas que lhe ardiam cada centímetro do corpo. Levantou após algumas tentativas, com certa dificuldade, apoiando-se na mesma árvore que havia se encostado. Cuidou para não tocar nos cogumelos.

Pouco tempo havia se passado quando conseguiu captar os primeiros ruídos vindos de cima da montanha. Concluiu que era o ranger de madeira. Sacrificou-se de monte acima. Deparou-se com uma moradia de aspecto inquietante após pouco mais de uma hora.

Aproximou-se do casebre. Respirava ofegante. Ficou a poucos metros da porta e descansou as mãos nos joelhos curvando o corpo adiante. Respirou forte. Sentiu os pulmões dilatarem satisfeitos. No topo da montanha o ar corria perene. Observou que dentro do lugar, sentado, havia um velho. Presumiu que tinha uns 80 anos. Seus cabelos brancos e desordenados caiam por cima dos ombros. As sobrancelhas felpudas cobriam parte da testa, e, de certa forma, confirmava o aspecto de quem sobrevivera além da conta. Nas laterais, cabelo e barba misturavam-se em igual tamanho. Difícil de discernir um do outro.

Seu aspecto decrépito combinava com a choça onde vivia. Dentro, salvo por alguns feixes de luz que penetravam pelas fissuras formando ângulos irregulares, a escuridão predominava. O cheiro que vinha de dentro era terrível. Um odor enjoativo, desconhecido, mas que se tornara secundário ao estado de ânsia que Tobby vivia naquele momento. Estava diante daquele cuja historia o transformaria no mais famoso escritor do mundo. Mais famoso que Hawthorne ou Poe. Tobby acenou.

Sem exteriorizar qualquer repudio áquela presença desconhecida, Marshall Cork sinalizou de volta. Parou o balanço da cadeira gradativamente, diminuindo, assim, o ranger grave e agudo que atraíra Tobby aquele lugar inicialmente. Após o último gemido da cadeira. Fixaram no outro um olhar de caçador e presa. Por alguns minutos, só olhares.

"Senhor Corck...meu nome é Tobby O'Sullivan. Eu..." Arriscou o primeiro contato.

"Shhhhhh....shh, shhh..." Respondeu e ao mesmo tempo gesticulou para garantir a compreensão. A mão, que expunha as cânulas esverdeadas das veias, gentilmente afastou os cabelos que cobriam a face. Um grunhido acompanhou um sorriso incompleto, que nem permitia, nem proibia a entrada. "Shhhhhhh....".

Tobby deu dois passos à frente. Tinha que arriscar a aproximação mesmo que fosse repreendido.

"Fiz para sobreviver". Explanou Marshall em voz baixa. Apontou para uma cadeira sugerindo que sentasse.

Tobby olhou ao redor cuidadosamente. Não queria correr riscos desnecessários. Os moveis eram poucos e discretos, e em nada chamavam atenção. No canto da sala, empilhados, alguns objetos que mais pareciam presentes deixados por visitantes. Entrou. Sentou-se próximo a Marshall Corck e passou a observá-lo. Percebeu que seus olhos eram grandes e cobertos por uma camada anuviada.

O velho Marshall expôs-lhe os dentes estragados numa tentativa de sorrir. Levantou com esforço e mancou até Tobby. Tocou-lhe a face com as mãos grossas e tortas. Os dedos mal se estendiam por completo. Apalpou-lhe o músculo dos braços e esfregou-lhe o rosto com o dorso da mão, como se procurasse sinal de barba.

"Vinte e poucos anos" sussurrou e sorriu satisfeito. "A carne humana piora com o tempo. Perde a consistência e o volume, mas não a sua. A sua é de gente jovem, saudável. Já não posso dizer o mesmo de outros que aqui vieram. Ahhh, a juventude. Tola. Por que veio até aqui?"

"Vim conhecê-lo e ouvir sobre a Lady Queen."

"Fiz para sobreviver meu jovem.", sussurrava cobrindo a boca, o que dificultava mais ainda a compreensão. "...mas nada tenho para falar."

Embora não pudesse garantir com nenhum grau de precisão, pela voz fraca e rouca, Tobby deduziu que poucos anos lhe restavam. Os dentes, os poucos que pode ver de relance, mais pareciam cacos, gastos pelo tempo e a idade. Pareciam presas, como as de um lobo.

"Fez o quê?" Aproveitou o momento para perguntar. "Fez o quê, senhor Corck.".

"Tem pressa jovem?" Segurou na mão de Tobby. "Estou aqui há cinquenta anos. O tempo passa sem pressa. Nada tenho a lhe dizer. E tudo tem seu preço."

Tobby se ajustou no acento de madeira e olhou de soslaio para os presentes deixados por outros viajantes.

"Penso em escrever um livro." Explicou Tobby. "Não quero tomar muito do seu tempo, senhor Corck."

"Tempo? Tenho todo o tempo do mundo. Mas tenho pouca companhia por estas bandas. Entendeu? Não vou a lugar algum... Chá?"

"Não, obrigado. Só os relatos e estarei indo." Respondeu se apercebendo do mau cheiro mais uma vez.

"Relatos? Há!há!há!..."

Marshall Corck deslocou-se com dificuldade até o outro compartimento, pegou um dos dois bules que repousavam sobre um pia improvisada e pôs sobre um pequeno fogareiro.

"Quando o barco afundou....."

Tobby apressou-se para anotar."Como sobreviveu?" Forçou impaciente.

