A Lady Queen naufragou em 1810 a 150 milhas da Ilha da Morte. Desde então
centenas de forasteiros vieram à procura do único sobrevivente,
Marshall Corck. Os aventureiros eram atraídos pela lenda dos gemidos
agonizantes daqueles que pereceram. Na Ilha da Morte nada se fala sobre o assunto.
De Marshall Corck permanece o silêncio.
Tobby O'Sullivan era um escritor iniciante de 23 anos a procura de aventura.
Tinha um apetite voraz para desvirginar o estranho e o obscuro. O misterioso
e o desconhecido. Viera a procura do relato que mudaria sua vida. Deixou Dublin
a procura da história perfeita. Foi lá que sua jornada teve inicio.
Viajou clandestinamente num navio pirata. Após algumas semanas nos mares
revoltos ancorou em seu destino - A Ilha da Morte, no Caribe.
Para Tobby, o sonho começaria ali. Era o final de 1860. Cinquenta
anos havia se passado, mas o mistério do pirata resistia ao gasto natural
do tempo. Nunca ninguém escrevera sobre o velho Marshall. Seria o primeiro.
Só precisaria encontrá-lo.
Perambulou por toda a Ilha a procura de informação, mas foi abruptamente
desencorajado. A cada pergunta encontrava o silêncio como resposta. Quando
muito apontavam para a montanha.
Tolice! Encontrarei sozinho se preciso for, pensou ao receber seu último
NÃO.
Marchou resoluto de mata adentro. Algumas horas haviam se passado. O cansaço
começava a desnorteá-lo. O sol centrava exatamente na posição
do meio-dia. No cantil, menos de um quarto de água. Beber agora ou deixar
esquentar? Questionou a cada parada. Examinou os arredores a procura de alguma
trilha ou folhas pisoteadas. Nada que mostrasse sinal de vida, exceto um chiado
inquietante que corria por baixo das folhas secas. Olhava sobre os ombros com
frequência.
O abafado criava um orvalho a luz do dia que revestia toda a vegetação.
Era como se estivessem soando. Cogumelos gigantes espalhavam-se por todos os
lados. Intactos, lindos e perigosos. Tobby havia lido que eram uma espécie
venenosa e que seria prudente manter a distancia. As horas caminhando haviam
começado a fazer efeito.O ar em seus pulmões ficava cada vez mais
tênue. O sol transluzia por entre as folhas e esquentava impiedosamente.
Formava uma espécie de sauna tropical sem porta para saída. O
calor e a umidade sufocavam.
As pernas perdiam o vigor e dobravam com facilidade fazendo com que Tobby procurasse
apoio nas árvores. Os insetos zuniam mais alto. Formavam uma nuvem como
abutres em torno de Tobby. Tentava se abanar, mas parecia provocar a fúria
das pestes que lhe grudavam a pele. Puxava o ar que podia para dentro de seus
pulmões com a boca voltada para cima. A garganta seca começava
a inchar. Ao olhar para cima a noção espacial de vertical e horizontal
ficara comprometida. Tudo começou a girar, girar. Os olhos foram pesando.
As pernas cederam, desequilibraram, e por fim - a queda.
Algumas horas haviam se passado quando abriu os olhos. Apalpou o rosto como
se procurasse reconhecer a si mesmo. Estava demasiadamente inchado. Havia recebido
uma rajada de picadas que lhe ardiam cada centímetro do corpo. Levantou
após algumas tentativas, com certa dificuldade, apoiando-se na mesma
árvore que havia se encostado. Cuidou para não tocar nos cogumelos.
Pouco tempo havia se passado quando conseguiu captar os primeiros ruídos
vindos de cima da montanha. Concluiu que era o ranger de madeira. Sacrificou-se
de monte acima. Deparou-se com uma moradia de aspecto inquietante após
pouco mais de uma hora.
Aproximou-se do casebre. Respirava ofegante. Ficou a poucos metros da porta
e descansou as mãos nos joelhos curvando o corpo adiante. Respirou forte.
Sentiu os pulmões dilatarem satisfeitos. No topo da montanha o ar corria
perene. Observou que dentro do lugar, sentado, havia um velho. Presumiu que
tinha uns 80 anos. Seus cabelos brancos e desordenados caiam por cima dos ombros.
As sobrancelhas felpudas cobriam parte da testa, e, de certa forma, confirmava
o aspecto de quem sobrevivera além da conta. Nas laterais, cabelo e barba
misturavam-se em igual tamanho. Difícil de discernir um do outro.
Seu aspecto decrépito combinava com a choça onde vivia. Dentro,
salvo por alguns feixes de luz que penetravam pelas fissuras formando ângulos
irregulares, a escuridão predominava. O cheiro que vinha de dentro era
terrível. Um odor enjoativo, desconhecido, mas que se tornara secundário
ao estado de ânsia que Tobby vivia naquele momento. Estava diante daquele
cuja historia o transformaria no mais famoso escritor do mundo. Mais famoso
que Hawthorne ou Poe. Tobby acenou.
