A Garganta da Serpente
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Uma coleção de folhas

(Coelho de Moraes)

Não sei quando isso começou mas, quando percebi, a minha gaveta estava abarrotada de folhas de livros. Era uma folha de cada livro. Nunca se repetia.

Dr. Cardozo, amigo, advogado e escritor, mas, nem sempre nessa ordem, colecionava dias. E às vezes os trocava por qualquer coisa. Então, eu me decidi visitá-lo, levando aquela braçada de folhas de livros.

Dr. Cardozo, poeta e antigo ator, lá do tempo do Oscar Villares virou-se para mim e falou, daquela maneira que só quem teve os pés em Milagres poderia falar: "Trocar num troco não, mas bem que você podia construir uma coleção de folha de livros. É... é... aí eu até ajudava. Tenho uma penca de folhas soltas aqui em casa, sacumééé... que bem precisam de um local para pousar."

Segui a orientação do amigo e armado de bom senso e senso crítico pus-me a selecionar as folhas e arranjá-las numa fieira lógica, se tal fosse possível.

O fato é que meio mês depois, após as chuvas que levaram minha casa embora, eu tinha aprontado um livro desses de cabeceira. O assunto era variado, isso eu vi logo de cara. Mas, com o passar das leituras deu para perceber que aquilo tudo tinha um certo ar de já-visto, ou melhor, já-lido, e deixei de lado.

A história estranha falava de uma personagem que gostei muito em alguns instantes. Noutras, a personagem era terrível. Ora canalha, ora sedutora . E, o interessante naquele livro era a quantidade de episódios e locais por onde a personagem - que chamarei de protagonista por falta de testemunhas - havia passado. E a infinidade de coadjuvantes me alarmou. Muita gente desfilava ali, com problemas maiores e outros menores.

Agora, o que me fez amar os livros foram os cupins. Cheguei a admitir com o Dr. Cardozo, enquanto ele pintava seus quadros de expressividade primitivista, que os cupins eram os melhores amigos do Homem. Ele negava dizendo que os cupons de sorteio é que eram melhores amigos. Eu achava estranho e tentava explicar para ele que se não fôssemos atrás dos cupins, não tomaríamos contacto com os livros e daí, rebuscando para saber que palavras foram comidas pelo cupim acabávamos lendo determinadas folhas e começávamos a amar os livros.

"Vai ver foi aí que você passou a guardar as folhas. Folhas não comidas por cupins, portanto, folhas não lidas e esquecidas."

"É possível. Mas eu me lembro que numa noite sem grilos, tentando limpar minha biblioteca, acabei lendo muita coisa escondida e perdida".

"E eu tinha um amigo que foi perseguido por um cupim porque o sujeito lia um livro que o cupim queria comer! Nem tudo é como a gente quer".

Saí dalí, permitindo que o Dr. Cardozo continuasse nas suas urdiduras de tinta e fui matutando para minha casa, duas quadras abaixo.

A noite era outonal e as estrelas poucas.

Enfeixei o maço de folhas que encontrara nas gavetas e transformei-o em outro livro. Despreocupado, coloquei o novo livro na estante, para uma leitura posterior e parti para a leitura de uma infinidade de outras obras, compêndios, grossos volumes biográficos, milhares de livros de autores diferentes falando sobre as suas idas, vindas e vidas. Tudo isso misturado aos afazeres rotineiros e quotidianos que nos acompanham.

Juro. Pareceu que não, mas, vinte e sete anos depois consegui um tempinho para ler aquela obra construída no passado. Quando tomei o objeto nas mãos e o abri as folhas estavam rasgadas e perfuradas pela ação dos cupins. Novos cupins. Buracos e mais buracos espalhados pelo escrito, impossibilitando a leitura. As folhas esfarinhavam na minha mão e o que alí estava da minha coleção de folhas tornou-se um pó que se perdia no tapete.

Talvez tenha sido coincidência mas no fim de três meses eu morria.

Alguns, no velório, discorriam sobre as minha qualidades, das quais eu desconhecia uns oitenta por cento delas. Só o Dr. Cardozo esclareceu, oportunamente, que o livro aquele, que eu não conseguira ler, era meu diário de jovem: planos, sonhos, perspectivas. Na verdade, uma coleção de metas nunca cumpridas e olvidadas.

As folhas em pó se perderam ao vento. E tendo meus planos alimentado cupins, ia eu agora, para os baixios da terra, alimentar outros seres, vestido daquela indefectível caixa protetora que carrega os mortos e a minha gélida roupagem corpórea.

Com um pouco de sorte eu me tornaria em árvore e finalmente, quem sabe, transformado em novas folhas de novos livros.

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