A Garganta da Serpente

Coelho Neto

Henrique Maximiano Coelho Neto
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

A pevide

(Coelho Neto)

- Viva a galinha com a sua pevide!

- Pensas como mecenas.

- E com fundamento.

- Algum caso como o que acabei de narrar?

- Sim, com uma diferença apenas: em vez de dartro era uma úlcera. Meu tio, que conheceste, era homem que vendia e esbanjava saúde. Não me lembro de o ter, jamais, visto doente: sempre rijo e alegre. Bom talher à mesa, capaz de beber pelo cântaro de Baco, boa figura em noitadas e sono de justo quando se deitava. Durante o calor, porém, queixava-se de uma perna: era a sua úlcera, os seus "humores" como dizia.

Nos meses mais quentes, de Dezembro a Março, quando se lhe abria a tal válvula de escapamento, moderava-se à mesa, recusando os pratos muito adubados e substituindo o vinho e o café por águas minerais e mate. Encurtava os passeios a pé, limitando-os a uma volta nos jardins do Clube, com meia hora de distração no "bar", onde tomava o seu guaraná. Ninguém o via em gabinetes particulares e raramente aparecia nos teatros.

Nos primeiros dias de Abril, a úlcera começava a fechar-se e em Maio o homenzinho ressurgia lépido, desafiando-nos para excursões ousadas à Tijuca, ao Corcovado, sempre com iguarias, vinhaça e mulherio. Eram as chamadas provas de resistência.

Nos meses de sofrimento e expurgo, se alguém o aconselhava a procurar médicos ou lhe receitava drogas, sorria, dizendo com o seu eterno bom humor:

- Nada! Vivo muito bem com a minha chaga. É o "ladrão" por onde transbordam as demasias que tenho no corpo. Meu pai chegou aos oitenta e seis anos com a dele, e morreu duma queda de cavalo, quando voltava de uma ceia com certa inglesinha, que foi a sua Abisag. Não fosse a mania de equitação, a vaidade de ser o melhor cavaleiro de seu tempo e ainda o teríamos por cá, contando-nos episódios da Cisplatina.

Demais, já me habituei e estou convencido de que se um verão me encontrar sem o escoadouro, por onde os humores extravasam, não ouvirei as cigarras nem respirarei o aroma das violetas de Maio. Nada! Deixem-me com ela. É o meu seguro de vida.

E viveu sempre são e alegre até que a Jeannette o convenceu a levá-la à Europa.

Seis meses depois de lá estar escreveu-me uma certa pressaga na qual se referia ao intenso calor de Paris "muito pior que o nosso" ajuntando: que estava deveras preocupado com a demora do aparecimento da úlcera. E pilheriando: "Será ela tão jacobina que não se queira exibir em França?"

Andara pelos altos Pireneus, fora a Barèges e atribuía às águas sulfurosas o fato de verão tão forte não despertar o seu abutre.

Regressou quando Paris tiritava reentrando, em pleno calor de Janeiro, na sua casa de Botafogo.

A sua primeira pergunta, ao abraçar-me, foi: "Se o não achava muito abatido?" Menti gabando-lhe as cores, a boa aparência. A verdade, porém, é que o achei magro, vincado de rugas, triste. E ele disse-me desanimado:

"Se ela não aparecer até princípios de Fevereiro, meu filho, não chego às fogueiras de S. João. Foram aquelas malditas águas dos Pireneus que me ficaram com ela".

Correram os meses do verão e, em meados de Abril, o bom homem, que nunca se deixara abater, tornou-se melancólico. Volta e meia metia-se no quarto, arregaçava as ceroulas e punha-se a examinar a perna. Abanando com a cabeça desconsoladamente esticava o beiço e dizia: "Qual! Estou perdido. Foram aquelas malditas águas. Fartei-me a dizer a Jeannette: Eu não devo tomar esses banhos... não devo... Qual! Teimava... E tanto teimou, tanto teimou que o resultado aqui está".