Sem exteriorizar qualquer repudio áquela presença desconhecida,
Marshall Cork sinalizou de volta. Parou o balanço da cadeira gradativamente,
diminuindo, assim, o ranger grave e agudo que atraíra Tobby aquele lugar
inicialmente. Após o último gemido da cadeira. Fixaram no outro
um olhar de caçador e presa. Por alguns minutos, só olhares.
"Senhor Corck...meu nome é Tobby O'Sullivan. Eu..." Arriscou
o primeiro contato.
"Shhhhhh....shh, shhh..." Respondeu e ao mesmo tempo gesticulou para
garantir a compreensão. A mão, que expunha as cânulas esverdeadas
das veias, gentilmente afastou os cabelos que cobriam a face. Um grunhido acompanhou
um sorriso incompleto, que nem permitia, nem proibia a entrada. "Shhhhhhh....".
Tobby deu dois passos à frente. Tinha que arriscar a aproximação
mesmo que fosse repreendido.
"Fiz para sobreviver". Explanou Marshall em voz baixa. Apontou para
uma cadeira sugerindo que sentasse.
Tobby olhou ao redor cuidadosamente. Não queria correr riscos desnecessários.
Os moveis eram poucos e discretos, e em nada chamavam atenção.
No canto da sala, empilhados, alguns objetos que mais pareciam presentes deixados
por visitantes. Entrou. Sentou-se próximo a Marshall Corck e passou a
observá-lo. Percebeu que seus olhos eram grandes e cobertos por uma camada
anuviada.
O velho Marshall expôs-lhe os dentes estragados numa tentativa de sorrir.
Levantou com esforço e mancou até Tobby. Tocou-lhe a face com
as mãos grossas e tortas. Os dedos mal se estendiam por completo. Apalpou-lhe
o músculo dos braços e esfregou-lhe o rosto com o dorso da mão,
como se procurasse sinal de barba.
"Vinte e poucos anos" sussurrou e sorriu satisfeito. "A carne
humana piora com o tempo. Perde a consistência e o volume, mas não
a sua. A sua é de gente jovem, saudável. Já não
posso dizer o mesmo de outros que aqui vieram. Ahhh, a juventude. Tola. Por
que veio até aqui?"
"Vim conhecê-lo e ouvir sobre a Lady Queen."
"Fiz para sobreviver meu jovem.", sussurrava cobrindo a boca, o que
dificultava mais ainda a compreensão. "...mas nada tenho para falar."
Embora não pudesse garantir com nenhum grau de precisão, pela
voz fraca e rouca, Tobby deduziu que poucos anos lhe restavam. Os dentes, os
poucos que pode ver de relance, mais pareciam cacos, gastos pelo tempo e a idade.
Pareciam presas, como as de um lobo.
"Fez o quê?" Aproveitou o momento para perguntar. "Fez
o quê, senhor Corck.".
"Tem pressa jovem?" Segurou na mão de Tobby. "Estou aqui
há cinquenta anos. O tempo passa sem pressa. Nada tenho a lhe dizer.
E tudo tem seu preço."
Tobby se ajustou no acento de madeira e olhou de soslaio para os presentes deixados
por outros viajantes.
"Penso em escrever um livro." Explicou Tobby. "Não quero
tomar muito do seu tempo, senhor Corck."
"Tempo? Tenho todo o tempo do mundo. Mas tenho pouca companhia por estas
bandas. Entendeu? Não vou a lugar algum... Chá?"
"Não, obrigado. Só os relatos e estarei indo." Respondeu
se apercebendo do mau cheiro mais uma vez.
"Relatos? Há!há!há!..."
Marshall Corck deslocou-se com dificuldade até o outro compartimento,
pegou um dos dois bules que repousavam sobre um pia improvisada e pôs
sobre um pequeno fogareiro.
"Quando o barco afundou....."
Tobby apressou-se para anotar."Como sobreviveu?" Forçou impaciente.
"Éramos dois. Valentes, fortes e companheiros. Estávamos
ali um para o outro. Foi o que combinamos. Um para o outro, numa prancha de
madeira que sobrara do casco. Aí, a fome chegou. Veio forte e sem pena.
Tornamos-nos três naquele momento: eu, meu amigo e a fome. O sol não
facilitava, e aos poucos foi nos enfraquecendo. Mas a fome não, ela ficou
cada vez mais forte e mais presente. Meu amigo parecia estar mais fraco e me
olhava com certa dependência. Havia vários dias que vagávamos
sem direção e sem esperança. Evitávamos até
mesmo falar para nos poupar. Meu companheiro apenas me olhava. Sorria e me agradecia
por protegê-lo. Pedi que fechasse os olhos. Recusou-se a principio. Não
queria me abandonar. Ainda que fraco, queria me proteger. Insisti que confiasse
em mim, e que repousasse sua cabeça contra meu peito. Confiou a mim a
sua vida, agradeceu e fechou os olhos. Olhei para o horizonte a procura de terra.
