Um vazio imenso. Um grande sentimento de que nada mais poderia ser feito. Era
isso. Do alto da velha torre fitava a tarde que nos últimos dias de inverno
insistia em permanecer fria e nebulosa. Como sempre, a cidade abandonada. Todos
se escondiam, como se a neve ainda caísse pesada do céu. Talvez
a desolação ou o medo de perceber uns nos outros o próprio
reflexo, algo que afastava toda a gente.
Sabia que ali ninguém o veria e era exatamente o que precisava. Sentir-se
ainda mais só para decidir-se. Então quando estava resoluto do
fim, o sino da torre retiniu atordoando novamente a sua vontade.
Seria aviso de algum deus ou o canto de vitória do barqueiro? Não
podia mais pensar. Agora bem de fronte ao prédio um gato lambia-se languidamente
indiferente a tudo. Estava ali e sua presença interferia no cenário.
Mesmo quase sem poder vê-lo tão longe estava, parecia que todos
os movimentos do felino transmutavam o ar a sua volta de modo a atingi-lo em
ondas febris.
Mas o que poderia ser feito? Logo a exígua movimentação
iniciaria seu ritual e o engenho não seria mais surpresa.
Os segundos posteriores ao vislumbre do animal pareciam longos minutos e a decisão
não era concretizada. Poderia descer e atacar o bichano espantando quem
o perturbava mas o tempo se esgotaria. Pensava melhor e ria de si mesmo ante
a preocupação com uma testemunha débil que nada entenderia.
Mas quem duvidaria depois de saber a real natureza dos gatos.
Já faziam dois quartos de hora que estava em pé olhando aquele
bicho que parecia lhe observar agora, e isso era um incomodo ainda maior. Não
tinha coragem para descer da janela da torre nem para finalizar a tarefa para
a qual se dirigira na madrugada.
Realmente a coragem que lhe aflorara no momento de raiva e angústia esvaíra-se
e não conseguia admitir que o causador fosse um animal mas também
não queria nomear-se covarde. Quem sabe que o ímpeto é
uma força passageira compreenderia a situação. Porém
agora uma ou outra janela era aberta e o sol aparecia no horizonte. O momento
havia passado e mesmo assim, sentou-se no parapeito da janela e pensou em novas
possibilidades. Talvez realmente não fosse uma boa manhã para
a empreitada.
O sino de prata, tão antigo quanto a cidade, soou novamente. Mais de
uma hora havia transcorrido desde que subira a torre. Agora lembrava-se das
histórias sobre o sino. Dizem que a prata é o único material
capaz de eliminar certas criaturas maléficas. Mas quem pode afirmar que
algo o queria eliminado? Talvez aquela hora nem lembrasse o motivo da subida.