Para provocar a explosão entregou-se a todos os excessos de boca, tornou-se gastrônomo, abusando de especiarias, preferindo os vinhos mais fortes, as frutas mais carregadas. Depois de uma série de extravagâncias, algumas até comprometedoras, chegou a animar-se convencido de que a "bicha" reapareceria. Nada. E definhava a olhos vistos.

Muito já o encontrou sorumbático, lívido, de faces cavadas e olhos fundos. Passava as noites em claro, sempre a resmungar contra os Pireneus, amaldiçoando Barèges e as suas fontes infernais.

"Rolando foi ali traído por Ganelon; eu, pelas águas. A tal senhora Jeannette... A tal senhora Jeannette! Bem que eu lhe dizia... Teimou. Agora chama-me, escreve-me cartas. Pois sim!"

Uma manhã não se levantou. Tomou dissaboridamente o café, fumou um cigarro, pediu os jornais e passou o dia todo na cama, calado, com os braços por baixo da cabeça. Volta e meia descobria a perna, para examinar a cicatriz lustrosa da úlcera: "cratera de um vulcão extinto" e amuava, sombrio.

À tarde mandou chamar um médico, encharcou-se de drogas, enrolou a perna em cataplasmas. Nada. A úlcera estava morta, bem morta.

E ele seguiu-a. Foi-se em uma tarde brumosa de Junho e, enquanto pude falar, acusou as águas dos Pireneus, que lhe haviam levado a vida.

"Eu sabia, meu filho, disse-me poucas horas antes de expirar. Quando, em Paris, naqueles dias de tremendo calor, não a senti, disse a Jeannette que os meus dias estavam contados. Ela, sempre airada, troçava-me os presságios arrastando-me para Armenonville, para o Pré Catelan, para o Prunier onde nos fartávamos de ostras e de lagostas. Quando compreendi que a minha "válvula de segurança" de segurança estava de todo inutilizada, tratei da viagem para não morrer no estrangeiro, longe dos meus, porque sou patriota, sou, e quero-vos a todos. Ela insistiu em ficar. Queria conhecer a Suíça, a Alemanha, a Holanda, a Noruega, a Rússia, todas essas terras geladas, só para vestir-se de peles. Tu sabes: Jeannette é uma excelente rapariga, não há dúvida, mas quando teima nem Santo Antônio a convence de mudar de ideia. Que fazer? Fui. Se, em vez de seguir para aquelas terras frias, eu tivesse tomado passagem para a África, por exemplo, metendo-me em uma caravana, e estendesse a perna no areal do Saara, ao sol, não estaria aqui a fazer biscoitos. Cedi à mulher... Acompanhei-a aos Pireneus e depois a essas catimploras do Norte, nas quais o termômetro está sempre como o câmbio entre nós. O resultado aqui tens. Estou frio.

Às cinco da tarde cumpriram-se as suas palavras.

- E achas que foi a úlcera recolhida que o matou?

- Certamente. Como o dartro do teu amigo.

- Perdão, o que matou meu amigo foi o fígado e o que levou teu tio não foi a úlcera, que pereceu afogada nas águas dos Pireneus, mas a vidinha estróina e solta de Paris, os almoços na rua Duphot, as ceias no Bois e em Montmartre, o sangue ardente de Jeannette e de outras, e os filtros com que ele, ultimamente, pretendia reanimar... um cadáver.

- A úlcera?

- Se lhe queres dar esse nome, vá lá. A úlcera... e sorria.

- Tu não crês?

- Não, meu amigo. Conheço esses velhotes e conheço-lhes as mazelas. Olha, se não me engano ali vem a úlcera do teu tio. Está agora com aquele comendador... e sempre linda!

Era Jeannette.

  • Publicado em: 26/01/2006
menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Que tal comprar um livro de Coelho Neto?


Lima Barreto versus Coelho Neto - Um Fla-Flu Literário
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br