Estávamos totalmente isolados. Aproveitei o momento. Rasguei o último
trapo de roupa que ainda restava e gentilmente pus envolta de seu pescoço.
Tentou abrir os olhos curioso com meu movimento. Sussurrei no seu ouvido que
fechasse os olhos. Apertei lentamente nos primeiros instantes e depois dei o
solavanco que cessaria sua existência. Antes do último suspiro,
olhei por cima de seus ombros. Tinha os olhos arregalados. Sem expressão"
Tobby estava rígido. "O que fez então?"
"Comi cada pedaço dele. Era meu amigo, e havia me salvado. Não
poderia estragá-lo. Confesso que até me deleitei sobre aquela
fartura, e embora soubesse que ali estava meu único amigo, pensei em
mim primeiro. Num primeiro momento o sangue me perturbou, mas estava com sede.
Com o passar dos dias estava acostumado. O pior da carne humana é o doentio
desejo de querer sempre mais. Chega a criar uma dependência difícil
de se livrar."
A noite começava a cair. As árvores que durante o dia dormiam
a luz do sol agora acordavam para um balé que duraria toda noite. As
folhas espalhadas pelo chão eram acordadas do seu descanso e sopradas
como confetes pela porta do casebre.
Marshall olhava pela portinhola que servia de janela e respirava cada sabor
que vinha. Cada folha, cada galho e cada espuma que estourava na praia e subia
pela encosta da montanha. De nariz para o alto, parecia um experiente cão
de caça que captura a vida pelo olfato. Cada terminação
nervosa, perfeitamente em harmonia com a natureza. O odor que ficara temporariamente
suspenso retomara sua força duplamente. Mais enjoativo desta vez.
Tobby apoiou-se na cadeira de Marshall e se ergueu. Não conseguiu por
completo. As pernas flexionadas pareciam ter perdido a elasticidade. Mal conseguiu
deslocar o pé do chão. Esperou alguns segundos pela completa extensão
dos músculos inferiores, mas voltou a sentar. Olhava para Marshall com
cuidado. A voz se fora.
Marshall deu alguns goles no chá e disparou, "parece inquieto, jovem."
"Como pôde fazer isso com seu amigo? Pensou em você, somente
em você", esbravejou hipervventilando. "Confiou em você....."
"Então o que faz aqui, senão pensar em você? Por que
vir até mim? Quer lucrar do meu infortúnio. Procura fama e dinheiro.
Veio aqui para me usar. Confiei que você fosse diferente dos outros, mas
não."
"Pobre velho."
"Chá?"
"Preciso ir já tenho o queria: os relatos." Confidenciou tentando
se erguer novamente.
"Conseguiu o que quis, e agora deseja partir, hum?"
Marshall observou o esforço de Tobby e mais uma vez ofertou-lhe o chá.
Pegou o outro bule que estava mais próximo, esquentou por alguns segundos,
e pôs numa caneca. Sorriu e tossiu ao mesmo tempo inalava o aroma quente
vindo da bebida.
Tobby estendeu-lhe a mão tomando a caneca. Olhou como estava o tempo
lá fora. Tomou os primeiros goles devagar. Esperou alguns segundos que
esfriasse e terminou o restante.
Marshall Corck aproximou-se com dificuldade até Tobby. Circulou por trás
e olhou para o rapaz. Pôs as mãos gentilmente sobre os ombros e
sussurrou, "Eu também confiei em você."
Tobby sacudiu os ombros tentando afastar o velho. Percebeu que não havia
produzido força o suficiente para afasta-lo. Buscou apoio nas laterais
da cadeira para levantar, mas os braços também lhe negaram o pedido.
"Problemas, amigo? Eh, isso sempre acontece com chá de cogumelo.
Eu não o tomo, é para meus visitantes." Retornou para frente
de Tobby. Passou-lhe a mão no rosto mais uma vez sentindo o tônus
muscular. "Lute Tobby, lute. Chegou tão longe, tão..."
Tobby olhava apático. Tentou falar mas a língua havia inchado.
Insistiu em mexer os braços e as pernas, mas os nervos já não
mais se comunicavam. Produzia apenas o desejo. O corpo não atendia. Os
músculos da face perdiam a rigidez e relaxavam. Um olhar pouco expressivo
contrariava o espírito. Uma lagrima formou quando lembrou das aventuras
de criança e os sonhos de se tornar um escritor famoso. As memórias
vinham atropelando umas as outras embora obedecessem a uma cronologia. Flashes
das diferentes épocas estouravam por trás dos olhos em rápidas
sucessões. As pálpebras pesavam toneladas mas resistiam abertas.
Marshall Corck sorriu sem gastar muita energia. "Fiz para sobreviver. Shhhh..."
falou num tom suave e longo. "Serei gentil com você como fui com
o meu amigo. Shh -"
Maldito!Maldito!Deus proteja minha alma... Gritava a consciência
de Tobby. "Agora, por favor, os olhos. Feche os olhos..."