"Éramos dois. Valentes, fortes e companheiros. Estávamos ali um para o outro. Foi o que combinamos. Um para o outro, numa prancha de madeira que sobrara do casco. Aí, a fome chegou. Veio forte e sem pena. Tornamos-nos três naquele momento: eu, meu amigo e a fome. O sol não facilitava, e aos poucos foi nos enfraquecendo. Mas a fome não, ela ficou cada vez mais forte e mais presente. Meu amigo parecia estar mais fraco e me olhava com certa dependência. Havia vários dias que vagávamos sem direção e sem esperança. Evitávamos até mesmo falar para nos poupar. Meu companheiro apenas me olhava. Sorria e me agradecia por protegê-lo. Pedi que fechasse os olhos. Recusou-se a principio. Não queria me abandonar. Ainda que fraco, queria me proteger. Insisti que confiasse em mim, e que repousasse sua cabeça contra meu peito. Confiou a mim a sua vida, agradeceu e fechou os olhos. Olhei para o horizonte a procura de terra. Estávamos totalmente isolados. Aproveitei o momento. Rasguei o último trapo de roupa que ainda restava e gentilmente pus envolta de seu pescoço. Tentou abrir os olhos curioso com meu movimento. Sussurrei no seu ouvido que fechasse os olhos. Apertei lentamente nos primeiros instantes e depois dei o solavanco que cessaria sua existência. Antes do último suspiro, olhei por cima de seus ombros. Tinha os olhos arregalados. Sem expressão"

Tobby estava rígido. "O que fez então?"

"Comi cada pedaço dele. Era meu amigo, e havia me salvado. Não poderia estragá-lo. Confesso que até me deleitei sobre aquela fartura, e embora soubesse que ali estava meu único amigo, pensei em mim primeiro. Num primeiro momento o sangue me perturbou, mas estava com sede. Com o passar dos dias estava acostumado. O pior da carne humana é o doentio desejo de querer sempre mais. Chega a criar uma dependência difícil de se livrar."

A noite começava a cair. As árvores que durante o dia dormiam a luz do sol agora acordavam para um balé que duraria toda noite. As folhas espalhadas pelo chão eram acordadas do seu descanso e sopradas como confetes pela porta do casebre.

Marshall olhava pela portinhola que servia de janela e respirava cada sabor que vinha. Cada folha, cada galho e cada espuma que estourava na praia e subia pela encosta da montanha. De nariz para o alto, parecia um experiente cão de caça que captura a vida pelo olfato. Cada terminação nervosa, perfeitamente em harmonia com a natureza. O odor que ficara temporariamente suspenso retomara sua força duplamente. Mais enjoativo desta vez.

Tobby apoiou-se na cadeira de Marshall e se ergueu. Não conseguiu por completo. As pernas flexionadas pareciam ter perdido a elasticidade. Mal conseguiu deslocar o pé do chão. Esperou alguns segundos pela completa extensão dos músculos inferiores, mas voltou a sentar. Olhava para Marshall com cuidado. A voz se fora.

Marshall deu alguns goles no chá e disparou, "parece inquieto, jovem."

"Como pôde fazer isso com seu amigo? Pensou em você, somente em você", esbravejou hipervventilando. "Confiou em você....."

"Então o que faz aqui, senão pensar em você? Por que vir até mim? Quer lucrar do meu infortúnio. Procura fama e dinheiro. Veio aqui para me usar. Confiei que você fosse diferente dos outros, mas não."

"Pobre velho."

"Chá?"

"Preciso ir já tenho o queria: os relatos." Confidenciou tentando se erguer novamente.

"Conseguiu o que quis, e agora deseja partir, hum?"

Marshall observou o esforço de Tobby e mais uma vez ofertou-lhe o chá. Pegou o outro bule que estava mais próximo, esquentou por alguns segundos, e pôs numa caneca. Sorriu e tossiu ao mesmo tempo inalava o aroma quente vindo da bebida.

Tobby estendeu-lhe a mão tomando a caneca. Olhou como estava o tempo lá fora. Tomou os primeiros goles devagar. Esperou alguns segundos que esfriasse e terminou o restante.

Marshall Corck aproximou-se com dificuldade até Tobby. Circulou por trás e olhou para o rapaz. Pôs as mãos gentilmente sobre os ombros e sussurrou, "Eu também confiei em você."

Tobby sacudiu os ombros tentando afastar o velho. Percebeu que não havia produzido força o suficiente para afasta-lo. Buscou apoio nas laterais da cadeira para levantar, mas os braços também lhe negaram o pedido.

"Problemas, amigo? Eh, isso sempre acontece com chá de cogumelo. Eu não o tomo, é para meus visitantes." Retornou para frente de Tobby. Passou-lhe a mão no rosto mais uma vez sentindo o tônus muscular. "Lute Tobby, lute. Chegou tão longe, tão..."

Tobby olhava apático. Tentou falar mas a língua havia inchado. Insistiu em mexer os braços e as pernas, mas os nervos já não mais se comunicavam. Produzia apenas o desejo. O corpo não atendia. Os músculos da face perdiam a rigidez e relaxavam. Um olhar pouco expressivo contrariava o espírito. Uma lagrima formou quando lembrou das aventuras de criança e os sonhos de se tornar um escritor famoso. As memórias vinham atropelando umas as outras embora obedecessem a uma cronologia. Flashes das diferentes épocas estouravam por trás dos olhos em rápidas sucessões. As pálpebras pesavam toneladas mas resistiam abertas.

Marshall Corck sorriu sem gastar muita energia. "Fiz para sobreviver. Shhhh..." falou num tom suave e longo. "Serei gentil com você como fui com o meu amigo. Shh -"

Maldito!Maldito!Deus proteja minha alma... Gritava a consciência de Tobby. "Agora, por favor, os olhos. Feche os olhos..."

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